Anastasia Mikova: cineasta fala sobre o filme “Woman”, que dá voz a duas mil mulheres de cerca de 50 países

Ao longo de três anos e meio, Anastasia Mikova conversou pessoalmente com mil personagens para o documentário. ©Peter Lindbergh

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Anastasia Mikova, 37 anos, exibia um sorriso de satisfação ao chegar para a entrevista em um ensolarado pátio no bairro de Montmartre, na capital francesa, nas proximidades de sua casa. Há dois dias, havia finalizado a fase de montagem de seu mais novo filme, “Woman”, codirigido pelo célebre fotógrafo e cineasta francês Yann Arthus-Bertrand, com pré-estreia mundial em 1° de setembro, em projeção fora de competição na Mostra de Veneza. Foram mais de duas mil entrevistas com mulheres realizadas por três anos e meio em cerca de 50 países.

A ideia surgiu durante as filmagens da precedente obra da dupla, “Human” (2015), uma imersão no ser humano por meio de depoimentos recolhidos pelos quatro cantos do planeta. “Ao fazer entrevistas para o ‘Human’, me impressionou uma necessidade visceral nas mulheres de contar suas histórias, bem mais do que nos homens. Quando sua voz é oprimida por séculos, se torna algo quase físico. E quando libera, é um poço sem fundo. Encontramos mulheres nos mais diferentes e longínquos lugares, por quem nunca ninguém se interessou, e dissemos a cada uma delas: ‘Você é importante, quero ouvir a sua história’. No início, se mostravam desconfiadas, mas depois que entendiam o que fazíamos, se passava algo incrível, se abria uma porta, como um vulcão que entrava em erupção’”, conta.

O filme terá pré-estreia mundial na 76ª edição do Festival de Cinema de Veneza, fora de competição, em setembro. © Hope Productions

O gosto pela descoberta e a curiosidade pelo humano e o mundo emergiram cedo em sua vida. Seu modelo “total e absoluto” é sua mãe, Rita, que adolescente partiu sozinha da aldeia em que vivia em Nagorno-Karabakh, região entre a Armênia e o Azerbaijão, para estudar em Kiev, na Ucrânia. “Ela nasceu em uma família pobre de cinco irmãos. Sua mãe morreu quando ela tinha apenas dois anos de idade. Aos 17 anos, disse que ia para a universidade. Ninguém a encorajou. Foi para casa de um tio, que morava em Kiev. Durante vários anos foi duro, tinha três trabalhos e estudava ao mesmo tempo. Quando vejo tudo o que ela conseguiu, quem sou eu ao seu lado?”, indaga.

A partir dos anos 1990, quando se abriram as fronteiras do bloco soviético, a mãe enviava a jovem Anastasia para temporadas no exterior, seja na Itália ou na França, em programas para crianças e jovens vivenciar outras culturas e aprender novos idiomas. “A cada verão, passava um mês em algum país estrangeiro. Tinha dez, 10, 11, 12 anos, e ela me dizia: ‘Vá viajar, ver o mundo e como vivem as outras pessoas, quero que você tenha um horizonte muito mais amplo’”. Seu pai, Igor, já falecido, fazia filmes documentários, a maioria com temática do reino animal, uma influência também nos destinos da filha. “Ele estava sempre com uma câmera na mão, havia bobinas de filmes espalhadas pela casa. Cheguei nessa profissão de forma inconsciente, nunca me disse que era minha vocação. Mas penso que, intrinsicamente, já tinha isso comigo desde a infância”, confessa.

Em 1998, aos 17 anos, a exemplo da mãe, Anastasia partiu para estudar em outro país. Sua escolha foi Paris, França, para onde foi cursar História. “Não era um sonho, mas uma evidência. Fui preparada para uma vida independente e viagens. Cheguei em Paris, não conhecia ninguém, uma enorme cidade, com muitas coisas acontecendo. Isso faz você se questionar e amadurecer muito rápido”.

Anastasia no cenário das entrevistas, com o fundo invariável…. Fotos © Dimitri Vishinin

Depois de um estágio na revista Figaro Magazine, foi contratada pela Marie Claire, para atuar nos lançamentos internacionais da publicação: “Durante três anos, preparei as edições em países tão diferentes como a Arábia Saudita, Bulgária ou Índia, formando as equipes locais, adaptando os conceitos, compreendendo as culturas, já nesta iniciativa de ir ao encontro do outro”.

Seu emprego seguinte foi na série documental sobre ecologia “Vu du ciel”, para a tevê pública francesa, onde encontrou Arthus-Bertrand, em uma amizade e parceria profissional que perdura até hoje. Ter participado da equipe do filme “Human” transformou sua maneira de encarar a vida. “Encontrei pessoas pelo mundo que partilharam comigo coisas difíceis que viveram, em histórias que nunca haviam contado para ninguém. Só em falar nisso me sinto arrepiada. E desde esse momento, não há mais fronteira na minha vida entre o que faço e o que sou, se tornou um todo. É algo que te penetra de alguma forma. Em tudo que faço, hoje, procuro um sentido talvez exacerbado. É quase como uma missão. ‘Human’ foi o momento em que me conscientizei disso. Depois do filme, precisei desconectar, evacuar tudo o que havia vivido e respirar. Senti isso fisicamente”.

Anastasia com Denilse, de 16 anos, que conheceu em um mercado de Cabo Verde, que abandonou a escola para sustentar toda sua família. © Dimitri Vershinin
Anastasia: “A resiliência das mulheres pode fazer milagres”. © Dimitri Vishinin

O projeto “Human” debutou em 2012, antes do caso Harvey Weinstein e do movimento #MeToo, que liberou a palavra feminina em relação aos abusos masculinos e a à situação da mulher na sociedade. Anastasia destaca que, nas filmagens, sentia mais forte essa necessidade de fala em Bangladesh, por exemplo, do que em países ocidentais. “Todas diziam: ‘Tenho filhas e não quero esperar uma ou duas gerações para esperar que, talvez, os homens decidam nos dar um pouco mais. Quero contar o que vivi’. Por todo lado, encontramos mulheres que queriam falar, e foi assim que ‘Woman’ nasceu”.

Só ela fez mais da metade das duas mil entrevistas realizadas para o filme, com lançamento no circuito mundial previsto para o início de 2020. Apenas 100 delas aparecerão na versão de 1h45min para o cinema, mas todas as demais estarão presentes de alguma forma no formato digital, exposição e livro que acompanham o projeto. Segundo ela, 70% do filme poderia, infelizmente, tratar somente das violências sofridas pelas mulheres no mundo: “Mas fizemos a escolha de mostrar que as mulheres não são apenas isso. Há tantas coisas extraordinárias a contar. Além de educação ou emancipação, abordamos também temas íntimos, como menstruação, sexualidade, orgasmo, a relação com o corpo. Foi por meio desses temas que mais liberamos a palavra. Ainda assim, boa parte do filme é dedicada à violência, porque se trata de uma realidade. O Brasil me surpreendeu por isso, é um país em que a violência está tão normalizada e banalizada, a mulheres falam como uma evidência e, por vezes, não se mostram nem mesmo revoltadas”.

Filmagem no Vietnã, no vale de Sapa, com mulheres da etnia Hmong. © Dimitri Vishinin

“Woman” foi feito também, segundo ela, para mudar o olhar em relação às mulheres: “Quando se vê, hoje, esses homens que chegaram ao poder, como Donald Trump, Rodrigo Duterte, Viktor Orbán ou Jair Bolsonaro, todos querem reduzir novamente a mulher a um papel menor, impedi-la de fazer coisas. Isso faz parte de uma estratégia global. Podemos fazer com que não seja mais possível voltar atrás em certas conquistas. O pessoal é político. Por isso, começamos pelo lado pessoal nas entrevistas. Temos de mudar o olhar na intimidade para que o mundo mude em sua globalidade”.

Em duas etapas de filmagens no Brasil, a equipe esteve em São Paulo, nos arredores de Natal, em Salvador e em uma tribo de índios ianomâmi, e também entrevistou Monica Benício, viúva de Marielle Franco. Alguns nomes conhecidos integram o elenco de entrevistadas, como a ex-presidente da Irlanda Mary Robinson, a prêmio Nobel de Literatura Svetlana Alexievich, a astronauta Claudie Haigneré – primeira mulher francesa no espaço –, Maria Fernanda Espinosa Garcés, presidente da ONU, ou Sophie Grégoire, mulher do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau. “Há um efeito de espelho muito forte, que faz com que tenhamos decidido chamar o filme de ‘Woman’ e não ‘Women’, no plural, porque em cada uma de nós há todas as demais. É a vontade de mostrar que não, vocês não estão sós, cada uma de nós são todas as outras no mundo. Juntas, elas contam algo, são complementares e fazem parte da grande História”.

Bandaloop é um grupo pioneiro de dança vertical, baseado em Oakland, na Califórnia, que faz turnês pelo mundo. A cena da foto foi filmada em Dallas, « uma dança no céu para mostrar a força das mulheres ». © Bandaloop/Basil Tsimoyianis

Todos os testemunhos do filme foram recolhidos por Anastasia e uma equipe de mulheres, mas não faltaram homens no grupo de filmagem, sendo um deles especialmente importante para ela: o russo Dimitri Vishinin, seu marido, como diretor de fotografia. Os dois se conheceram em 2002, por meio de amigos comuns, em uma relação à distância por vários anos até o casamento, em 2014. “Ele veio se instalar na França há cinco anos, e nos casamos. Foi uma relação progressiva, não sou alguém do tipo amor à primeira vista, é o meu lado soviético (risos). Mas uma vez que a pessoa tem minha confiança, geralmente dura para a vida. É o mesmo para as amizades. Preciso construir verdadeiras relações”. A equipe de filmagem era composta de duas pessoas, e uma vez no destino, era auxiliada por tradutores e ONG locais. “Eu e Dimitri fizemos muitas filmagens juntos, e ele aprendeu muito sobre as mulheres, mas também sobre ele mesmo e sobre a vida fazendo isso. Quando se participa de projetos como esse, só se pode crescer como ser humano, e penso que nossa relação se tornou muito mais estreita e forte porque partilhamos esta experiência”.

Anastasia com Yann Arthus-Bertrand, codiretor do filme. © Peter Lindbergh

Cada uma das entrevistas realizadas para filme possui, para ela, a mesma importância, mas se tivesse de escolher uma que a marcou especialmente ao longo do projeto, designaria o encontro com a mexicana Norma Bastidas, 52, estuprada por seu avô aos 11 anos, vítima de tráfico sexual aos 19, e que se tornou, em 2014, recordista mundial do mais longo triatlo (152 km de natação, 3.692 km de ciclismo e 1.139 km de corrida em 59 dias). É a entrevista que abre o filme, a qual relata em um depoimento emocionado: “Ela chegou radiante, magnífica em um vestido branco, tão segura de si. Inicia me contando sua trajetória como grande esportista e, então, começa a me falar de sua vida. Aos 11 anos, tinha de cuidar se seu avô, que se tornava cego, e ele passou a abusá-la sexualmente. Na adolescência, recebeu um proposta para trabalhar como modelo no Japão. Para fugir da vida que tinha, aceitou. Mas se viu em meio a um abominável tráfico sexual e, chegando lá, foi vítima de prostituição forçada por anos. Conseguiu recuperar seu passaporte, pagando à gangue que a havia sequestrado, e voltar para o México. Acabou se instalando no Canadá, se casou, teve um filho, e se disse que, enfim, poderia ser alguém e ter uma vida normal. E, então, descobriu que seu filho sofria da mesma doença genética de seu avô, e que também se tornaria cego. Começou a beber, à beira do alcoolismo, e em uma noite teve uma luz e decidiu que iria cuidar do filho. Em vez de pegar mais uma garrafa, calçou os tênis e foi correr. Ela me dizia: ‘Minha dor era enorme, e para expulsá-la, para me liberar de tudo isso, sentia necessidade de correr cada vez mais’. Se tornou recordista do triatlo no Guinness Book. Para mim, o que ela diz resume todo o filme. Contou que o momento mais difícil não foi o que viveu no passado ou ter vencido o triatlo. Foi quando disse, em voz alta, depois que já era conhecida, que não era apenas uma grande esportista, mas que sofreu violências, foi estuprada. Uma vez que botou pra fora, não se pode mais voltar atrás, e se deve viver com isso por toda sua vida. Foi o mais complicado para ela. Para mim, o filme é isso, quebrar o silêncio, como uma ato fundador de sua vida. É difícil, mas essencial. Foi uma mulher que me transtornou. Ela contou tudo isso de uma maneira forte e, ao final, desmoronou, teve um ataque, quase vomitou. Eu desmoronei junto, e foi ela que acabou me confortando em seus braços. Se criou um momento forte para nós duas. Foi um instante para toda minha vida”, revela.

Filmagem com mulheres da tribo ianomâmi. © Divulgação

Para Anastasia, a palavra que sintetiza, o teor do projeto “Woman” é “resiliência”: “Estive em Ruanda, com os refugiados rohingyas em Bangladesh ou no Congo, face a mulheres que sofreram o estupro de guerra. É insuportável escutar, não posso nem imaginar o que viveram. E, então, você ouve elas contarem como refizeram suas vidas. Como conseguiram? A resiliência das mulheres pode fazer milagres. Estamos em um momento crucial da História: as mulheres estão prontas a ver o mundo de forma diferente e, sobretudo, não querem mais que os homens decidam por elas. Este filme é um espelho para as mulheres – de alguma forma, todas se reconhecerão nele -, mas não é feito por elas somente para elas, mas também para os homens, pois é uma janela para um mundo que eles não conhecem. Tudo o que fazemos, eu e Yann, é sobre o viver junto. Tentemos nos compreender mais e certamente que vai melhorar, para os dois lados. Nosso projeto é uma pedra nesta longa estrada em construção”.