CaTherine Mathivat, quarta geraÇão da família à frente do deux magots, resiste à pandemia e quer “evolução sem revolução” para o célebre café parisiense

@Julio Piatti

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A primeira lembrança de Catherine Mathivat do café Les Deux Magots remonta aos seus dez anos de idade, no final da década de 1970, quando passava fins de semana com seus avós, proprietários e moradores do andar de cima do já célebre local parisiense. “Descia com minha avó ver o que se passava embaixo, ficava ao lado do caixa observando o movimento dos garçons e dos clientes. Me recordo bem dos ruídos quando fechavam o terraço à noite”, recorda. Hoje, aos 51 anos, é ela quem comanda o emblemático café, ancorado no coração do bairro de Saint-Germain-des-Près.

Catherine Mathivat comanda o café que foi de seu avô. ©Julio Piatti

Em 1914, seu bisavô Auguste Boulay, garçom em um outro café da cidade, fez um empréstimo, comprou o estabelecimento, e desde então o negócio permaneceu nas mãos da família. Do bisavô para o avô, depois para o pai e agora com a filha na direção, o Deux Magots procura perpetuar sua história, mesmo que a efervescência artística e literária dos áureos tempos de Saint-Germain-des-Près seja coisa do passado. Foi-se a época em que suas mesas acolhiam os poetas Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, o casal de filósofos Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir (que ali escreveu “Os mandarins”, romance que deu o nome a uma das salas do café) e tantas outras personalidades, em animados debates e conversas etílicas. Em seu terraço, Picasso se apaixonou por Dora Maar, que se tornaria sua eterna musa, na época em que pintava o quadro Guernica em seu ateliê da rua de Grands-Augustins, nas vizinhanças.

O Deux Magots, em uma imagem de 1959. ©Deux Magots

Celebridades francesas e estrangeiras do mundo da moda, do cinema, das artes ou das letras ainda frequentam o local nos dias de hoje. J.J. Abrams pariu nas mesas do café o roteiro do sétimo episódio da saga Stars Wars. “Assisti às filmagens no café de ‘Todos dizem eu te amo’, de Woody Allen. Também já cruzei com atrizes, atores ou presidentes, como Valéry Giscard d’Estaing, almoçando com seu filho. Como eles não são incomodados, apreciam vir, se isolam em um canto tranquilo”, conta Catherine.

O café surgiu como um comércio, em 1812, de nome inspirado em uma peça de teatro daquele ano, “Les deux magots de la Chine”, de Charles-Auguste Sewrin, no número 24 da rua de Buci. Em 1873, mudou para o endereço atual para ampliar seu espaço. “Desde 1885, passou a ser um café, repleto de fumaça de cigarro e copos de absinto. Antes disso, era uma loja de tecidos e novidades. Meu bisavô, que teve a sorte de não ser convocado para lutar na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o transformou como é hoje, a decoração atual data daquela época. Depois, meu avô fez algo bem mais luminoso, com paredes envidraçadas. E as duas estátuas de chineses, os dois magots, são as mesmas da loja do início.”, explica a proprietária.

Simone de Beauvoir escreveu sua obra “Os mandarins” nas mesas do café. ©Deux Magots

Ela mesma começou a trabalhar no café em 1993, aos 25 anos, recém-diplomada no Instituto Superior de Gestão. Com a morte de seu pai, em 2012, assumiu o controle. Em 2016, se associou a seu primo Jacques Vergnaud, especialista em estratégia e desenvolvimento de marca. O Deux Magots tem uma filial em Tóquio, no Japão, desde 1989, e há planos de novas expansões. “A ideia é uma cidade e um café, talvez em Xangai, Pequim, Nova York. Quem sabe na América do Sul. Tudo isso faz parte das nossas atuais reflexões”, diz Catherine.

Antes dependente dos turistas das mais diversas nacionalidades, o café reivindica, hoje, uma clientela metade francesa e outra metade estrangeira. Com a pandemia da Covid-19, os turistas, no entanto, são atualmente em menor número. “Temos uma enorme clientela brasileira. Estou com saudades dela, assim como dos demais turistas, americanos, asiáticos. Retiramos 28% do total de nossas mesas por causa das normas sanitárias de distanciamento, e estamos com uma redução de 60% do nosso volume de negócios. Mas, aos poucos, os turistas começam a reaparecer”, comemora a diretora.

Com a pandemia, o café se viu obrigado a reduzir o número de mesas habitualmente disponívesis aos clientes. ©Deux Magots

Ela lamenta, no entanto, a falta de comprometimento em relação ao “novo normal” para evitar a propagação do coronavírus, que permanece em circulação. As pessoas deveriam se sentir responsáveis, por elas mesmas e pelos outros, diz: “Não se respeita a distância de ao menos um metro de distância do outro, não se está nem aí para o que se passou nos últimos meses, não chamo isso de responsabilidade. Não é pedir muito. Poderiam fazer um esforço e pensar que se me contamino é um avô, um amigo mais frágil que poderá morrer. As pessoas parecem não ter consciência disso”.

Fechado à meia-noite de 14 de março, por conta do confinamento determinado pelo governo, o Deux Magots só foi reabrir suas portas em 5 de junho, em mais de dois meses e meio inatividade. “Em 2013, havíamos fechado por 42 dias para fazer obras. Depois, em 2015, outros 15 dias, para reformar a cozinha. Mas dois meses e meio assim, nem durante a Segunda Guerra Mundial”, diz ela.

Janet Flanner, da revista The New Yorker, e o escritor Ernst Hemingway, na Liberação de Paris durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944. ©Deux Magots.

Seu lema é “evolução sem revolução”: transformar sem desestabilizar o cliente e não perder a alma de um café de Saint-Germain-des-Près. O famoso chocolate quente do local segue a antiga receita de barras derretidas no leite. A garrafa sempre está presente na bandeja na hora de servir taças de vinho aos clientes. E a vestimenta dos garçons mantém a tradição. “Mas criamos noites de jazz às quintas-feiras. Uma segunda-feira por mês, recebemos um escritor para um debate. E, integrando a tecnologia, colocamos vidros com telas para exibir, sem som, cenas antigas do bairro, do café e de personalidades que o frequentaram. Não quero que sejamos classificados como um museu. Somos um lugar vivo, que acolhe pessoas do mundo inteiro”, defende.

Há 106 anos, o Deux Magots pertence à mesma família, já na quarta geração. Bem na frente, do outro lado da rua, a tradicional Brasserie Lipp não resistiu ao canto da sereia – e aos milhares de euros –, e foi incorporada por um grande grupo. Catherine, no entanto, não cogita vender sua menina dos olhos: “Tenho dois filhos, com 15 e 12 anos hoje, que poderão assegurar a continuação dessa herança familiar. Eles já se interessam pelo café, sobretudo o mais jovem”, avisa.

2 comentários em “CaTherine Mathivat, quarta geraÇão da família à frente do deux magots, resiste à pandemia e quer “evolução sem revolução” para o célebre café parisiense”

Deixe um comentário