Economista francês thomas piketty, com novo livro lançado no brasil, fala sobre as soluções para as desigualdades no mundo e para a crise pós-pandemia da covid-19

Para economista francês, falta de ambição nas reformas econômicas e na redução da desigualdade é o que alimenta a xenofobia e os nacionalismos; ele diz que, se pudesse, diria a Bolsonaro que ele ainda pode admitir erros e mudar. ©Divulgação

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Sete anos após o best-seller internacional “O capital no século 21”, vendido a mais de 2,5 milhões de exemplares, o economista francês Thomas Piketty está de volta às vitrines das livrarias com mais uma ambiciosa obra. Em “Capital e ideologia” (Intrínseca), procura traçar uma história econômica, social, intelectual e política das desigualdades em âmbito mundial. Diretor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e professor da Escola de Economia de Paris, Piketty ampliou seu mapa de estudo ao analisar, além de Estados Unidos, Alemanha e Japão, casos de países como Brasil, China, Índia, Japão, Rússia, Suécia ou Irã, passando pelas sociedades feudais, os regimes escravocratas e as colônias americanas sob dominação europeia até chegar às democracias eleitorais atuais e ao “hipercapitalismo moderno”. Mas não se contenta com a perspectiva analítica e, ao final, sugere soluções, já alvo de polêmicas, para a construção de um novo horizonte igualitário de proporções universais, um tipo de “socialismo participativo” para o século 21, em uma nova ideologia da igualdade sob formas alternativas de organização da sociedade, da propriedade, da educação ou dos impostos. Na entrevista, ele lembra que governos de direita já adotaram políticas redistributivas diante de crises como a provocada pela Covid-19, e sugere que a tributação do patrimônio privado pode ser uma maneira de pagar os gastos excepcionais que os países estão tendo na pandemia.

Em sua nova obra, o senhor defende que a desigualdade é uma escolha ideológica, e que cada sociedade cria uma narrativa própria para justificá-la.

Foi a conclusão principal a que cheguei no meu livro. Mas isso não significa que é fácil encontrar o bom nível de igualdade ou de desigualdade. E não digo que o bom nível seria a igualdade absoluta, algo nem possível e desejável, pois as pessoas são diferentes, com projetos diversos em suas vidas. Se as sociedades têm necessidade de ideologia para encontrar o bom nível de desigualdade, é porque o problema é imensamente complicado, para saber como organizar um sistema de propriedade, de educação, de tributação, de fronteiras, das relações com as demais comunidades. Meu livro é otimista, procuro mostrar que na História há um certa forma de aprendizado da justiça, em um processo de redução das desigualdades bastante importante no longo prazo. E, ao mesmo tempo, não é um processo determinista, depende verdadeiramente de mobilizações políticas. Há um conflito social e também ideológico, que devem ser levados a sério. O certo é que se chegarmos unicamente com explicações econômicas, tecnológicas ou culturais para os diferentes níveis de desigualdades entre países, não iremos longe. Não digo que estes fatores não têm nenhum papel, mas se observa que para um mesmo nível de desenvolvimento econômico ou tecnológico há níveis de desigualdades completamente diferentes. E a ideia de um determinismo puramente cultural me parece muito falsa. Por vezes, se imagina que a Suécia seria, desde sempre, mais igualitária por razões culturais. Ou que Brasil e Índia seriam desiguais também por motivos culturais. Na maioria das vezes são discursos muito conservadores, porque é uma forma de dizer que não se pode mudar nada. Mas não é isso que se observa na História. Uma sociedade pode mudar muito rapidamente. Há um século, a Suécia era, de uma certa forma, mais desigual do que o Brasil hoje. Não digo que o Brasil se tornará a Suécia. Mas se, em 1910, se dissesse a um sueco que seu país se tornaria muito igualitário, ele não acreditaria, porque na época havia um nível de concentração da fortuna, da propriedade e do poder político – que era diretamente ligado à riqueza. Havia uma sofisticação na organização política da desigualdade maior do que em todas as sociedades europeias ou latino-americanas censitárias do século XIX. Com uma mobilização social e política muito forte, a Suécia se tornou o país social-democrata que conhecemos hoje. Procuro dar no meu livro muitos exemplos de trajetórias históricas, para mostrar que sempre há alternativas e diferentes formas de organizar um sistema econômico, de resolver um problema de dívida pública.

Na sua análise, é impossível compreender a estrutura das desigualdades modernas sem considerar o passado da escravidão e do colonialismo. Para o senhor, é uma pesada herança ainda muito presente em sociedades modernas, nos aspectos econômico e no racismo, em países como o Brasil ou os EUA.

É preciso levar a sério a questão da justiça econômica, e também da reparação que é colocada pelo movimento Black Lives Matter. Isso tem a ver com o Brasil, os EUA, mas também a Europa, a França e o Reino Unido. Por mais de um século, de 1825 a 1950, o Haiti teve de reembolsar a França, para compensar os proprietários de escravos franceses. Hoje, o Estado francês se recusa a discutir uma reparação ao Haiti. Por outro lado, se aceita debater reparações sobre espoliações de bens que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial. Nos EUA, uma lei de 1988 compensou os japoneses americanos que passaram três anos em campos de internamento durante a Segunda Guerra Mundial, com US$ 20 mil para cada um. Para os ex-escravos, não se fez nada. Houve uma promessa ao fim da Guerra Civil, em 1865, de se dar uma mula e 40 acres de terra, que tivesse sido aplicada seria uma grande reforma agrária, de redistribuição da propriedade. Mas isso não ocorreu nos EUA, no Brasil ou nas ilhas escravagistas francesas. É uma herança comum, e a questão hoje é saber como sair disso. As políticas de reparação são em parte simbólicas, mas importantes, marcam o arrependimento do Estado. Nos EUA, muitas pessoas ainda vivas sofreram a segregação racial até 1965. No Brasil, é mais complicado, algo mais antigo. Não digo que as coisas sejam simples, mas é preciso aceitar a discussão sobre essa questão, pois ao negá-la se cria um grande sentimento de injustiça. E, com isso, todas as políticas universais e os princípios de justiça têm ainda mais dificuldade em serem ouvidos. E além das reparações financeiras, são necessárias políticas de luta contra as discriminações atuais, profissionais, policiais. No Brasil e nos EUA, há políticas mais fortes a serem aplicadas contra as discriminações.

O senhor critica o fato de a melhora da situação das classes mais pobres no Brasil ter sido feita em detrimento das classes média, e não dos mais ricos. Na sua visão, sem reformas fiscal, política e eleitoral o país não conseguirá reduzir a desigualdade econômica.

O PT conseguiu melhorar a situação dos 50% mais pobres, aumentando o salário mínimo e fazendo políticas de transferência, como o Bolsa Família. Mas não conseguiu fazer os mais ricos pagarem por essas políticas. No fim, foram feitas em detrimento dos 40% do meio, entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos. Já o sistema político eleitoral no Brasil é bastante estranho, pois você pode ser eleito presidente com 60% dos votos e não ter maioria no Parlamento. É preciso encontrar um equilíbrio. Houve no Brasil experiências de transição democrática e de alternância política que foram bem-sucedidas, e marcaram a entrada do país na era da democracia eleitoral e do sufrágio universal. Nessa perspectiva de longo prazo, essas experiências foram bem-sucedidas. Mas, hoje, penso que é preciso um debate no Brasil, à esquerda, à direita e no conjunto da sociedade, sobre como adaptar o sistema eleitoral para que seja possível a um governo aplicar sua política, sempre respeitando a Constituição, claro. Nas questões econômicas e sociais, o presidente eleito com mais de 50% de votos deve poder fazer uma reforma fiscal, senão acabará criando muita frustração. E é isso que leva a coalizões por vezes muito opacas, e que contribuiu também a perpetuar um certo clientelismo e práticas de verdadeira corrupção no país.

O senhor considera a eleição do candidato “nacionalista-conservador” Jair Bolsonaro como “uma nova virada na história política do país”. Como vê a gestão da pandemia pelo governo brasileiro e a política econômica do ministro Paulo Guedes?

Estou muito preocupado com a evolução da situação no Brasil. Meu pai é casado com uma brasileira, minha madrasta, eles estavam em São Luís e Fortaleza durante a pandemia, e acabaram conseguindo retornar para a França. Ela não era favorável ao PT, mas, hoje, está – e toda sua família também – bastante inquieta com essas negações da ciência e de uma certa racionalidade sanitária, científica e econômica que se vê do lado de Bolsonaro. Em alguns aspectos, é Trump piorado. Se tem a impressão de um tipo de desprezo por tudo que se pareça à inteligência coletiva, a provas científicas. Penso que essa crise deve ser a ocasião para um país como Brasil desenvolver um melhor sistema de saúde pública, sanitário, e igualmente uma melhor transferência de renda para as populações sem recursos mínimos. Houve progressos com o Bolsa Família, mas ainda se têm muitas pessoas no trabalho informal, que não têm renda mínima. O que tenho vontade de dizer ao governo brasileiro atual é que podemos cometer erros e temos o direito de mudar de opinião. Na histórias das desigualdades que estudo no meu trabalho, se nota muitas vezes governos de direita que se põem a fazer políticas sociais redistributivas, porque as questões do momento são muito importantes, após crises sociais, financeiras, guerras. Na História, houve muitos governos que souberam evoluir em suas concepções. Ninguém sabe até onde as coisas se agravarão no Brasil e na América Latina com a epidemia, mas penso que é preciso sair da abordagem anticientífica e antissocial atual.

O senhor aponta que grandes economias souberam sair das crises após as duas grandes guerras mundiais, com endividamentos públicos que chegaram a 200% ou 300% do PIB. O método mais interessante, segundo diz, teria sido o de países como Alemanha e Japão, que passaram a taxar os grandes patrimônios privados em mais de 50%, chegando até a quase 90% no caso japonês. Com isso, as dívidas públicas acabaram fortemente reduzidas em alguns anos, chegando a menos de 20% do PIB no Japão. Seria uma solução nessa crise pós-pandemia?

Penso que, de imediato, o aumento do endividamento público é a única solução para enfrentar a crise. Mas, depois, será preciso sair dessa forma de ajuda pública. Na História, se vê que face a situações de forte endividamento público assim, os governos recorreram a soluções excepcionais, como impostos sobre o patrimônio privado, principalmente na Alemanha e no Japão, mas também em outros países europeus, após a Primeira e a Segunda guerras mundiais. Essas experiências obtiveram grande sucesso. Permitiram reduzir rapidamente o endividamento público, preservando margens de manobra orçamentárias para investir nas infraestruturas públicas e no crescimento. Penso que o tipo de crise atual pode contribuir a mudar a direção neste sentido. Se vê na Alemanha e em outros países da Europa todo um debate sobre a possibilidade de um imposto sobre a fortuna para reembolsar as dívidas relacionadas à epidemia da Covid-19.

O plano da União Europeia de € 500 bilhões para relançar a economia do continente foi saudado como algo enorme e inédito, mas, para o senhor, trata-se de uma meia medida. Por quê?

É uma verdadeira novidade emprestar em comum € 500 bilhões, ao mesmo tempo não podemos exagerar o valor. É preciso lembrar que em relação ao PIB europeu, de € 14 trilhões, corresponde a cerca de 3%. E isso será disponibilizado durante cinco ou seis anos. Por ano, significa um aumento do orçamento da UE de cerca de 0,5% do PIB. O orçamento da UE era de 1% (do PIB de cada país membro), e vai passar a 1,5%. O orçamento do Estado federal nos EUA era muito fraco até a crise de 1929, de menos de 2% do PIB. Durante a crise dos anos 1930, subiu a 10% do PIB. Na Segunda Guerra Mundial, foi a 15%-20% do PIB. Na crise dos anos 1930, o New Deal de (Franklin) Roosevelt transformou completamente o alcance do governo federal. Hoje, na Europa, passar de 1% a 1,5% do PIB é algo que não deve ser exagerado. Se quisermos ir além e reconciliar as opiniões públicas em uma construção europeia, penso que teremos necessidade de bem mais democracia e transparência. Hoje, temos um sistema institucional que funciona na regra da unanimidade em todas as questões orçamentárias e de impostos. Se está prestes a decidir por unanimidade, no próximo Conselho Europeu, a emprestar € 500 bilhões, sem saber como isso será reembolsado. Daqui a cinco ou dez anos se vai novamente decidir por unanimidade quais impostos irão reembolsar essa dívida. É uma construção institucional e política bastante surpreendente. Além do mais, é uma falsa unanimidade, pois os grandes países fazem pressão para que os pequenos aceitem, e tudo isso se dá entre quatro paredes, os cidadãos não sabem que argumentos são usados pelos diferentes chefes de governo. Essa Europa muito tecnocrática e opaca corre o risco de não ser mais amada pelos cidadãos europeus. Prego por uma forte democratização dessas instituições, para que se possa decidir em uma maioria, no seio de uma assembleia europeia. Acredito que, hoje, haveria uma maioria de cidadãos europeus – se pegarmos os países mais povoados como a Itália, Espanha, França, Alemanha, Portugal -, ao menos na zona euro, para votar uma plano de recuperação mais ambicioso, por meio de um sistema mais igualitário e durável. Esse sistema antidemocrático, baseado no direito de veto de Luxemburgo, Holanda ou Irlanda, impede a adoção de melhores soluções. A mudança de política econômica exige também uma transformação do sistema democrático e político, como no Brasil.

Para reduzir as desigualdades, o senhor defende um imposto anual progressivo sobre o patrimônio que poderia alcançar até 90% para os bilionários, e que, na França, viabilizaria uma dotação de € 120 mil a todo jovem que completar 25 anos.

A visão de socialismo participativo que defendo se sustenta, de uma forma geral, na ideia de uma participação a mais completa de todos na vida econômica, social e política. Isso se baseia em todo um sistema de acesso à educação, à saúde, aos bens fundamentais, a um salário de base. O sistema de uma herança de € 120 mil para todos se acrescenta a tudo isso. É importante, em primeiro, porque a desigualdade de patrimônio é extremamente forte. Os 50% mais pobres na França ou em países da Europa do Leste possuem apenas 5% do patrimônio total. Nos EUA, são 2%. No Brasil, não temos dados sobre as desigualdades de patrimônio, mas certamente devem estar mais próximos dos EUA do que da Europa. O que fazer? Esperar o crescimento, a competição, para difundir o patrimônio? É algo que esperamos há muito tempo. Um dos grandes limites das sociedades sociais-democratas do século XX é que se reduziu a desigualdade de acesso à educação, à saúde, ao direito ao trabalho, mas não se conseguiu diminuir as desigualdades de patrimônio como se desejava. No sistema que proponho, as pessoas que hoje não herdam nada – mais da metade mais pobre da população – receberiam € 120 mil aos 25 anos. Aqueles que atualmente recebem € 1 milhão de herança, ganhariam, após os impostos, € 600 mil. Haveria ainda uma grande desigualdade entre os filhos dos mais pobres e dos mais ricos. Mas isso já faria uma grande diferença. Quando se possui € 100 mil ou € 200 mil em vez de zero, se está em posição muito diferente em termos de poder de negociação em relação ao resto da sociedade e a si mesmo. Com zero euro, se é obrigado a tudo aceitar, qualquer condição de trabalho e salário, pois é preciso pagar o aluguel, as contas, fazer viver a família, não há espaço para projetos. Com € 100 mil ou € 200 mil é muito diferente, se pode recusar certos empregos, criar uma pequena empresa, comprar um imóvel, assumir mais riscos no plano profissional. Muda verdadeiramente a estrutura de poder e de oportunidades na sociedade. É muito mais do que simplesmente uma questão de dinheiro, mas de poder, profundamente modificada por esse acesso de todos a uma pequena propriedade. Creio em uma sociedade em que todos podem ter acesso a uma propriedade de valor razoável. Por outro lado, penso que grandes propriedades de centenas e milhares de euros não são úteis para o desenvolvimento econômico. Ao comparar os níveis de crescimento de prosperidade econômica entre diferentes sociedades ao longo da História, quando aumenta o número de bilionários e a concentração de patrimônio, não noto mais inovação e crescimento. Nos EUA, há muito mais bilionários hoje do que nos anos 1970-80, mas, na realidade, o crescimento foi dividido por dois. Entre 1990 e 2020, o crescimento foi duas vezes menor do que entre 1950 e 1990. A    ideologia de que é sempre mais desigualdade que gera o crescimento, de um ponto de vista histórico, não se comprova.

O senhor assinala a passagem do voto econômico, baseado em questões de classe, a um voto cultural, sustentado em temas identitários, que teria eleito líderes nacionalistas e populistas nos últimos anos, alimentados por um fatalismo face à perspectiva de uma economia justa. Mas se mantém otimista em relação ao pós-pandemia…

Penso que é a ausência de ambição em matéria de reformas econômicas e de redução das desigualdades que alimenta as questões identitárias, xenófobas e nacionalistas. Por muito tempo, se explicou que não havia alternativa econômica possível, mas um só sistema econômico viável, e que a única coisa que os Estados poderiam fazer era controlar as fronteiras. E isso contribuiu a um debate político cada vez mais centrado nessas questões. A solução, para mim, é reabrir o debate econômico. E penso que, desse ponto de vista, a História é um material formidável, pois se observa que sempre há alternativas e diferentes formas de resolver um problema de dívida pública, de educação ou de impostos. É preciso reapropriar no debate cidadão toda essa diversidade de soluções, e em particular a questão da propriedade. Defendo a propriedade social, com mais direitos aos trabalhadores. Na Alemanha ou na Suécia, o fato de que os representantes dos assalariados tenham até 50% do direito de voto nos conselhos de administração melhorou a produtividade das empresas, pois permitiu melhor integrar os empregados nas estratégias empresariais. Os acionários não gostam disso aqui na França, nos EUA ou no Brasil, mas funciona relativamente bem na Alemanha e na Suécia. E penso que se poderia estender essa lógica a todos os países, e também ir mais longe. Proponho limitar o direito de voto dos acionários individuais. Vivemos em sociedades bastante educadas, e precisamos de todo mundo. Todos precisam participar das decisões. A ideia de que uma só pessoa, porque fez fortuna, teve boas ideias ou sorte aos 30 anos, possa continuar a concentrar todo poder aos 50, 70, 80 anos não é adaptada à realidade de nossa época. É preciso reabrir esse debate econômico para sair dessa crispação sobre as questões identitárias.

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