Queda do Muro de Berlim: “Democracias venceram, e o mundo está muito melhor”, analisa o filósofo Luc Ferry

Após a derrota do comunismo com sua pretensão universalista, não surgiu concorrente sério ao liberalismo político, afirma pensador francês. ©Divulgação

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Para o filósofo francês Luc Ferry, o mundo progrediu em relação à realidade existente antes da queda do Muro de Berlim, que completa 30 anos neste sábado, em 9 de novembro de 1989, e as democracias ocidentais se impuseram como único regime politicamente legítimo. O pensador concorda com a tese de “fim da História” do cientista político Francis Fukuyama – ainda que com uma interpretação não literal dela -, defende um aperfeiçoamento da democracia contemporânea e alerta para os riscos de uma terceira guerra mundial no conflito comercial entre os Estados Unidos e a China.

A queda do Muro suscitou uma euforia e esperanças não somente para a Alemanha reunificada, mas para a Europa e para uma nova geopolítica mundial. Como o senhor analisa as mudanças ocorridas nestes 30 anos em relação às expectativas da época?

Os sistemas comunistas foram responsáveis no século XX pela morte de 120 milhões de pessoas. Só na China, a Revolução Cultural causou em torno de 70 milhões de mortes, mais do que as cerca de 60 milhões ocorridas na Segunda Guerra Mundial. Que o desmoronamento dos regimes totalitários tenha provocado uma alegria imensa em todos os amigos da liberdade é compreensível. Me recordo das imagens de Rostropovich tocando seu violoncelo nas ruínas de Berlim, lágrimas nos olhos. Era um símbolo do fato de que, talvez, os sistemas democráticos iriam, enfim, vencer os regimes autoritários e despóticos. E foi amplamente o caso. Apesar de todos os defeitos, a China e a Rússia saíram do inferno, os países do Leste são democráticos, a Índia também, idem para os países da América Latina. Isso não quer dizer que tudo vai bem, mas que, sim, incontestavelmente, o mundo está melhor do que nos anos 1930.

O fim da Guerra Fria e do comunismo soviético decretaram o fim da bipolaridade EUA-URSS. Hoje, potências como EUA e China se disputam, mas em um outro contexto. Como o senhor vê isso ?

Paradoxalmente, o mundo da Guerra Fria era bem mais simples e em um sentido muito mais seguro para nós do que o mundo multipolar de hoje. A guerra comercial entre a China e os EUA é muito preocupante. Alguns pensam que não é impossível que um dia se torne uma guerra militar, o que, por meio de alianças entre nações, provocaria um terceira guerra mundial. O conflito entre o Japão e a China pelas ilhas Senkaku é ainda mais inquietante, pois os chineses nunca digeriram o massacre de Nanquim, no qual os japoneses causaram 300 mil mortes em condições de uma crueldade inimaginável. Mais uma vez, a morte do comunismo não significa que tudo vai bem no melhor dos mundos, mas simplesmente que o mundo se porta melhor sem Hitler e Stálin, e que, apesar dos recuos e dificuldades, a democracia ganha terreno quase por todo o lado ao ponto de aparecer como único regime legítimo, à parte para o Estado Islâmico (EI).

Há 30 anos, Francis Fukuyama apontou o “fim da História” com a supremacia da democracia liberal no mundo. O senhor concorda?

Se zombou muito deste americano, forçosamente ingênuo, que via a História enfim encerrada porque o comunismo acabara de se desmoronar na URSS. Na verdade, os oponentes de Fukuyama nunca fizeram o esforço de refletir mais de três minutos ao que ele realmente dizia. Fukuyama queria dizer que com a queda do Muro de Berlim, nossas democracias pluralistas foram as únicas que restaram, destituídas de uma séria concorrência. Um politólogo, Samuel Huntington, que tive a ocasião de encontrar em Nova York ao mesmo tempo que seu colega, lhe opôs o exemplo da revolução iraniana. Contra Fukuyama, afirmava que iríamos viver um “choque de civilizações”. Uma bela querela filosófica nasceu, da qual ainda não saímos. Continuo a pensar que Fukuyama tinha razão, pois o fundamentalismo religioso não representa em nada o retorno da História com um grande agá. Parece impossível, após a derrota do nazismo e a queda do Muro, imaginar um outro princípio de legitimidade política que seja ao mesmo tempo novo e de alcance universal do que nossas democracias ocidentais. E, isso, por razões essenciais: é somente neste universo originado da civilização europeia que, como já escrevia Immanuel Kant em “O que é o Iluminismo?”, a humanidade chega, enfim, a ela mesma, atinge a idade adulta e sai da minoria. O comunismo, por sua pretensão de emancipação universal dos homens, de erradicação de toda forma de alienação, podia ainda passar por um adversário “equivalente” ao liberalismo. Como nossas democracias ocidentais, era animado, pelo menos em princípio, por uma pretensão à universalidade ao mesmo tempo que à emancipação dos homens. Nada a ver com o islamismo, que não passa de um particularismo obtuso, um imperialismo fanático portado por uma vontade explícita de restauração do passado, uma visão oficialmente regressiva mesmo que revolucionária. Não tendo nenhuma chance de mobilizar a humanidade inteira, propõe, tranquilamente, exterminar a parte mais corrupta, a dos cristãos, dos judeus e dos maus muçulmanos, esperando pelos ateus e os demais, enfim, uma fatia que corresponde a 99% do gênero humano. Quem poderia, seriamente, apresentar este reino do terror como uma alternativa à democracia sem provocar risos ou lágrimas?

O « humanismo democrático » estaria em perigo, hoje, pelo crescimento dos populismos na Europa, nos EUA ou na América Latina?

Os populismos são, sobretudo, uma reação dos povos aos danos reais ou supostos da globalização. A verdade é que neste início de século XXI, os valores democráticos se impõem a cada dia como os únicos legítimos, mesmo como os únicos imagináveis. Ao olhar dos regimes totalitários dos anos 1930, os seguidores do EI restam, apesar de tudo, atores menores. A arma do terrorismo é enorme, mais permanece ainda como a arma dos fracos contra os poderosos. Estamos longe dos mísseis soviéticos e dos tanques alemães. No fundo, se refletimos objetivamente, fora do islamismo, o mundo todo foi, nos últimos 40 anos, mais vantajoso do que desvantajoso para a democracia. Há uma razão, essencial ou estrutural, para essa salutar evolução, que escapa aos imponderáveis da História: a democracia não é ocidental, mas humana; não é particular, mas universal. Simplesmente porque é o único modo de governo que convém a povos adultos, a uma humanidade autônoma e livre, e todo outro regime aparece como uma regressão. Pode-se, sem dúvida, aperfeiçoar os regimes democráticos, melhorá-los em muitos aspectos, lutar contra a corrupção, dar mais espaço a consultas populares. Mas é nesse modelo político, porque é a liberdade que o caracteriza antes de tudo, que a humanidade alcança a si mesma. Desta forma, a ideia de um certo fim da História não é assim tão estúpida como a maioria havia considerado sem refletir um pouco mais seriamente.

Como o senhor vê o governo Bolsonaro neste contexto mundial?

Gosto muito do Brasil, onde tenho amigos que me são muito caros, e é um país apaixonante por sua diversidade, suas tradições, sua cultura e seu lugar no mundo. Todos meus amigos brasileiros estão consternados pelas situação política atual do Brasil. E os escuto e os compreendo, mas penso que Bolsonaro jamais teria podido se aproximar da vitória se a esquerda no poder não tivesse traído seus ideais e afundado na corrupção.

Como o senhor analisa este momento do mundo com protestos das populações no Chile, Equador, Bolívia, Hong Kong, Iraque, Líbano, Argélia, Egito ou Guiné?

Sim, por quase todo lado – colocaria à parte os casos do Líbano e do Iraque, onde o Irã exerce um papel importante em sua vontade de dominar a região – os povos se revoltam contra regimes autoritários ou corruptos. Isso não quer dizer forçosamente que essas revoltas vão resultar em regimes democráticos perfeitos, mas que esta aspiração, em todo caso, avança por todo lado, à exceção das teocracias fundamentalistas.

  • LEIA AQUI O TEXTO PUBLICADO EM O GLOBO.