A trajetória de Jessica Préalpato, que, aos 34 anos, ganhou o título de melhor chef pâtissière do mundo revolucionando as receitas de doces

“Acredito na minha boa estrela. Nada ocorre por acaso”, diz Jessica Préalpato. ©Iannis G/REA

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A francesa Jessica Préalpato, 34 anos, se tornou em 2019 a primeira mulher eleita melhor chef pâtissière do mundo na reputada classificação do World’s 50 Best Restaurants. É também, hoje, a única mulher a chefiar o menu de sobremesas em um restaurante distinguido com as três estrelas máximas do Guia Michelin, no caso, o estabelecimento do chef Alain Ducasse abrigado no Hotel Plaza Athénée, em Paris.

Em tempos de pandemia do coronavírus, no entanto, seus dias passam longe da estrelada cozinha, reclusa em sua casa em Colombes, nos arredores de Paris, com o marido, Olivier Bikao (diretor do restaurante 39V, do chef Frédéric Vardon, onde ela também trabalhou), e sua filha, Lou, de apenas nove meses. Nem por isso, sua criatividade foi confinada. Nesta pausa forçada, testa receitas de seu próximo livro, para crianças a partir de quatro anos de idade se iniciarem na culinária, sem esquecer dos experimentos para seu cardápio adulto, marcado pela originalidade do conceito de desseralité” – neologismo que combina dessert (sobremesa) com naturalité (naturalidade) –, título de seu livro publicado no final de 2018.

Hotéis e restaurantes do país não poderão reabrir suas portas até, pelo menos, meados de julho, segundo anúncio do presidente francês, Emmanuel Macron. Em sua nova rotina, o marido cozinha o jantar, e ela se encarrega do almoço, além de elaborar os purês e compotas naturais para a filha. “Tenho a sorte de possuir um pequeno terraço, onde bate sol. Não me entedio, e procuro aproveitar este período de calmaria. Fiz uma dezena de receitas para o livro infantil, faltam ainda cerca de 15 para completar. Por um lado, esta tragédia permitiu que nos reuníssemos todos e questionássemos o que é primordial na vida. Espero que tudo isso possa servir para que se tome consciência de muita coisa. E se for necessário permanecer confinado por mais tempo para salvar vidas, que assim seja”, diz.

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Sua admissão no universo Ducasse, em 2015, não demorou mais do que três minutos, o tempo de sua primeira conversa com o célebre chef. O encontro estava marcado para uma sexta-feira, às 15h, segundo relata: “Ele me perguntou o que gostaria de fazer. Respondi que meu desejo era continuar trabalhando em restaurantes gastronômicos, por causa do rigor e do respeito em relação aos bons produtos. Então, ele ligou para Romain Meder, chef do Plaza Athénée, e me disse ‘merci, au revoir’. Romain chegou, me levou até a sala do restaurante, magnífica, e começou a me falar do conceito de naturalité. Mas não estava entendendo para qual posto estavam me cogitando. E ele me disse: ‘Queremos um chef pâtissier’. Fiquei estressada, vinha de um resuarante que tinha uma estrela Michelin, havia me candidatado a outros estabelecimentos, mas não tive nenhum retorno, tinha perdido um pouco a confiança. Quando saí de lá, liguei para minha mãe e chorei. Foi um belo dia”.

O desafio, no entanto, foi penoso em seu início. A nova chef se viu obrigada a  rever todos seus conceitos de pâtisserie. Sua missão, designada por Ducasse, consistia em abandonar açúcar, cremes, musses e gorduras, a base de seu aprendizado e de sua prática, e extrair o máximo das frutas e de outros produtos. Em resumo, aplicar os preceitos de sua cozinha batizada de naturalité, de pratos minimalistas concentradas na essência dos alimentos, às sobremesas. “No começo, não entendia o que queriam. Não foi fácil recomeçar do zero. Mas era preciso jogar o jogo. Fui tateando. Tirei o máximo de creme e de açúcar, trabalhei nas frutas e, eureka, funcionou. E a experiência continua até hoje. A musse e o creme não me fizeram falta, o que mais estranhei foi o açúcar, ao qual o paladar estava bastante habituado. Um fruto em boa maturação já é bem açucarado. Tentamos reduzi-lo ao máximo, fazendo evaporar a água obtemos um concentrado do suco da fruta, e se consegue adocicar uma sobremesa apenas com isso. Nenhum de nossos clientes reclama que falta açúcar em nossas sobremesas. Isso quer dizer que está bem equilibrado”, avalia.

A chef na sala do restaurante do Hotel Plaza Athénnée , em Paris. @IannisG/REA

Em sua casa, o açúcar branco entrou para a lista dos produtos proibidos. No restaurante, confessa que o uso é extremamente limitado, apenas em raros casos, como em certos caramelizados, em que o mel e o açúcar não refinado falham. A ameixa é muito usada para adocicar seus quitutes, às vezes também o açúcar de coco, embora menos por causa do gosto muito marcado, além do mel. “Estamos fazendo testes agora com água de bétula, que se assemelha ao açúcar. Se pudermos usar este produto natural, será um sonho”, acrescenta.

A pimenta-do-reino é uma especiaria fetiche em suas receitas, com poder de relevar e transformar radicalmente uma sobremesa, e uma pitada de sal também ajuda, revela. Jessica não cessa de inovar, e cozinha suas criações na churrasqueira, na grelha, na chapa; mistura frio e quente, inventa molhos, purês, e tempera com condimentos, em procedimentos pouco usuais na pâtisserie tradicional. “Sou muito curiosa. E roubo ideias dos chefs de cozinha aqui do Plaza, adapto-as para as sobremesas, e funciona muito bem”, diz, orgulhosa. Atualmente, prepara um sorvete para uma nova sobremesa à base de chocolate, feita com o cacau de excelência da produção de João Tavares, do Sul da Bahia.

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Seu método de criação é feito na base de “mind mappings”, um esquema com um ingrediente principal no centro da folha, com flechas partindo para o entorno, na direção de diferentes hipóteses de trabalho, de texturas, acidez, cozimento etc. Seu marido diz que ela “reflete em demasia”. “Mas quando crio uma sobremesa, é realmente o que se passa na minha cabeça”, admite. “Acabo tendo umas 50 preparações diferentes, vou provando e selcionando as mais interessantes, escolhendo o que é essencial. Vou eliminando muita coisa pelo caminho, e ao final não sobra muita coisa. Mas todos os elementos que restaram são importantes para a sobremesa”.

Há quatro anos, a premiada chef, que recentemente foi nomeada madrinha do Pavilhão francês para a Exposição Universal de Dubai (adiada para 2021 por causa da pandemia), tatuou em seu braço direito a constelação de Virgem, seu signo astrológico. “Acredito na minha boa estrela. Nada acontece por acaso”, diz, ao se despedir.

  • TEXTO PUBLICADO NA REVISTA ELA, EM O GLOBO.