Monique Lévi-Strauss: 90 anos de vida e muitas histórias para contar

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Monique Lévi-Strauss fotografada pelas lentes de Fe Pinheiro (Folhapress).

FERNANDO EICHENBERG / SERAFINA – FOLHA DE S. PAULO

PARIS – A sala principal do apartamento no prédio de número 2 da rua des Marronniers é iluminada por uma ampla janela situada na diagonal de uma longa e estreita mesa de madeira bruta, de tonalidade escura. “Ali meu marido trabalhava todos os dias”, aponta a anfitriã, acomodada no canto do sofá, em uma cinzenta manhã parisiense. “Você ouve o silêncio?”, indaga, poeticamente. “Aqui estamos num bunker – explica ela. É uma peça fortificada. Meu marido fez construir paredes reforçadas por tudo, para ter silêncio, algo imprescindível para ele”. Seu marido, citação constante em suas frases, era o célebre pensador, antropólogo e etnólogo francês Claude Lévi-Strauss, falecido em 2009 neste mesmo endereço, aos 100 anos de idade. Monique Lévi-Strauss, 90 anos – nascida em 5 de março de 1926, em Paris -, recebeu a Serafina em sua residência para conversar sobre um livro que ela escreveu: Une enfance dans la gueule du loup (Uma infância na boca do lobo, ed. Seuil), relato autobiográfico de uma experiência incomum de sua pré-juventude, na Segunda Guerra Mundial, elogiado pela crítica francesa. Mas não deixou de evocar seu cotidiano e sua história de amor com o autor de “Tristes Trópicos” (1955) – considerada como uma das obras capitais do século XX -, e também um dos fundadores da Universidade de São Paulo (USP). “Não foi amor à primeira vista!”, garante ela, com humor e jeito adolescente, exibindo uma vitalidade que desafia sua longevidade.

Na boca do lobo

Entre os 13 e 19 anos de idade, no belicoso período 1939-1945, bem antes de se tornar Madame Lévi-Strauss e conhecer o homem com quem partilharia seis décadas de sua vida, a jovem Monique viveu uma história digna de um roteiro surrealista. Às vésperas do réveillon de 1939, recém-deflagrado o conflito mundial que devastaria a Europa, seu pai, engenheiro belga, havia obtido um contrato de trabalho na Alemanha e decidiu levar toda a família – ela, seu irmão e sua mãe – para se instalar em Düsseldorf.  “Mas mamãe é judia, você não pode levá-la para a boca do lobo”, suplicava Monique sem sucesso diante da cegueira e obstinação paterna. Após ter combatido na guerra de 1914-1918, o pai não acreditava que semelhante embate poderia ocorrer no continente. “Ele era um pacifista. Lutou nas trincheiras, viu centenas de mortos, e sempre disse que depois de um tal horror era impossível que tudo recomeçasse. Em 1939, achava que seria uma guerra fria, e que nada nos ameaçaria, pois éramos belgas. Ele poderia ter sido mais inteligente e percebido o perigo. Mas foi apenas em abril de 1940, quando os alemães invadiram os países do Norte, que ele compreendeu tudo”, conta ela.

Em 10 de maio de 1940 – data da grande ofensiva alemã contra França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo -, o pai foi detido e enviado para o campo de concentração de Buchenwald. Liberado pouco mais de cinco meses depois, foi reintegrado na empresa em que trabalhava, mas sem acesso à aciaria e aos locais onde já era fabricado material militar. A família passou a viver o dia a dia da guerra, sem eletricidade e água corrente. Monique fazia fila para obter pão e algumas batatas com os tíquetes de racionamento de comida. Apesar das precárias condições de sobrevivência em terra, seu maior temor vinha dos céus, da torrente de bombas despejadas pela Royal Air Force britânica: “Nós íamos para as caves. As velas se apagam e você salta no ar quando as bombas tombam. O solo sacode, você é jogada para o alto e depois cai. A cada vez, ficava aterrorizada, e me dizia que não sairia viva dali. Minha mãe foi uma santa mulher, porque nos dava confiança na vida. Mas eu tive medo durante todos os bombardeios, que eram incessantes”.

Em meio aos estrondos, os estudos continuavam em uma sala de aula de apenas oito alunas, pois todos os jovens foram convocados pelo Reich. Monique se viu obrigada a abandonar o desenho, sua paixão; aprendia o alemão, os versos de Goethe ou a pintura de Rembrandt, e enveredou para a medicina. Em agosto de 1944, durante um estágio no hospital municipal de Weimar, se viu dando alimentando um soldado alemão que teve os dois braços amputados: “A cada vez que aproximava a colher de sua boca, ele beijava a minha mão”. Naquele mesmo dia, atendeu prisoneiros mutilados do campo de Buchenwald. “Minha mãe escutava todas as manhãs, às 6h, a BBC. Escondia o rádio por baixo das cobertas em sua cama, com sua cabeça por cima, para que ninguém na rua fosse capaz de ouvir. E a partir de 1942, a BBC já dizia que havia provas de extermínio nos campos de concentração. Portanto, nós já sabíamos”.

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As fotos inéditas feitas por Claude Lévi-Strauss no Brasil guardadas no alto de um closet no apartamento em que a viúva Monique vive até hoje. As etiquetas de identificação foram escritas à mão pelo próprio antropólogo ©Fernando Eichenberg.

A onipresente tensão, provocada pela origem judia e também americana de sua mãe – um segredo de morte – e pelo bombardeio dos aliados, só teve fim com a derrocada nazista. Em seu exílio forçado, Monique nunca se aventurou a escrever um diário por medo das perquisições da Gestapo. A ideia e iniciativa de finalmente colocar no papel estas memórias vieram muitos anos depois, em 1995, quando se auto-incumbiu da tarefa de revelar e ampliar em formato 13×18 os três mil negativos de fotografias que Claude Lévi-Strauss, então já seu marido, fizera em suas andanças pelo Brasil. Com a ajuda do filho, montou um laboratório em um dos banheiros da casa, e após três meses concluiu o trabalho. Não sem algum esforço extra para identificar as imagens das tribos amazônicas: “Eu lhe dava trinta fotos por vez e dizia: ‘Sem legenda, sem jantar!’ (risos). No início foi horrível, porque ele não lembrava de nada. Mas depois a memória começou a voltar”. As milhares de fotos raras estão hoje guardadas em caixas de sapato, no alto de uma prateleira de um closet da casa. “Meu filho deverá organizar todo este material quando se aposentar, daqui a uns seis anos, e eventualmente publicá-lo ou torná-lo acessível. E fazer ampliações bem melhores do que as minhas”, diz, rindo.

monique2Foto que fiz de Monique Lévi-Strauss durante nosso encontro em seu apartamento em Paris. ©Fernando Eichenberg

O amor com Claude Lévi-Strauss

Monique conheceu Claude Lévi-Strauss em setembro de 1949, em um jantar na casa do psicanalista Jacques Lacan, de quem era amiga, e no qual estava também o pintor Balthus. A ceia resultou em uma colaboração profissional: ela passsou a lhe fazer traduções de textos de etnólogos alemães. “Trabalhávamos juntos todas as manhãs em seu escritório, no Museu do Homem. Ele tinha uma grande espaço, e colocou minha mesa perpendicular a sua. Era um encantamento, eu fazia perguntas sobre a Amazônia e ele me contava muitas histórias. O amor veio depois, com a convivência. Além do mais, ele estava casado nesta época, e eu também tinha a minha vida sentimental. Vivemos juntos 60 anos, e sou sua terceira mulher. Você se dá conta? (risos)”.

Os dois passaram a morar juntos em 1951, e se casaram em 1954. Ela reivindica, inclusive, uma “certa participação” na obra do marido: “Ele se sempre se serviu de mim para reler tudo que escrevia. Cada vez que terminava um capítulo, me passava, simplesmente para que eu dissesse o que pensava. Não pretendo superestimar meu papel, era simplesmente para ele como um olhar suplementar”.

Monique esteve apenas uma vez no Brasil, acompanhando o marido na viagem oficial do presidente François Mitterrand, em 1985. “Voamos de Concorde. Foi uma acolhida muito calorosa, sobretudo em São Paulo, onde havia seus ex-alunos, velhinhos aposentados (risos). Mas me disse que sentiu uma enorme diferença em relação ao Brasil que havia conhecido nos anos 1930, não acreditava no tamanho da cidade de São Paulo. Ficamos trancados no trânsito em enormes engarrafamentos”.

Ao lado dele, participou ainda de curtas expedições no Japão, na Coreia e no Alaska. Hoje herdeira intelectual da obra do marido, diz que continua vivendo diariamente em sua companhia: “Estou sempre recebendo pedidos de publicação de frases, de páginas, de capítulos de seus livros ou solicitações de consultas de seus arquivos. E desde que morreu, publiquei quatro novos livros dele, o último foi o das cartas a seus pais, no ano passado”.

Com seu olhar cristalino, Monique desmente com veemência e convicção quando lhe dizem que “se sacrificou” ao longo de sua vida como Madame Lévi-Strauss: “Tudo surpreendia Claude, tudo o maravilhava. Até o fim. Era apaixonante viver com ele. Não tinha amargura, mas sim muito humor. Ele podia ser realmente muito engraçado. Como rimos juntos!”.