FERNANDO EICHENBERG/ FOLHA DE S. PAULO
PARIS – Certo dia, sentada em um café na praça da Bastilha, Samar Yazbek teve um sobressalto de pânico provocado pelo súbito pouso de um pássaro em seu joelho. Um reflexo de tempos passados. Antes de se exilar na capital francesa, em junho de 2011, o terror dos céus vinha dos disparos de atiradores aninhados no alto dos prédios e de bombas lançadas pelas forças do ditador Bashar al-Assad, no sangrento conflito sírio que se estende por mais de cinco anos. Escritora, intelectual, democrata e alauita (ramificação do islamismo xiita, mesma vertente do clã Assad), no início de 2011 Yazbek não hesitou em aderir aos protestos contra os desmandos do governo de Damasco, no rastro da Primavera Árabe. Naquela época, escreveu um texto que viralizou nas redes sociais: “Esperando minha morte”. Detida, foi levada para a prisão onde opositores do regime eram torturados. Interrogada cinco vezes pela polícia secreta síria, foi libertada em algumas semanas, “após alguns tapas”, mas acusada de “traição”. Sob constante ameaça de morte, conseguiu fugir para a França com a filha.
“Foi catastrófico para uma mulher como eu, liberal, e da comunidade alauita. Minha permanência lá era mesmo uma ameaça para quem me acolhia. Outras mulheres me encorajaram a deixar o país e poder escrever sobre tudo o que se passa na Síria”, conta ela à Folha num café de Paris, com o auxílio de um tradutor árabe, pois seu francês ainda é precário.
INCURSÕES
Mesmo no exílio, Yazbek atravessou clandestinamente a fronteira síria por três vezes, entre fevereiro de 2012 e agosto de 2013, para testemunhar o sofrimento em Idlib e Aleppo, zonas de conflito no norte do país. Nas duas primeiras vezes, permaneceu por dez dias cada, e na última, um mês. Em 2013, um ataque provocado pela explosão de um barril de pólvora quase a matou.
As experiências originaram o livro “Les Portes du Néant” (As portas do nada), recém-lançado na França. É uma narrativa explícita do inferno cotidiano da guerra civil -num acúmulo de tragédias, estupros, torturas, execuções, cadáveres e mutilações-, que adotou contornos religiosos com a entrada em cena do Estado Islâmico (EI). “Há apenas um vencedor na Síria: a morte. Só se fala dela, em toda a parte”, escreve em seu relato.
Laureada em 2012 com o prêmio internacional PEN/Pinter para “escritores de coragem” -pela obra “Uma Mulher no Fogo Cruzado: diários da revolução síria”-, Yazbek acredita que, por um lado, sua escrita é “um ato existencial de resistência à morte”. Para ela, o destino de Assad deve ser o banco dos réus no Tribunal Penal Internacional, em Haia: “Ele torturou e matou o povo sírio, espero que seja julgado por crimes contra humanidade. Tenta manipular para dizer ao mundo que há um inimigo mais perigoso do que ele, o EI”.
Yazbek também critica a comunidade internacional. “Países como EUA, Rússia e Irã não intervieram realmente porque têm seus próprios interesses. A situação piorou tanto que hoje se assiste a todas essas mortes no mar Mediterrâneo. Houve uma real diáspora no mundo. E foi só quando os países europeus foram realmente atingidos, com a chegada em massa dos refugiados, que se começou a buscar uma solução.”
REBELDIA
Rebelde por natureza, aos 16 anos a jovem Yazbek deixou sua cidade de Latakia, na costa síria, para se instalar solitária em Damasco e estudar literatura, o que numa sociedade árabe já pode ser considerado como uma “atitude revolucionária”, diz ela. Em 2012, criou a ONG “Women Now for Development”, para ajudar as mulheres sírias -segundo ela, “as primeiras vítimas da guerra”, junto com a crianças.
Recentemente, Yazbek começou a aprender o francês, idioma de seu novo país de adoção, o que evitava antes por razões subconscientes: “Tenho a impressão de que, ao me aproximar do francês, é como se fosse perder minha língua materna, me separar de algo de mim mesma. Mas, para me sentir bem aqui, terei de aprender.”
Amante das letras de José Saramago, Charles Baudelaire, Virginia Woolf ou Naguib Mahfouz, ela já disse que o estado das mulheres sírias, na luta contra o “extremismo religioso, o sistema patriarcal e o despotismo de Bashar”, se assemelha ao conto “A Colônia Penal”, de Franz Kafka: “Somos punidas por todo o lado”. Mas as similaridades param por aí: “Depois de todas as minhas leituras e do que já vi, penso que não há situação comparável ao sofrimento de hoje na Síria.”