Rede de solidariedade nos subúrbios de Paris ajuda brasileiros na pandemia

Jucilene Barboza, presidente da associação Amis du Brésil. ©Arquivo pessoal

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A goiana Adavânia de Fátima, 40 anos, juntou suas economias e desembarcou na França em novembro, junto com o marido, 46, e o filho, 13, em busca de uma vida melhor. Os pais aspiravam a uma “educação de primeiro mundo” para o filho e a um cotidiano “longe da violência de Goiânia”. Os noviços imigrantes, no entanto, não deram sorte:

– Já em dezembro começou a greve dos metrôs (contra o projeto de reforma da aposentadoria do governo francês), e logo depois veio a pandemia do coronavírus, que foi uma balde de água gelada. Dizem que o início é sempre difícil. Mas estou esperando este início acabar para que as coisas possam melhorar – desabafa.

Instalada em Villejuif, no subúrbio de Paris, na espera de poder legalizar sua situação no país, Adavânia é uma das centenas de brasileiros em dificuldades por causa da pandemia que têm recebido ajuda da associação Amis du Brésil (Amigos do Brasil), presidida por Jucilene Barboza.

– Somos ilegais ainda, não temos ajuda do governo francês. Mando uma mensagem pelo celular, e a Jucilene vem entregar mantimentos aqui na minha porta. A gente fica com medo de ir buscar na associação por causa da multa (de € 135 para quem sair sem justificativa). Estamos comendo até melhor do que antes da pandemia. E ela ainda ajuda com palavras de ânimo, me dizendo para ficar forte e manter a calma.

Adavânia enfrentou greves e depois a pandemia ao imigrar para a França. © Arquivo pessoal

Adavânia vinha trabalhando como manicure a domicílio, mas com a quarentena teve de interromper o atendimento. Seu marido está em período de teste em um supermercado. Como não fala ainda o francês, pediu ajuda a uma vizinha brasileira, que domina o idioma, para depositar o pagamento do aluguel no banco, mas o dinheiro nunca chegou na conta do locador.

– Fui roubada pela vizinha, e já estou há dois meses devendo o aluguel. Foi uma frustração. As pessoas que estão há mais tempo aqui se aproveitam da sua ingenuidade. Procurar ajuda francesa é difícil, por causa da língua. Estou estudando francês neste confinamento. No início, fiquei doida para voltar ao Brasil, mas se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Se aqui está assim, imagina no Brasil.

A associação Amis du Brésil foi criada com fins culturais, mas com a urgência da pandemia acabou entrando no campo social. Há 20 anos, Jucilene, 37, saiu do Morro da Mineira, no Rio de Janeiro, para tentar a vida na França. Moradora de Vitry-sur-Seine, no sul da capital francesa, e atualmente em licença médica de seu emprego em uma padaria parisiense por causa de um problema na mão, começou a improvisar um auxílio aos brasileiros afetados pela crise do coronavírus.

– Foi tudo muito rápido. Quando as demandas aumentaram muito, foi preciso se organizar. Hoje, já cadastramos mais de 200 famílias, e são mais de 250 crianças. Além de alimentos, estou pedindo também doações de fraldas. E não estamos querendo qualidade, mas quantidade, porque é muito pedido de socorro. Os estoques acabam rapidamente. Há muitas pessoas ilegais, outras com documentos, algumas querem ser repatriadas, e outras, ficar. É uma situação complicada.

Jucilene Barboza com as doações recebidas para ajudar brasileiros em dificuldades.                  ©Arquivo pessoal

A associação montou oito pontos de entrega e distribuição de doações e cestas básicas nos subúrbios de Paris, faz apelos via as redes sociais e trabalha com equipes de voluntários. Conseguiu algum apoio dos Médicos do Mundo e também do Consulado brasileiro em Paris, que prometeu ajudar na obtenção de um passe livre para a circulação das equipes, no caso de um controle da polícia neste período de confinamento, e divulgou a iniciativa em suas redes.

– Já temos também psicólogo, assistente social e advogado. Muitas pessoas me procuraram, em vez do Consulado, por medo de serem deportadas, pois se encontram ilegais no país. Não estou aqui para julgar ninguém, e acredito que não seja a hora para isso, mas sim de nos unirmos para ajudar essas famílias – defende Jucilene.

Samira Dias Lopes

Samira Lopes Dias, 46, natural de Belém do Pará, morava em São Luís do Maranhão quando divorciou do marido e, há oito meses, decidiu se mudar sozinha para a França. Neste tempo já conseguiu um emprego como camareira em uma rede de hotéis, e com isso espera obter papéis para sua permanência legal no país. Com o fechamento dos hotéis durante a pandemia, está confinada em casa, em um pequeno studio em Aubervilliers, e as dificuldades aumentaram.

– Não estou recebendo nada, nem auxílio do governo francês. Fiquei sabendo da ajuda da associação Amis du Brésil, liguei e expliquei minha situação. Pego com eles alimentos básicos, para uma semana. Isso que está me salvando. Fico com medo, não sei o que acontecerá daqui para frente. Não tenho família aqui, nem amigos, não sei falar francês direito. A gente entra um pouco em pânico, às vezes choro, mas é assim mesmo, a vida é uma luta.

Chancelle Pedro, 29, do Rio de Janeiro e há 13 anos na França, representa a associação em Gagny, no leste de Paris, e conta que já ajudou mais de 300 pessoas na sua região.

– A maioria delas é ilegal, sem ajuda do governo. Algumas chegaram há poucas semanas na França. O telefone não para o dia todo, e fazemos o que podemos. No começo, estávamos atendendo apenas a comunidade brasileira, mas começaram a aparecer portugueses, espanhóis e mesmo franceses pedindo auxílio. Não podíamos restringir apenas aos brasileiros, quem vem a gente ajuda.

Chancelle Pedro distribui alimentos em Gagny.                                ©Arquivo pessoal

O chef carioca Raphaël Rego, do restaurante parisiense Oka, distinguido com uma estrela no Guia Michelin, há três semanas passou a ajudar hospitais de Paris, preparando e entregando refeições, e também pretende passar a colaborar com a associação brasileira.

– Na semana passada foi o pico, consegui entregar 400 refeições em cinco hospitais diferentes da cidade. Nesta semana, será um pouco menos, umas 150, pois temos menos produtos disponíveis. Geralmente, mandamos refeições simples. Já entreguei 140 sanduíches de frango com legumes. Também deu para comprar um dia 15 quilos de aspargos de um produtor. Sábado passado, mandei feijoada para o serviço de UTI do Hospital Sainte Marie. E amanhã vou entregar carne desfiada com arroz e pão de queijo.

O chef brasileiro Raphaël Rego (E), que tem entregado comida em hospitais e passará a ajudar associação Amis du Brésil. © Julie Limont

O chefe diz receber constantes mensagens de brasileiros se dispondo a ajudar, seja na entrega ou colaborando com coxinhas e salgadinhos em geral, em uma “grande manifestação de solidariedade”. A nova experiência provocada pela pandemia também o fez viver a tragédia da crise mais de perto.

– Na primeira semana, fui ao Hospital Saint Louis entregar 220 quentinhas. Quando cheguei, avisei a médica com quem estava em contato pelo telefone. Ela apareceu na porta, com uma cara de zumbi, de morto-vivo. Me viu, acendeu um cigarro, na outra mão segurava um café, e ficou me olhando sem dizer nada. Eu disse: “ Doutora, bom dia”. A sensação é a de que ela estava saindo de uma guerra, respirando e vivendo alguns segundos antes de falar algo.