A musa eterna Jane Birkin fala sobre a beleza aos 72 anos, a carreira e como a música a ajudou a superar a morte da filha

Jane Birkin em seu apartamento parisiense, com sua buldogue Dolly. © Carole Bellaiche

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Certa vez, a mãe de Jane Birkin, a atriz britânica Judy Campbell, musa do dramaturgo Noël Coward e alcunhada pelo fotógrafo de moda Cecil Beaton como “a mais bela mulher da Inglaterra”, de súbito, lhe disse: “It’s gone” (sumiu). “O que, mamãe?”, replicou a filha, pensando em algum banal objeto perdido. A mãe respondeu: “Minha beleza. Foi-se”. Hoje, aos 72 anos, a célebre atriz e cantora confessa que, recentemente, se viu absorta na mesma reflexão materna. “Minha mãe deveria ter uns 70 anos quando me saiu com essa, e eu, uns 40. Hoje, a compreendo perfeitamente”, disse, enquanto sorvia uma xícara de chá em seu aprazível apartamento parisiense, nas proximidades da praça Saint-Sulpice, em uma conversa sonorizada pelos roncos de sua inseparável buldogue Dolly, estirada no tapete.

Inglesa de nascimento, Jane Birkin começou cedo sua vida artística. Aos 17 anos, debutou nos palcos londrinos em uma peça de autoria de Graham Greene. Aos 19, se casou com John Barry, oscarizado compositor britânico, reputado pelas trilhas sonoras dos filmes de James Bond. No cinema, despontou em 1966 por meio de duas aparições no controverso filme “Blow up” (Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1967), de Michelangelo Antonioni, em que provocou escândalo ao protagonizar uma das pioneiras cenas de nu frontal nas telas.

O icônico casal Jane Birkin e Serge Gainsbourg. © Reg Lancaster/Getty Images

Em 1968, conheceu, em Paris, Serge Gainsbourg, com quem viveu uma intensa relação por 12 anos. Quando os dois se encontraram, ela era uma jovem divorciada, com uma filha bebê no colo e a carreira ainda incipiente. O poeta maldito e músico irreverente, 40 anos recém-completados e artista confirmado, ainda sofria as dores da ardente e efêmera paixão que vivera com uma Brigitte Bardot no auge de sua fama e forma. A química funcionou, e Jane & Serge formaram um dos casais mais emblemáticos e fotogênicos de sua época, onipresente em capas das mais diferentes publicações e símbolo da liberalização dos anos 1970.

Adotada pela França, Jane Birkin atuou em algumas peças de teatro e em quase 80 filmes – dirigidos por nomes como Jacques Rivette, Jean-Luc Godard e Agnès Varda -, lançou mais de uma dezena de discos, e também se engajou como militante por causas humanitárias e lutas cívicas. Mãe de três filhas – a fotógrafa Kate Barry (falecida em 2013), do casamento com John Barry; a atriz e cantora Charlotte Gainsbourg, de sua relação com Serge Gainsbourg, e a cantora Lou Doillon, cujo pai é o cineasta Jacques Doillon -, a ex-sex symbol e hoje avó permanece uma artista ativa e curiosa. Atualmente em turnê internacional do espetáculo em que interpreta canções de Gainsbourg, acompanhada por uma orquestra, acaba de publicar o segundo volume de seus diários íntimos (“Post-scriptum”, ed. Fayard), escritos desde os 12 anos, e prepara um novo álbum, em parceria com o músico Etienne Daho.

Catapultada ao status de ícone, ser clicada desnuda pelas lentes dos melhores fotógrafos se tornou para ela quase uma rotina. A série produzida para a revista Lui, no Natal de 1974, virou uma edição cult. “Ficava absolutamente feliz. No meu diário, escrevi: ‘Oh, que felicidade! A revista Playboy americana quer fazer três páginas comigo’. Visivelmente, ficava orgulhosa e contente com isso”, conta. No Festival de Cinema de Cannes, desfilou pelo tapete vermelho com um vestido Saint Laurent invertido, a parte de trás à frente. Ainda em seu original vestuário, encurtou um vestido de Paco Rabane a um comprimento microscópico, e só depois percebeu que, no espocar dos flashes dos fotógrafos, a roupa se tornava transparente. “Se soubesse, não teria colocado calcinha!”, disse recentemente, em meio a provocativas risadas.

Jane Birkin: “Penso que as atrizes de hoje são um pouco mais corajosas nisso, não são tão dominadas pela moda”. ©Nico Bustos

Hoje, no entanto, quando revê as imagens daquela época, não hesita em qualificar a Jane Birkin dos 40 anos de idade como “mais interessante”. “Deve haver boas fotos minhas em 1968, mas eram repletas de artifícios e de maquiagem. Lembro que dormia com um crayon embaixo do travesseiro, de medo que John Barry notasse que não tinha os olhos redondos. Para aqueles tempos, estava ok, mas como uma imagem de si mesma, não se vê o caráter das pessoas. Era como uma gravura de moda de David Bailey, não tão bem como Jean Shrimpton e, talvez, não tão original como Twiggy, mas um pouco nessa linha. Para atuar no filme ‘Je t’aime moi non plus’, Serge me fez tirar toda a maquiagem. Jacques fez o mesmo em ‘A filha pródiga’. E é tão belo assim. Por que ter tanto medo de ter olhos pequeninos e uma boca grande? Penso que as atrizes de hoje são um pouco mais corajosas nisso, não são tão dominadas pela moda. É bonito ver as verdadeiras pessoas”.

Severa em sua autocrítica, por muito tempo ela se considerou apenas como um belo rosto, sem nenhum talento: “Eu era apenas bonita. Você tem a sensação, desde o início, de não ter merecido um olhar ou um amor total das pessoas. É um mal-entendido, não é possível, você não merece isso”. Serge Gainsbourg transformou, segundo ela, seus defeitos em qualidades, a estimulou a ousar no cinema e a cantar nos palcos, e a reconciliou consigo mesma. “O primeiro defeito, era por não ter seios. Quando estava no internato, zombavam de mim por ser metade menino, não era algo agradável. Conheci um jovem uma vez que me disse que isso não era importante: ‘We can get over it’ (podemos superar isso). Mas era algo raríssimo. E um homem como Serge, que esteve com as mais belas mulheres, Brigitte Bardot por último, confessar que me achava exuberante sem seios, foi inesperado. Meu sotaque também era considerado um defeito, mas ele não queria que o perdesse. E gostava também da minha grande cesta de vime”, encerra a lista, rindo.

Em frente à casa onde morou com Serge Gainsbourg, no número 5 bis da rua de Verneuil., hoje fechada. © Carole Bellaiche

O nome Birkin evoca a famosa bolsa da marca Hermès, que leva a assinatura de sua criadora. A peça surgiu por acaso no início dos anos 1980, pela coincidência de um encontro com Jean-Louis Dumas, na época diretor da marca de luxo francesa, em uma viagem de avião. Rabiscada em um voo Paris-Londres, a bolsa Birkin se tornou um it bag, acessório obrigatório de celebridades. Mas no dia a dia, Jane era conhecida por levar para todo lado, pendurada em seu braço, sua cesta de vime, comprada em um mercado português de Londres, e com a qual aparece, inclusive, no filme “A piscina”, em que contracena com as estrelas Romy Schneider e Alain Delon.

Entre os defeitos dos quais não conseguiu se livrar, está um sentimento de culpabilidade que a persegue desde a infância, e uma falta de confiança em si mesma. Ela se diz contente em não estar mais apaixonada, porque “quando não existe o amor, não existe a dor”: “Vejo o que faz de mim a paixão amorosa. É o pânico, o sofrimento. Se alguém está um pouco atrasado, é certamente porque encontrou outra pessoa. E isso se percebe. Se olho no espelho, minha feição é de estresse. Não é a expressão leve e engraçada pela qual me amaram no início. Fico tensa, miserável e insegura. É chato. Não é algo de que sou orgulhosa”.

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Seu inconfundível sotaque, do qual jamais conseguiu se desvencilhar, acabou se impondo como uma marca pessoal. E foi sua voz que a alçou à fama ao interpretar em versos de sensualismo explícito e gemidos lúbricos “Je t’aime moi non plus”, furor erótico de 1969 composto por Serge Gainsbourg. Censurada pelo Vaticano e em inúmeros países, a canção se consagrou como um hit mundial, vendida em um milhão de discos de vinil em apenas alguns meses – 140 mil no Brasil, até ser interditada pelo regime militar. “Nunca pensei que a música poderia causar tudo isso. Preferia que meus pais não escutassem a parte das respirações. Tinha consciência de que era um pouco ousado para eles e, na hora, saltava a agulha do disco (risos). Mas para o resto do mundo, realmente não tinha ideia da possível repercussão”, admite.

Ela se sentia recompensada por pequenas vitórias relacionadas a sua imagem. Certo dia, se deparou com uma revista na qual uma jovem revelava que Jane Birkin havia mudado a sua vida ao fazê-la se sentir melhor pelo fato de ter poucos seios. Outra vez, lhe contaram que na Espanha da ditadura franquista, “Je t’aime moi non plus” soou para muitos como um sopro de liberação. Mas considera exagerado quando lhe sugerem que o mítico casal Jane & Serge quebrou códigos da época. Aceita que puderam “encarnar uma certa forma de liberdade”, com seus dezoito anos de diferença, seu estilo de vida mundano e sua ausência de tabus. Na definição de Gainsbourg, não formavam um casal “imoral”, mas “amoral”.

Na avant-première do filme “Slogan”, em 1969, quando conheceu Serge Gainsbourg, com vestido transparente e sua cesta de vime. ©Reprodução

Seus embates não se limitavam a uma revolução dos costumes. Jane viajou à Bósnia, ao Haiti, à Birmânia ou a Japão para acudir populações em situações de guerra ou desastres naturais. Militou contra a pena de morte e, logo que desembarcou na França, participou de manifestações pela legalização do aborto. “Uma amiga havia me contatado para encontrar alguém na Inglaterra para fazer um aborto. As jovens que tinham dinheiro, faziam na Suíça ou na Inglaterra. As pobres não tinham opção, e ainda havia o problema de consciência. Era preciso defender as jovens em dificuldades, havia também uma razão social”, justifica.

Para ela, as atuais lutas das mulheres, revigoradas pelo movimento #MeToo, constituem uma revolução sem volta: “Só por isso, já podemos nos alegrar:  nunca mais será como antes”. Ao mesmo tempo, lamenta a polêmica envolvendo sua amiga e atriz Catherine Deneuve, por ter assinado a carta de 100 mulheres francesas com críticas ao que seria excessos do movimento. “Ela foi arrastada para a lama. Não gosto quando se julga assim. Mas, hoje, somos muito juízes. É uma época estranha”. Da França, diz também acompanhar a situação política no Brasil e as recentes pressões exercidas sobre os artistas: “Estaria lá com eles se isso pudesse ajudar em algo”, se prontificou.

Foi a arte que a salvou de um período sombrio. Em 11 de dezembro de 2013, sua filha Kate, 46 anos, teve uma queda letal do quarto andar de seu apartamento em Paris, em um provável sucídio. Pouco antes, a própria Jane havia sido confrontada à morte, em uma longa batalha vencida contra a leucemia. “Minha própria história não me atingiu muito. O pior sempre me pareceu perder os outros. Esse é o drama real. Tinha confiança em mim em uma só coisa: ser mãe. A morte de Kate transformou tudo em caos. Fiquei completamente perdida por bastante tempo. Não sabia nem mesmo o que fazer. Nem para ajudar minhas outras filhas a combater a morte de sua irmã”.

© Carole Bellaiche

Sobre a mesa, ao lado da xícara de chá, repousa o livro de memórias da atriz Bulle Ogier, sua amiga. É sua leitura do momento: “Na morte de sua filha, Pascale (aos 25 anos), Bulle conta que Barbet Schroeder (cineasta e marido) lhe impôs atuar no teatro na mesma noite. Seus amigos artistas não cessaram de lhe propor vários papéis, para que pudesse respirar. Eu não fiz isso. E não foi melhor ter ficado só e me fazer tanto mal quanto era possível. Não foi uma opção que ajudou aos demais. Não foi algo generoso”.

Hoje, ela agradece às filhas e ao seu entorno por lhe terem socorrido quando “já não tinha mais forças para nadar”, e também a sua profissão por lhe ter dado novamente um sentido para viver. “Me dei a chance de voltar a partilhar coisas. É uma sorte imensa estar em cena com a filarmônica, em um tal ambiente de beleza, com as letras de Serge, ser uma intérprete com algum talento e poder dividir estes sentimentos com as pessoas que estão ali. Você vê a emoção delas, a força destas palavras e das orquestrações. Durante uma hora e meia, você não tem de pensar em todos os problemas da vida. É um métier fabuloso para isso, um verdadeiro prazer”.

E a beleza aos 72 anos, foi-se? Não faz muito tempo, ela assistiu à octogenária atriz britânica Glenda Jackson no palco, no papel de Rei Lear, principal personagem do célebre drama shakespeariano. E a definiu como “magnífica” em cena, e com rosto marcado pelo tempo, similar a um “joelho de elefante”. “E, de repente, passamos a amar os joelhos de elefantes. Não somos só isso. Por trás, há a inteligência e o talento de grandes mulheres, de pessoas muito habitadas. E para quem a vida foi mais divertida, porque eram curiosas de tudo, como a pequena Agnès Varda. Talvez, a curiosidade seja, no fundo, o que há de mais sedutor. Minha mãe era uma mulher muito curiosa”.

Sua mãe tinha como divisa “sorria, e o mundo sorrirá com você. Chore, e você chorará sozinha”. Após chorar solitária em suas tragédias pessoais, Jane Birkin optou por sorrir, com arte, para a vida.