Lei Francesa para combater discurso de ódio na internet entra em vigor no país esvaziada

Conselho Constitucional francês vetou artigos, sob o argumento de que o poder dado às redes sociais poderia ameaçar a liberdade de expressão

FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO

PARIS – A nova lei de combate aos conteúdos de ódio na internet entrará em vigor na França no próximo dia 1°. O governo não contava, no entanto, com a rejeição de seus principais artigos, no último dia 18, pelo Conselho Constitucional. O órgão responsável pela verificação da conformidade dos textos legislativos à Constituição desfigurou a legislação ao retirar seu aspecto punitivo, mantendo apenas o caráter preventivo. Até ser aprovada pela Assembleia Nacional em 13 de maio, a Lei Avia – do nome de sua autora, a deputada governista Laëtitia Avia – foi alvo por mais de um ano de acirrados debates no Parlamento e na sociedade civil. A principal crítica de seus opositores era a transferência para as grandes plataformas digitais e de mídias sociais do controle das postagens supostamente ilegais, o que poderia se revelar uma ameaça à liberdade de expressão em um tipo de “uberização” da Justiça, justamente uma das partes rejeitadas pelo Conselho. A França já dispõe, desde o final de 2018, de uma lei contra as fake news na internet.

A Lei Avia determinava que sites de busca na internet e de redes sociais – como Twitter, Facebook, Youtube ou Google – suprimissem em um prazo de 24 horas conteúdos considerados “manifestamente ilícitos”, visando incitações ao ódio e à violência e injúrias de caráter racista, sexista ou religioso. As multas para as plataformas que desrespeitassem as regras poderiam alcançar até € 1,25 milhão ou 4% do volume de negócios das empresas infratoras. Uma emenda foi acrescida em relação a conteúdos terroristas, com a supressão em um prazo de uma hora e a obrigação de fornecimento de todos os dados sobre a postagem requisitados pelas autoridades.

O Conselho Constitucional considerou que a lei incitaria as plataformas a suprimirem conteúdos assinalados pelos internautas, ilícitos ou não,  constituindo uma “ameaça à liberdade de expressão e de comunicação não adaptada, necessária e proporcional” ao objetivo final. Para os chamados “sábios” do Conselho, as empresas digitais não possuem a “tecnicidade jurídica” ou a capacidade de avaliação do “contexto” das mensagens para julgar, ainda mais em um “prazo extremamente curto”, a ilegalidade das postagens.

A deputada Laëtitia Avia, da República em Marcha (partido do presidente Emmanuel Macron), lamentou a decisão que amputou sua lei, mas disse que não desistirá do combate:

– A decisão do Conselho ainda é recente, vou analisar o que poderá ser feito. Mas não renunciarei. O status quo não é uma resposta para lutar contra o ódio online. Hoje, as plataformas já retiram conteúdos e ameaçam a liberdade de expressão. O objetivo da lei era de retomar o controle disso: lhes dizer o que devem suprimir e como fazê-lo – defende.

As polêmicas em torno da lei começaram desde sua proposição. A nova legislação foi apoiada por organizações como a Liga Internacional Contra o Racismo e o Antissemitismo (Licra) e SOS Homofobia. A SOS Racismo igualmente endossou a iniciativa ao defender como “essencial adotar um texto para combater o ódio na internet”, com a imposição de “obrigações de resultado” para as plataformas digitais.

Já para Maryse Artiguelong, vice-presidente da Liga dos Direitos Humanos (LDH), a legislação era “perigosa” como ameaça à liberdade de expressão.

– Concordo que se deve lutar contra a difusão de conteúdos de ódio online, mas acredito que esta lei não é a boa solução. Para nós, apenas um juiz tem condições de decidir o que é odioso e discriminatório. A lei poderia incentivar as plataformas a retirarem com muita facilidade, sem se questionarem, mensagens que foram denunciadas pelos internautas como ilegais – e que poderiam não ser -, porque as multas a que incorrem seriam muito altas.

Benoît Piedallu, da associação Quadrature du Net, defensora dos direitos e liberdades no espaço digital, celebrou o veredicto do Conselho Constitucional contra a lei:

– Os sites de internet são em geral americanos, não têm a mesma cultura que a nossa, e que usaria pessoas mal pagas nos países asiáticos ou a inteligência artificial, incapaz de compreender o contexto da expressão, se foi uma citação ou uma sátira. Haveria o risco de se eliminar o máximo de propósitos potencialmente litigiosos, e também de impor a autocensura para evitar o crivo dos algoritmos.

O problema da violência e de ameaças na redes sociais é uma realidade, admite, mas a solução, na sua opinião, passa mais pela prevenção do que pela punição:

– É preciso pegar a questão pela raiz e investir em educação – defende. – Devemos educar as populações a se expressarem na internet. É algo importante e muito pouco proposto.

A lei francesa se inspirou na legislação alemã NetzDG, em vigor desde 1° de janeiro de 2018, igualmente fruto de controvérsias domésticas. O texto alemão transfere a responsabilidade da supressão de conteúdos de ódio para as plataformas digitais, em 24 horas, com multas previstas de até € 50 milhões. A agência de inteligência BfV avaliou que a NetzDG dificultou o recrutamento por parte de grupos da extrema-direita violenta. Mas para William Echikson, pesquisador do Centre for European Policy Studies (CEPS), de Bruxelas, e autor de um estudo sobre a experiência alemã, a NetzDG “não mudou muita coisa” no controle dos propósitos odiosos:

– Nessa questão, é difícil encontrar algo que promova uma verdadeira transformação sem fazer censura. Em uma democracia, não há leis que possam fazer isso facilmente. O que pode ser considerado incitação à violência? É algo complicado de responder sem instituir um sistema chinês, o que ninguém quer. A lição que fica para mim é a da impossibilidade de manter a internet pura, só com coisas boas, sem fazer como Pequim.

Echikson evoca o debate sobre a lei contra a propaganda terrorista no âmbito do Parlamento Europeu, ainda à espera de um desfecho:

– É um discussão similar ao que se passa na França e na Alemanha, não se consegue decidir o que é uma incitação ao terrorismo. Conversei com um deputado da Estônia no Parlamento Europeu, que estava coordenando o projeto de lei, e ele argumentava que não iria deixar os húngaros do primeiro-ministro Viktor Orbán lhe dizerem que grupos que consideravam como terroristas deveria censurar. A Europa não consegue chegar a um acordo sobre os parâmetros da liberdade de expressão. Há países mais restritivos do que outros.

Da lei francesa que entrará em vigor na semana que vem, sobraram três elementos para enfraquecer o ódio na internet: a criação do Observatório do Ódio Online, que reunirá plataformas e associações de lutas contras as discriminações, também de uma procuradoria de Justiça especializada em questões digitais, e a adoção de medidas de estímulo à educação da expressão na internet.

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