A incrível história da chef brasileira Alessandra Montagne, de Poté (MG) para as cozinhas de Paris

Alessandra Montagne cativou os fran,ceses com menus caprichados a preços justos. Fotos ©Cécile Chabert

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Recentemente convidada para participar da elaboração do menu de um jantar servido em um evento gastronômico nos suntuosos salões do Quai d’Orsay, a sede do Ministério das Relações Exteriores francês, à beira do rio Sena, a chef brasileira Alessandra Montagne admitiu se sentir, por momentos, em um sonho acordado.

– Não conseguia parar de enxergar aquela menininha da roça, de pé no chão, vestido rasgadinho. Será que este povo tinha noção de que estava chamando a menina de Poté para cozinhar no Quai d’Orsay? – indaga, rindo. – Foi um grande orgulho estar na cozinha naquela noite ao lado de chefs como Guy Savoy e Gérald Passédat. No final, o Alain Ducasse veio me dizer que meu prato estava ótimo. Fiquei super-honrada, a França me deu muitas oportunidades.

Em frente ao seu restaurante, no 13° distrito de Paris.

No comando das panelas de seu concorrido restaurante Tempero, no 13° distrito de Paris, um endereço elogiado pelos reputados guias gastronômicos Michelin, Gault&Millau ou Le Fooding, Alessandra assegura não esquecer suas origens. Carioca nascida no Vidigal, se mudou ainda bebê para Minas Gerais. Sua mãe era muito nova e optou por deixá-la sob os cuidados dos avós, na fazenda em que viviam, na pequena localidade de Poté.

– Sempre adorei cozinhar. Na infância, brincava de casinha, e minha avó fazia panelinhas de barro para mim. Mais tarde, cozinhava coxinhas e vendia na escola, na hora do recreio, para ganhar dinheiro. Nunca esqueço que já passei necessidade na vida. No restaurante, quando pedem para fazer foto comigo, acho superestranho, fico toda sem graça.

Ela mesma teve um filho, André, ainda bastante jovem, aos 17 anos. Em 1999, aos 21, decidiu tentar a vida na França, onde já morava sua mãe. Começou a aprender francês e a trabalhar como babá, até ser empregada como secretária e depois assistente de direção em uma empresa de material médico. Mas jamais relegou o paladar. Desde que pisou em solo francês, diz ter sido arrebatada pelos onipresentes odores culinários nas ruas e pelo valor da gastronomia no país:

– Para mim, foi surreal. Queria aprender, saber, entender. Comecei a comprar livros de culinária, e quando me dei conta era só o que lia. A cozinha começou a ocupar muito espaço na minha vida. Quando tinha aniversário de amigos ou piqueniques, era sempre a encarregada da comida, e as pessoas me perguntavam: “Por que você não abre um restaurante?”. E comecei a achar que seria possível.

Já casada com Olivier, um francês de origem vietnamita, com quem teve uma filha, Taís, criou um site: o casal cozinhava em casa e fazia entregas de refeições exclusivamente no bairro e somente aos domingos à noite. Em três meses, se viram obrigados a encerrar o serviço, pois não davam conta da demanda. Em 2008, aos 30 anos, resolveu dar o passo definitivo. Abandonou o emprego e se inscreveu na escola culinária Jean Drouant.

– Foi engraçado, antes não percebia como aquilo era tão importante para mim, a cozinha estava na veia. Não conseguia dormir à noite, louca para o dia amanhecer e ir logo para a escola – conta.

Prosseguiu sua formação em estágios com os conhecidos chefs William Ledeuil, do Ze Kitchen Galerie, e Adeline Gattard, do Yam’Tcha, e, junto com o marido, se lançou na abertura de seu próprio restaurante. O Tempero, no número 5 da rua Clisson, próximo a sua casa, foi inaugurado em 8 de março de 2012, data de seu aniversário e, não por acaso, Dia Internacional da Mulher.

– Não contávamos com muitos recursos, e foi um enorme risco, porque se não desse certo não teríamos mais nada. Mas dinheiro é feito para pagar sonhos. No primeiro dia, o restaurante encheu, não havia comida suficiente para dar para o povo. Nunca pensamos que daria certo de cara. Desde então, está sempre lotado, não tem dia ruim – comemora.

Alessandra reivindica uma cozinha afetiva, feita com produtos locais. ©Grégory Le Moal

O restaurante, de apenas 28 couverts, serve um menu de entrada-prato-sobremesa, com três opções para cada, por € 23,00, e abre para almoço em todos os dias da semana, mas apenas nas quintas e sextas-feiras para o jantar. O preço acessível segue a política da casa de que “todo mundo tem direito de comer bem”.

– Não é porque se tem pouco dinheiro que se deve comer um sanduíche ou ir no McDonald’s. E decidi abrir menos dias para privilegiar a vida de família. Fiz o cálculo de quanto precisava ganhar por mês para poder pagar os salários dos quatro empregados, dos fornecedores, o aluguel, os impostos, e vi que dava com sete serviços. Não ganho muito, mas não iria comprar o tempo com meus filhos com mais dinheiro.

Hoje separada do marido, a chef elabora sozinha as iguarias do Tempero. Apenas um prato foi perenizado no cardápio: um porco confit, cozido durante 17 horas no forno. O resto fica por conta do improviso de sua criatividade e de seu trabalho com produtores locais e produtos de estação.

– Minha cozinha é de instinto. Pego o que os fornecedores me trazem das fazendinhas aqui perto e penso os pratos com o que a natureza me dá. Não tenho menu impresso. Não gosto de ter tudo certinho, quadradinho, preciso me sentir livre, senão não rola. E também não jogo nada fora, é desperdício quase zero.

Chef engajada, ela pode ser vista também cozinhando para refugiados ou como convidada em eventos populares – como a tradicional festa anual do centenário jornal L’Humanité – ou debates na Unesco sobre alimentação sustentável e de respeito ao meio ambiente.

– Compro três mil quilos de legumes por ano, imagine o estrago se fosse me abastecer em outros países, com produtos do Marrocos ou da Austrália? É uma responsabilidade que temos. E é mais barato comprar aspargos de Madagascar do que de um produtor distante dez quilômetros daqui.

A chef brasileira vai abrir um segundo restaurante parisiense, em outubro.

Aos 41 anos, Alessandra se prepara para uma nova aventura. Em outubro, abrirá um segundo restaurante, maior, com 80 couverts e 12 empregados. A ideia é fazer um estabelecimento de nível gastronômico superior, com maior exigência culinária.

– O prefeito aqui do bairro me ofereceu um lugar superbonito, em frente ao cinema MK2 Bibliothèque. Ainda não sei que nome vou dar. Será uma cozinha mais elaborada. Mas acho que ficaria muito estressada se ganhasse estrela, prefiro trabalhar quietinha no meu cantinho.

Para conquistar seu lugar no disputado cenário da capital da gastronomia, a brasileira enfrentou variados obstáculos, entre eles o de ser mulher em um meio ainda predominantemente masculino:

– Para mulher, há mais freios. Existe, sim, discriminação, para mulher e para estrangeira. Me lembro quando, há cinco anos, fui capa da revista Gault&Millau. A pessoa que veio me fotografar disse: “Você é a primeira chef mulher, e também estrangeira e negra, a ser a foto de capa”.

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