Christiane Jatahy: primeiro nome brasileiro a dirigir um espetáculo na Comédie-Française

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Christiane Jatahy começa neste novembro os ensaios para a “A Regra do Jogo”, na Comédie-Française. ©Marcelo Lipiani

FERNANDO EICHENBERG / FOLHA DE SÃO PAULO

PARIS – Christiane Jatahy observa os despidos muros de sua provisória morada em Paris e confidencia, inconformada: “Preciso continuar construindo minhas estantes. Sempre tive um prazer enorme de ficar admirando uma biblioteca, adoro a ideia de paredes repletas de livros, é algo que me apazigua”. Nascida em 1968, ela viveu a primeira parte de sua infância carioca de forma bastante solitária, imersa em numerosas leituras que estimularam sua imaginação e forjaram sua “sensibilização e o olhar para o mundo”. No segundo ato, até os 14 anos, a família avolumou, e o aspecto coletivo se afirmou pelo teatro. Com tios, primos e outros parentes, encenava peças para serem apresentadas nas celebrações familiares, em aniversários ou festejos natalinos. Na juventude, veio a descoberta da filosofia e do cinema, com sessões ininterruptas em cineclubes das 14h às 22h. Adulta, passou a criar no Brasil seus próprios espaços cênicos, mas, principalmente, a quebrar barreiras. Hoje, aos 48 anos, impõe-se com seus singulares espetáculos teatrais nos palcos da Europa, e se prepara para conquistar os Estados Unidos.

Sua assinatura de criação é a constante interação de cinema e dramaturgia, numa mistura de realidade e ficção em um teatro assumidamente político – sem ser panfletário – e movido pela radical remoção das fronteiras entre a cena e o público. “O receptor é o grande foco do meu trabalho. O ator afeta o espectador, que afeta o ator. É uma retroalimentação contínua, porque penso que o teatro é o que está acontecendo entre as pessoas. Tudo é criado para que o inesperado aconteça. E é o ‘acidente’ que vai fazer com que seja uma relação viva e dinâmica”, sustenta, acomodada em seu apartamento temporário no Centquatre, centro cultural parisiense que a acolhe como artista associada desde 2013. Seu próximo projeto é coerente com suas audaciosas escolhas: Christiane Jatahy será o primeiro nome brasileiro a dirigir uma criação na Comédie-Française, a companhia teatral mais antiga do mundo, fundada em 21 de outubro de 1680 por decreto do rei Luís XIV. Sua estreia está marcada para 4 de fevereiro de 2017, com o espetáculo “A Regra do Jogo”, baseado no homônimo clássico cinematográfico de Jean Renoir, de 1939.

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A histórica Sala Richelieu, principal palco da Comédie-Française, onde Jatahy fará sua estreia. ©Comédie-Française

Engana-se quem pensa que a montagem seguirá os ditames do teatro clássico característico da secular instituição francesa. Jatahy integra a cota de artistas convidados com liberdade de criação contemporânea, e levará para a histórica Sala Richelieu sua costumeira ousadia cênica, já demonstrada em seus trabalhos anteriores. Sua mais recente trilogia, na qual explora novos limites na relação do espaço-palco com a plateia e na fusão cinema-teatro, recebeu diversos prêmios no Brasil e elogios de crítica em festivais internacionais e em sua turnê pelo continente europeu. “Julia”, de  2011, é uma adaptação à realidade social brasileira da obra “Senhorita Julia”, de August Strindberg, numa aposição de teatro e cinema ao vivo e pré-gravado. “E se elas fossem para Moscou?”, de 2014, criada a partir da obra “As Três Irmãs”, de Anton Tchékhov, evoca utopias e questiona a capacidade de mudança num filme-performance construído em dois espaços entrelaçados, onde o público pode escolher seu ponto de vista da trama. “A Floresta que Anda”, de 2015, encerra o ciclo numa reflexão sobre os atuais sistemas de dominação no mundo, a ganância e a usurpação de poder, inspirada em “Macbeth”, de William Shakespeare, por meio do uso de quatro telas gigantes e uma filmagem, edição e projeção feita ao longo da apresentação.

Na Comédie-Française, a diretora-convidada não terá a mesma liberdade exercida em suas precedentes criações. O elenco foi selecionado entre a trupe de atores da casa. O tempo reservado aos ensaios, com início neste mês de  novembro – quando mudará novamente de endereço -, será mais curto em relação à preparação de suas demais peças. Sua atuação estará reservada à concepção e realização do espetáculo, sem interferir durante as encenações ao vivo. O espaço, um teatro de configuração à italiana, não é idealmente modulável. Nada, no entanto, que não possa ser sacudido por seu espírito rebelde. “É muito radical o que eu estou propondo para a Comédie. Eu sou mesmo radical, mas não é gratuitamente, é porque acredito que aquilo tem um sentido, um objetivo. Às vezes, os limites existem não para serem quebrados, mas transformados, e isso também é político. O grande radicalismo na Comédie é porque será cinema e teatro. O público vai dizer: ‘Estou na casa do teatro, e estou vendo um filme’. E será um filme feito naquele espaço. Mas depois o teatro vai aparecer”.

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Éric Ruf, diretor da Comédie-Française, aposta na “radicalidade” da brasileira. ©Brigitte Enguérand

Éric Ruf, diretor da Comédie-Française, conta ter saído “extasiado” da apresentação de “Julia”, no Centquatre. Seu interesse pela brasileira cresceu após ter assistido “E se elas fossem para Moscou?”, em Louviers, na Normandia. “Christiane Jathay é a especialista em fazer o maior desvio possível para atingir o centro mais puro e atual das obras. Na liberdade que assume com as réplicas, a narração, e na aparente imprecisão de sua iniciativa, ela alcança algo extremamente preciso, pertinente e verdadeiro, numa nova leitura dos textos”, avalia. O convite para a Comédie surgiu com naturalidade, embora ele não esconda uma certa inquietude com esta inédita colaboração franco-brasileira: “Não sei o que vai dar. Sua radicalidade nem sempre me tranquiliza quando penso no público da Comédie-Française. Aqui as margens são mais estreitas, e por enquanto ela faz de conta não entender isso (risos). Sua metodologia de representação é bastante contemporânea, algo complexo para nós. Por outro lado, ela me dá uma extrema confiança pela maneira atenciosa com que trata o espectador. Eu lhe disse algo que nos fez rir juntos: ‘Aqui na Comédie, você pode dar golpes de judô nas pessoas, mas têm de acompanhá-las na queda no tatame. Se você jogá-las por cima do ombro e deixá-las caírem sozinhas, elas vão se machucar e não voltarão’. Ela possui todos os instrumentos necessários para deixar a plateia desconfortável, mas sou fascinado por sua benevolência”.

Jatahy confirma suas boas intenções em relação ao espectador e seu desinteresse artístico por um teatro “agressivo e violento”: “Acho que o público tem todo o direito de ser público. Detesto certo tipo de teatro interativo. Mesmo em “A Floresta…”, em que o espectador participa de muitas coisas, trata-se de uma performance invisível. Primeiro, porque as pessoas têm escolha, é algo sugerido, e quem quer, vai. E elas estão no meio de outras pessoas, ninguém sabe se estão ou não fazendo parte do espetáculo. Foi o lugar mais extremo que já cheguei na relação com público. Porque acho que é sobre escolha, não sobre imposição. Aliás, é assim para tudo na vida”, resume.

Em sua versão de “A Regra do Jogo”, Jatahy assegura ter mantido inalterados “98%” dos diálogos escritos por Jean Renoir e Carl Koch, no roteiro original inspirado em “Os Caprichos de Marianne”, de Alfred de Musset, e “As Bodas de Fígaro”, de Pierre-Augustin de Beaumarchais. “Renoir aborda de forma sutil um momento político, na proximidade da Segunda Guerra Mundial, e trata das relações sociais entre patrões e empregados”, salienta. Sua intervenção na obra se dá em outro registro de criação. O personagem de Christine de la Chesnaye, austríaca no filme, é uma marroquina na peça, intepretada por Suliane Brahim. “É a única atriz de origem árabe da Comédie, e acho isso muito significativo”, ressalta. O aviador André Jurieux, recordista da travessia do Atlântico, é transformado por Jatahy em um navegador que constrói um veleiro e se aventura no mar Mediterrâeno. “Em sua travessia, ele se defronta com um barco de imigrantes, que afunda. Ele salva os imigrantes, e se transforma em heroi. E este homem que salva um barco de refugiados, porque tem uma atitude humanitária, morre no final”, acrescenta. Suas alterações na história não terminam por aí: “Para completar, o personagem que faz o Schumacher (Édouard, o guarda de caça da propriedade no filme), um alemão, na minha versão é um africano, um ator negro, o Bakary Sangaré. O segurança da casa, negro, mata por acidente o heroi, porque é apaixonado por uma marroquina. Estamos falando sobre o agora, e sem mudar os diálogos. Por isso queria montar este texto, acho importante que estas coisas sejam ditas. E isso é lindo, porque as falas são as exatamente as mesmas”. Para Éric Ruf, trata-se de uma “verdadeira aposta”: “Ela está programada para nosso espaço mais emblemático, a Sala Richelieu, um lugar bastante visado. Para a França, ela ainda não se mostrou totalmente. E não poderá acompanhar o espetáculo em toda sua temporada. Ao mesmo tempo, é uma oportunidade para ela testar sua arte em outros limites”. Apesar de criar em território estrangeiro, em seu novo desafio francês Jatahy terá a segurança da escolta de seus fiéis colaboradores brasileiros de muitos espetáculos: o cenógrafo Marcelo Lipiani e o diretor de fotografia Paulo Camacho. Ela garante não ter receios: “Acredito que podemos fazer uma coisa com tanta qualidade, que as pessoas vão aderir. E os espaços têm de continuar sendo vivos. O teatro não pode ter este lugar de museu. Precisa continuar falando sobre o tempo presente. E falar sobre o tempo presente é usar as relações e os dispositivos de hoje”.

Ao discorrer sobre suas obras, Jatahy define sua trajetória teatral como um “novelo”. “Digo novelo e não linha, porque as criações se embolam e se tocam umas nas outras. ‘Julia’ só existe porque fiz ‘A Falta Que Nos Move’ (2005), quando assumi a questão do cinema na minha vida. E também porque fiz ‘Conjugado’ (2004, monólogo interpretado por Malu Galli e primeira peça da trilogia ‘Uma Cadeira para a Solidão, Duas para o Diálogo e Três para a Sociedade’)”. Na longa lista, cita ainda a trilogia “Peter Pan” (1996), “Alice” (1998) e “Pinóquio” (1999); “Carícias” (2001), de Sergi Belbel – “um texto violento pelo qual fui super mal compreendida na época” -, ou a ópera “Fidelio” (2015), de Beethoven, com direção musical do maestro Isaac Karabtchevsky no Theatro Municipal do Rio – “um exercício para o que farei na Sala Richelieu”.

Além do Centquatre, Jatahy foi convidada no ano passado a integrar a equipe de colaboradores do prestigiado Odéon-Théâtre (coprodutor, junto com o Sesc-SP, da turnê europeia de “A Floresta…”), dirigido por Stéphane Braunschweig, para o qual criará um novo espetáculo na temporada 2017-2018. Braunschweig já havia chamado a brasileira para apresentar suas criações quando comandava o Théâtre National de la Colline. Seu primeiro contato com a cena de Jatahy, no outono de 2014, com ‘E se Elas Fossem para Moscou?’, no Centquatre, ele também não esquece: “Tive a sensação de fazer uma verdadeira experiência de teatro. Ela tem uma maneira muito forte e perturbadora de se dirigir ao público, e consegue um magnífico equílibrio entre o trabalho formal, do uso da tecnologia, e o trabalho com a emoção e os atores. Sou muito sensível aos atores, e o engajamento das três atrizes neste espetáculo, principalmente de Julia Bernat, é realmente muito impressionante”.

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A atriz Julia Bernat, em “A Floresta que Anda”. ©Divulgação

Aos 26 anos, Julia Bernat é a única atriz presente em todas as peças da última trilogia de Jatahy. Para ela, a diretora é um pouco “bruxa”, com uma intuição incomum, sempre conseguindo levar o ator aonde deseja: “A Chris tem muito essa coisa de gostar do ator em estado de risco. Você tem de estar disposta a se expor e a viver o risco. É sofrido, e ao mesmo tempo é bom pelo fato de ser arriscado. Ela trabalha com muito improviso, com os sistemas dramatúrgicos do espanhol José Sanchis Sinisterra (de quem Jatahy montou “Leitor por Horas”, em 2006), que usamos muito em ‘E se Elas…’. E trabalha também com o sistema “Viewpoints”, mas muito da maneira dela, que tem a ver com reagir o tempo inteiro no presente. Ela gera muito este treino do estado presente, do jogo com o outro ator, da relação com as coisas em volta, do ator que cria e reflete sobre o que cria, que está manipulando e sendo manipulado”. Jatahy se reivindica como uma diretora que trabalha sobretudo para o “encontro do ator consigo mesmo e com o outro ator”: “Trabalho muito mais sobre a resposta do que sobre a ação, e e isso exige que os atores estejam muito presentes em cena. É um trabalho sobre a linguagem”, enfatiza.

Stéphane Braunschweig destaca a forte dimensão política do teatro de Christiane Jatahy. E usa o exemplo da parte final de “A Floresta…”, quando as quatro telas onde é projetado o filme protagonizado pelos espectadores investe sobre a própria plateia: “São nossos corpos, nossos rostos, somos nós a floresta que avança e que vai destruir Macbeth. De uma certa forma, quer dizer que temos nosso destino em nossas mãos. Talvez seja uma utopia pensar que prossigamos todos juntos, mas é também um tipo de apelo para que nós, seres humanos, sejamos ativos em nossas vidas, que não nos deixemos absorver por esta vontade de destruição que há por todo o lado. Não é uma iniciativa militante, mas sim de associar o público, provocar seu olhar para algo político”. Jathay postula este discurso político em sua obra: “É olhar para este mundo tão aparententemente distópico e sombrio, e não somente assumir responsabilidades, mas pensar que é coletivo o movimento de transformação. Para mim, é totalmente indissociável a proposta de mudança via a experiência artística sugerida”.

Como cidadã preocupada com os rumos do Brasil e do mundo, ela é transparente em suas opiniões sobre a palpável política do presente, e se manifestou contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff. “Acho que estamos vivendo um momento muito perigoso, de radicalismos. E a palavra radicalismo, aqui, não é boa, porque é de desrespeito. É um debate sem escuta, as pessoas não querem ouvir a opinião do outro. Isso leva a extremismos. Acho que temos uma democracia muito nova e frágil, ainda estamos entendendo o que é isso, com uma situação social insustentavelmente desigual. Não acho que o que estava sendo feito era suficiente, nao sou petista, tenho muitas críticas ao governo do PT, mas acho que se está falando de uma questão democrática, sobre olhar e saber da responsabilidade social que deve se ter neste país, e que isso tudo está sendo ignorado de uma maneira agressiva e violenta”, desabafa. Na visão ampliada para o planeta, condena a supremacia de um “sistema econômico desumano”, gerador de estrangulamentos. “‘A Floresta…’ fala sobre isso. As coisas estão explodindo. Tenho algo inerente que é um certo otimismo, uma esperança, pois o medo é paralisador. Mas estamos vivendo uma época bem estranha. Às vezes recebo pedidos de projetos tipo para o ano 2021. Como estará o mundo em 2021? Antes, não pensava nisso, mas, hoje, sim”.

Éric Ruf espera que a veloz ascensão internacional de Jatahy não seja “um trampolim de impulso demasiado”. “Não é por nada que ela está sendo solicitada por todo o lado”, nota ele. Mas ela não parece ter medo das alturas: “Também espero não cair do trampolim. Mas ainda que esteja sendo tudo rápido, a história que me antecede é muito longa. E acho que isso é uma vantagem”, conclui. Em sua permanente e itinerante efervescência criativa, Christiane Jatahy cumpre com fidelidade uma atípica rotina: construir novas estantes de livros em suas nômades residências e destruir fronteiras artísticas pelos palcos do mundo.regra-do-jogoCartaz de “A Regra do Jogo”, clássico do cinema adaptado pela leitura contemporânea de Christiane Jatahy.