GOLSHIFTEH FARAHANI: ‘Se vencermos no Irã, a mulher ganhará e o mundo também’

Atriz iraniana Golshfiteh Farahani, exilada em Paris desde 2008, se tornou uma porta voz do movimento contra a ditadura do regime islmâmico de Teerã. ©Philippe Gay

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A atriz iraniana Golshifteh Farahani se converteu em uma infatigável ativista em apoio à revolta deflagrada em seu país em setembro, no rastro da morte da jovem Masha Amini, de 22 anos, sob custódia da polícia da moralidade por suposto uso inadequado do véu islâmico. Exilada em Paris desde 2008, a atriz não passa um dia sem postar aos seus mais de 15 milhões de seguidores no Instagram denúncias contra a violência e os desmandos praticados pela ditadura islâmica comandada com mão de ferro pelo líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei. Como uma porta-voz no exterior do movimento, tem se manifestado como pode, seja nas redes sociais ou escrevendo uma tribuna para o jornal New York Times. 

– Por vezes, me sinto realmente desesperada. Outras vezes, repleta de esperança. Algumas vezes em lágrimas ou com raiva. Cada dia é uma emoção diferente. A única coisa que sei é que não posso abandonar ­­­­­– desabafa ao Globo, ao final de mais um dia de filmagens para um novo longa-metragem na França.

Farahani debutou sua carreira de atriz aos 14 anos, e ao longo do tempo se tornou uma celebridade no Irã. Seus problemas começaram em 2008, ao contracenar com Leonardo DiCaprio em ‘Rede de Mentiras’, de Ridley Scott. O trailer do filme na internet e a imagem da atriz com os cabelos descobertos, sem véu, e os braços desnudos no tapete vermelho da estreia em Nova York encolerizaram as autoridades de Teerã.  Ao retornar ao país, teve o passaporte confiscado e amargou repetidos interrogatórios pela Corte Revolucionária Islâmica e os serviços de inteligência. Certo dia, um juiz lhe disse: “Até agora, tenho conseguido segurar os serviços secretos, que são hostis a você. Isso não vai durar. Vá embora. Você tem vinte e quatro horas”. Em 23 de agosto de 2008, se viu obrigada a fugir do país e se exilar na França.

Como você se sente pessoalmente com o que ocorre hoje no Irã?

Nos momentos de completo desespero, tenho dúvidas se o que faço aqui, fora do Irã, serve para algo. Mas quando penso nas pessoas lá nas ruas, que perdem seus filhos, nessa juventude que morre, me digo que não posso parar. Numa manhã em que não posto nada no Instagram, as pessoas se inquietam. Acabou se tornando realmente um canal de informação. E como sou uma artista, tudo o que digo, que reflito, está ligado à emoção, pois sou assim. Tento ser honesta e fiel ao que vejo e ao que se passa no Irã.

Desta vez, você diz que é diferente, pois a nova juventude, a chamada Geração Z, não tem mais o medo e a culpa dos jovens de sua época. 

Eles não têm medo, nem ideologia, lutam por uma causa muita simples, que é a liberdade. E se tornou algo que ultrapassa a Geração Z, passou a envolver também os mais velhos, as crianças. Temos mortes de crianças de dois, quatro anos, de jovens de 12, 13, 14 anos. Entre toda a opressão dos anos passados, as ilegalidades constitucionais em relação às mulheres e os homens, as injustiças, a obrigatoriedade do véu é apenas a superfície, algo que o Ocidente pode compreender. Mas o Ocidente não pode compreender como é possível colocar crianças na prisão, sentenciar à morte um adolescente de 15 anos ou como uma jovem de 13 anos pode se casar e ter filhos. O Ocidente se dessensibilizou e se dissociou destes temas tão graves. A história do véu é colocada em evidência, porque é algo que as pessoas entendem, mas na verdade é somente um pano sobre o dorso do camelo. Os problemas são bem maiores do que isso, e as raízes bem mais sombrias e violentas. O Irã e os iranianos foram feitos reféns por muitos anos pelo atual regime. E hoje todo mundo está nas ruas. E mesmo que se diga que é uma luta contra a opressão da mulher, nunca tivemos na história homens prontos a morrer pelas mulheres. Eles gritam “mulher, vida, liberdade”, e isso é extraordinário. É histórico.

Aos 12 anos, você estudava música, e para andar na rua com os instrumentos em seus estojos, era necessária uma autorização oficial. Na sua adolescência, você raspou a cabeça por dois anos e se passava por um menino…

Nós éramos uma geração subterrânea. Conseguíamos viver coisas, mas às escondidas. Hoje, essa geração não quer viver escondida. Ela ousa muito mais, é muito mais corajosa. As redes sociais ajudaram muito nisso. Essa geração viu o mundo de outra forma. E não é algo relacionado apenas às elites de Teerã, mas em todas as aldeias do Irã. Essa revolta é bem mais forte em diferentes regiões do país do que em Teerã, isso é muito importante. Não é um movimento de intelectuais, de elite, mas das pessoas que trabalham nas minas e nas fábricas, dos caminhoneiros, em várias regiões. Por isso há bem mais chances de dar certo.

Analistas apontam que, pela ausência de um líder, o movimento tem poucas chances de perdurar.

Não concordo. Isso pode ser uma qualidade desta revolta. O líder aqui não é uma pessoa, mas uma consciência coletiva. E há jovens dando um pouco de direção ao movimento dentro do Irã. A situação é diferente em relação à Primavera Árabe no Egito, na Líbia e em outros países com ditaduras não tão complexas como a do governo islâmico iraniano. Se houvesse um líder desta revolta, ele já teria sido morto mil vezes. A oposição deve também se adaptar a um regime que é extremamente complexo e que aprendeu muito dos erros de muitas outras ditaduras, não apenas do xá Reza Pahlevi, mas da Rússia e da KGB, de Saddam Hussein. Não é algo que se pode atacar de uma forma normal. Esse regime é tão vicioso, que durante 44 anos nenhuma oposição sobreviveu no Irã. A oposição evoluiu para combater esse regime.

Você foi bastante atacada no lançamento do filme ‘Rede de Mentiras’, e também quando posou nua para a revista Egoïste, em 2015. Os ataques continuam?

Hoje, eles são diferentes. Quando retirei o véu em 2008, houve uma primeira onda de ataques, de todos os lados, e que depois continuaram. Não há uma pessoa que recebeu tantos insultos na história midiática do Irã quanto eu. Fui um bom alvo. Hoje, são sobretudo ciberataques, de pessoas do governo que se pretendem passar por simples cidadãos. É possível identificá-los muito bem nos comentários nas redes sociais. Se tornou algo mesmo ridículo. Eles criam falsas verdades, rumores, e isso estimula outras pessoas a me atacarem também. Mas hoje posso dizer que sou mais ouvida do que atacada.

Para você, personalidades e movimentos feministas tardaram a se manifestar em relação à revolta no Irã, o que foi feito antes por homens, como o cantor Justin Bieber e o grupo Coldplay. 

No início, sim, fiquei surpresa com isso. Mas passados três meses, muita coisa mudou. Não sou uma política, vou morrer como uma artista. Mas compreendi bem essa complexidade da política e como as coisas funcionam. O que se passa hoje no Irã é o maior movimento feminista jamais visto na história. Não é como o 8 de março, em que as mulheres saíram as ruas pelo direito de voto. No Irã, mulheres e homens morrem pelo direito de existir, e isso é algo gigantesco. Se houvesse uma verdadeira compaixão das feministas desde o início, elas teriam de ser bem mais presentes e frontais, mas não foi o caso. E ainda hoje não se entende a posição dos EUA. A cada vez que os americanos interviram na política iraniana, fizeram algo ruim, como o golpe de Estado de 1953 contra Mohammad Mossadegh. Na revolução de 1979 foi o mesmo. O povo iraniano não tem confiança na benevolência e ideias do Ocidente. Pessoalmente, acredito na Alemanha, e hoje posso confiar na França também. É possível perceber um fio de esperança de que talvez a Europa queira ver democracia no Irã, porque o povo europeu não pode suportar que seus governos mantenham acordos com uma ditadura. 

Quais as repercussões desse movimento além das fronteiras do Irã?

Se vencermos – e de uma certa forma já ganhamos, porque conseguimos quebrar algo –, se o Irã se libertar, significará que a mulher será livre. Isso é algo importante não somente para a região, mas para o mundo. Todos devem gritar “mulher, vida, liberdade”, porque enquanto a mulher não for livre, o mundo não será livre. Não sou feminista radical, mas o mundo em que vivemos é criação do homem. É um mundo repleto de tudo o que não queremos. Se o [movimento no] Irã vencer, a mulher ganhará, e o mundo também. 

Ao deixar o Irã, você perdeu sua casa. E desde então diz que sua casa é você. Ainda se sente assim?

É cada vez mais assim. Minha casa interior se tornou como um palácio. Em todo lugar me sinto em casa. Viajo todo o tempo. Recentemente, fiquei seis meses em Praga, sete meses na África do Sul, agora estou na França, depois vou para a Itália, Nova York. Nunca estou sempre no mesmo lugar. E me sinto em casa por todo lado. Isso é extraordinário. Me sinto orgulhosa de finalmente ter criado essa casa dentro de mim. Quando somos desenraizados, criamos raízes no ar, como as orquídeas. Posso sempre crescer sem ter minhas raízes na terra.

Deixe um comentário