A partir de arquivos inéditos, nova biografia mostra um sartre avesso ao engajamento políticO, divertido e sonhador

Correspondência privada e arquivos de áudio e vídeo revelam um outro Sartre. ©AFP

FERNANDO EICHENBERG/ REVISTA ÉPOCA

PARIS – E se o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), símbolo maior do intelectual engajado do século XX, implicado nas principais lutas sociais e conflitos internacionais pós-Segunda Guerra Mundial, no fundo, não era assim tão entusiasta de seu ativismo político? “Na verdade, a política me enche o saco”, desabafou Sartre a sua amante russa, Lena Zonina, em uma carta de janeiro de 1963. François Noudelmann, estudioso de Sartre há 20 anos, encontrou várias confidências similares nos arquivos inéditos a que teve acesso, cedidos pela filha adotiva do filósofo, Arlette Elkaïm, morta em 2016.

Em seu ensaio a ser lançado este mês de outubro na França, “Un tout un autre Sartre” (Todo um outro Sartre, em tradução livre), pela editora editora Gallimard), o autor, professor na Universidade de Nova York, traça um perfil iconoclasta do célebre pensador existencialista, distante da imagem do defensor de grandes causas e consciência moral de seu tempo. Noudelmann revela um Sartre de diferentes personalidades: avesso aos escritos engajados, amante da literatura romântica e descompromissada, sonhador, divertido, turista-flâneur, músico bem-humorado e com gosto pelo sexo. Mas também um Sartre melancólico, depressivo, com tentações suicidas, viciado no álcool e anfetaminas até o final de sua vida.

Sartre e sua filha adotiva, Arlette Elkaïm. ©Collection particulière

A abundante documentação examinada – milhares de páginas de correspondência privada, uma centena de horas de gravações de áudio e dezenas de filmes pessoais Super-8 – revelou surpresas a Noudelmann, sobretudo no campo político. Segundo ele, Sartre se forçou a encarnar o papel de intelectual engajado. “Conheci um Sartre que não tinha nada a ver com aquele que havia estudado. Foi interessante descobrir que, quando investia na política, não se sentia inteiro em suas declarações e engajamentos. Li correspondências inéditas absolutamente incríveis, e tive muito prazer em perceber este outro homem, de vê-lo leve, turista, atraído por experiências um pouco extremas e amoroso, mas não da maneira como descrevia sua relação com Simone de Beauvoir. Reli sua obra com um outro olhar”, diz Noudelmann em entrevista à Época, em Paris.

O Sartre politicamente engajado surgiu aos 40 anos, em 1945, no rastro da liberação de Paris da ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial. Por meio de intervenções em rádio, artigos, petições, manifestos e textos publicados na recém-criada revista “Les Temps Modernes”, o filósofo se impôs como o intelectual de referência do pós-guerra, culpabilizando, inclusive, os escritores não engajados. “Durante 40 anos de sua vida, ele foi apolítico”, nota Noudelmann. “Se interessava vagamente a alguns movimentos sociais, mas não descia para manifestar, observava tudo de seu balcão. Na guerra, esteve do lado da Resistência, mas não concretamente em ações. Depois, assumiu a liderança da intelligentsia francesa, e se tornou prisioneiro de seu sucesso”.

Em 1951, Sartre escreveu um esboço de “A rainha Albermale ou o último turista” (publicado postumamente em sua forma inacabada), fragmentos sobre seu amor pela Itália e considerações sobre o turismo. A escrita, no entanto, foi abandonada para poder se dedicar ao longo estudo, publicado em três partes na revista “Le Temps Modernes”, entre 1952 e 1954, intitulado “Os comunistas e a paz”. Logo após a redação do primeiro texto, manifestou em uma carta a Michelle Vian, uma de suas amantes na relação aberta que mantinha com Simone de Beauvoir, seu desejo de logo poder retomar os escritos sobre as viagens: “Vivamente a literatura livre. Depois, voltarei à deliciosa, à boa Itália”. Mas, antes, era preciso se curar de sua “indigestão marxista”. Suas missivas à Michelle mostram o estado de espírito em que produziu o “maldito texto” de reaproximação com os comunistas: “Meu artigo sobre os comunistas é uma merda, você me entende? (…) Sim, reli, o esquema é absurdo e, no fundo, nem sei mesmo o que quero dizer. Tudo foi feito muito rápido e sem conhecimentos sólidos”. Três semanas mais tarde, confessou: “Se você soubesse como isso me enche o saco”. Noudelmann descreve ainda as condições materiais de escrita, que “beiram o burlesco”: para amenizar o intenso calor de Roma, ele se refugiava no banheiro do luxuoso hotel onde passava as férias com Simone de Beauvoir; como mesa, usava o bidê, e as obras de Marx repousavam sobre o assento da privada.

Na invasão soviética na Hungria, em 1956, Sartre rompeu com Partido Comunista Francês (PCF) e denunciou a política da URSS no longo texto “O fantasma de Stálin”. Mas, em 1960, aceitou o convite do líder soviético, Nikita Khrushchev, para visitar o país, em viagens que se repetiram várias vezes ao ano até 1966. Um razão menos política, que passava longe do Kremlin, justificava seus deslocamentos, explica Noudelmann: Sartre organizava eventos e inventava pretextos para poder encontrar seu amor local, a tradutora russa Lena Zonina, impedida de viajar livremente ao exterior.

Sartre, Lena Zonina ao centro, e Simone de Beauvoir.
©Biblioteca do Instituto de Literatura e Folclore da Lituânia.

Nas cartas que enviava pelo correio a Lena, sob censura do regime, exprimia sua admiração pelo país. Mas na correspondência clandestina que fazia chegar à amante em mãos próprias, por meio de amigos que viajavam à URSS, admitia outras intenções. Em 1963, para poder trazê-la à Paris, Sartre propôs a seu amigo René Maheu, diretor-geral da Unesco, um projeto de diálogo Leste-Oeste. Em contrapartida, aceitou fazer uma conferência sobre o pensador dinamarquês Sören Kierkegaard na instituição. Sobre a iniciativa na Unesco, escreveu a Lena: “É a primeira vez que colocarei os pés nesse bordel. Por sua causa, meu amor. Se as pessoas soubessem o que esta grande paixão pela confrontação de culturas esconde! Sabe que sem você nada disso aconteceria, que este encontro na Unesco não ocorreria? Você é a confrontação Leste-Oeste. Ou, melhor, o Oeste e o Leste se confrontam na nossa cama”. Em 1965, se gabou de ter ajudado na escolha de Mikhail Sholokhov, zeloso defensor do regime soviético, para o prêmio Nobel de literatura, o que havia se recusado a fazer no ano anterior: “Isso nos servirá”, disse a Lena.

Noudelmann não esconde a perplexidade com os meios utilizados pelo pensador para transportar a tradutora russa à França. “Para alguém como eu, que leu seu texto sobre Kierkegaard e achou magnífico, é incrível perceber que, de fato, ele não tinha nenhuma vontade de fazer esta conferência, uma moeda de troca para ter uma justificativa para fazer vir sua amante russa à Unesco”, diz. “Isso não tira nada da qualidade do texto, mas se descobre um Sartre que se diverte, e que vai enganar um pouco as pessoas. Me faz sorrir saber que grandes eventos intelectuais podem ser motivados nos bastidores por razões um pouco libertinas”.

Em uma de suas viagens à URSS, Sartre é solicitado a escrever sobre os kolkhozes (fazendas coletivas) e a vida rural soviética, um projeto depois abandonado. Aliviado, confessou a Michelle: “Tanto melhor, fazia isso por consciência”. Sobre ter aceito, em 1970, o convite dos maoístas franceses para dirigir o jornal “La Cause du Peuple”, admitiu mais tarde, a Simone de Beauvoir, compreender apenas de “forma obscura” sua atitude: “Aceitei emprestar meu nome, não tendo ideia muito precisa de sua tendência e de seus princípios”. Em cartas a Lena, se queixava: “Me sinto cada vez mais como objeto passivo de exigências contraditórias”; “fiz coisas demais que não tinha o gosto de fazer (particularmente os artigos políticos, para os quais não tenho talento)”.

O filósofo François Noudelmann estuda Sartre há 20 anos.
©Francesca Mantovani/ed. Galllimard

A descoberta mais surpreendente para Noudelmann se deu, no entanto, em relação ao polêmico e virulento prefácio de Sartre para a obra “Os condenados da terra”, do martinicano Frantz Fanon, pensador da descolonização e ardente defensor da independência da Argélia. Em 1961, Fanon viajou até à capital italiana para conhecer o filósofo que o inspirava. “Sartre está cansado, Fanon o obriga a discutir até tarde da noite, e o culpabiliza por estar passando belas férias em Roma enquanto há coisas terríveis acontecendo no mundo, principalmente na Argélia”, conta Noudelmann. “Ele tocou onde lhe faz mal, em seu eterno sentimento de culpa. Sartre se sente intimidado, como um branco, europeu, burguês, privilegiado. E compensa com um texto que é um exagero de violência, quase um apelo ao assassinato (dos colonos franceses), mesmo juridicamente complicado, em um estilo por vezes vulgar”. A Michelle Vian, Sartre se justifica: “Escrever um prefácio me repugna ainda. Fiz em conta-gotas, porque era preciso colocar violência, e a violência verbal me enoja um pouco: tanto fiz isso, tanto soltei gritos (não é meu natural, mas as circunstâncias me forçavam), que, no final, tenho vontade de sussurrar”.

Sartre discursa em frente à fábrica da Renault, em outubro de 1970. ©Daniel Simon/Gamma

Além da política, Noudelmann descobriu um Sartre poético, desejoso de se dedicar mais ao imaginário, ao devaneio, ao romanesco e às viagens contemplativas. “Há cartas em que ele descreve paisagens por mais de 30 páginas. Faz croquis, desenha. Escreve trechos maravilhosos sobre o céu, o amor. E fez, inclusive, uma viagem escondida com Arlette à Espanha, na época em que havia o boicote ao regime franquista!”, conta, com espanto. Também há o Sartre “erotizado”, de experimentações de sensibilidades e sexualidades com suas diferentes companheiras, e que disse certa vez a Simone de Beauvoir: “Sempre pensei que havia em mim um tipo de mulher”. É sabido que, desde o início, o sexo foi praticamente excluído de sua relação com Simone de Beauvoir. Com suas amantes, no entanto, as missivas, segundo Noudelmann, eram tórridas: “Há cartas extremamente sensuais, com alusões muito precisas ao sexo. Revela uma imagem diferente daquela que se guardou dele no casal com Beauvoir. Descreve cenas sexuais muito explícitas, as quais não me permiti colocar no livro”.

Já ao ouvir os áudios das sessões musicais de Sartre e Arlette ao piano, tocando Chopin ou cantando músicas populares, ele diz ser possível “escutar a felicidade”: “É de uma leveza surpreendente. E ouvir Sartre cantando é de morrer de rir. Ele se diverte muito. Ele sentia culpa em ser feliz enquanto havia muitas pessoas sofrendo. Mas, neste momento, se sente que aceita a felicidade”.

Noudelmann aborda ainda o Sartre sombrio e angustiado, que chegou a pensar em suicídio e que misturava uísque com anfetamina, por vezes consumindo um tubo de Corydrane por dia para produzir seus textos. “Ele tinha comportamentos viciantes que podem parecer um pouco suicidários, que fazem parte de um mal-estar em relação a si mesmo. O uísque e as anfetaminas eram usados no início para se dar energia para escrever, mas depois se tornou algo crônico. Arlette me dizia que era preciso vigiá-lo todo o tempo, e às vezes encontrava uma garrafa escondida sob a cama”.

“Tenho raiva por não ser poeta”, disse Sartre. Para Noudelmann, o filósofo viveu em uma permanente tensão entre o “trovador e o intelectual revolucionário”, e seu livro é uma tentativa de “liberar Sartre do sartrismo”: “Esse Sartre vai incomodar e chocar. Aqueles que o denunciam como um militante, vão entender que ele não o era tanto assim. Já os que apoiam sua posições políticas, vão se dizer que, no fim das contas, não acreditava completamente no que dizia”.

Para ele, Sartre se equilibrava em uma gangorra, ora puxado pelo romantismo de Stendhal, seu escritor modelo, ora pelo marxismo de seus combates políticos: “O Sartre que mostro é bem mais próximo de Stendhal do que de Marx. Talvez, se tivesse deixado seu lado sthendaliano se exprimir, teria escrito outras coisas. Sente-se que seu desejo era esse”, conclui Noudelmann.

Deixe um comentário