Clément Therme: “Tensões aumentam risco de guerra entre Irã e EUA”

Manifestação no Irã contra os EUA do presidente Donald Trump. © Ebrahim Noroozi/AFP

FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO

PARIS – Desde a saída dos Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã, em maio de 2018, e a imposição de sanções econômicas à Teerã, as tensões não cessam de aumentar entre os dois países. Para Clément Therme, especialista do Oriente Médio, o risco, hoje, de um conflito é real, e a pressão exercida pelo presidente americano, Donald Trump, fortalece a linha dura pregada pelos aiatolás iranianos, descartando o discurso dos moderados no país.

No tabuleiro diplomático, a Europa revelou todos os seus limites como poder mediador, hoje nas mãos, principalmente, da Rússia, diz o analista, para quem “o cálculo de que não haverá guerra poderá, de forma paradoxal, conduzir ao conflito”. Clément Therme, que acaba de deixar o departamento de Oriente Médio do International Institute for Strategic Studies (IISS), de Londres, para integrar o programa Nucelar Knowledges do Instituto de Estudos Políticos de Paris  (Sciences-Po), conversou sobre a crise EUA-Irã com O Globo, na capital francesa.

Qual o estágio da crise atual entre o Irã e os EUA?

Estamos em uma situação de bloqueio institucional de governos, entre a República Islâmica e os EUA, e, ao mesmo tempo, no nível pessoal, entre o presidente Donald Trump e o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei. As lógicas institucionais desses dois líderes colabora para esta situação de impasse. Há um investimento ideológico dos dois lados, e cada um tenta capitalizar no confronto com o outro. Trump se rodeou de radicais como John Bolton (conselheiro de Segurança Nacional) e Mike Pompeo (secretário de Estado), e seus discursos sobre a possibilidade de negociação aparecem cada vez mais defasados com a realidade institucional de seus colaboradores, que é a favor do confronto.

Como o senhor vê esta escalada no contexto da declarada intenção de Trump de se reeleger em 2020?

O Irã estima que Trump não pode se permitir entrar em guerra se quiser se reeleger. Mas é um jogo de palavras e um tabuleiro de xadrez, e o fato de que isso exista já é algo perigoso. Todos temem essa escalada. Na região, a percepção do risco é, hoje, acentuada. Não há mais petroleiros britânicos que circulam no Golfo Pérsico. O custo dos seguros aumentou, no nível dos negócios não é bom. É um efeito da situação da crise. Para o Irã, Trump não poderá ir até as últimas consequências e fazer explodir o preço do barril de petróleo, o que seria ruim do ponto de vista econômico em relação a seus eleitores. É verdade que ele aparece como uma personalidade que faz ameaças com pouca credibilidade. Mas, por outro lado, poderá afirmar sua credibilidade deflagrando uma guerra contra o Irã. O risco de um conflito é alto, e o cálculo de que não haverá guerra poderá, de forma paradoxal, conduzir ao conflito.

O senhor destaca um conflito interno no Irã, entre os críticos dos conservadores, que exigem que as elites negociem com Trump para que se encaminhe uma solução para os problemas econômicos do país, e os dirigentes do Estado teocrático, que preferem a opção do incremento das relações com Rússia, China e Índia.

É o conflito entre aqueles que querem a sobrevivência econômica do Estado e os que almejam a sobrevivência ideológica da Revolução. O grupo do presidente Hassan Rohani deverá desaparecer nas eleições de 2021. Hoje, é muito difícil no Irã defender a sobrevivência do Estado pela negociação com os EUA, o inimigo que quer a violência. É o fracasso ideológico dos pragmáticos. Trump, pela sua política ideológica, destruiu o pragmatismo nas elites políticas do Irã. Pelo lado dos teocratas e ideólogos, há um discurso de desafio à ordem internacional, o que se conhece desde 1945, com a negação da autoridade do Conselho de Segurança da ONU, a vontade de destruir Israel etc. Pelo lado iraniano, há contradições difíceis de superar, e neste contexto são os teocratas e os duros que se reforçam, porque Trump deslegitima o discurso que diz que pelo respeito do direito internacional o Irã terá uma melhor posição na região e no mundo. Essa narrativa de normalização da posição do Irã na cena internacional e regional foi desacreditada por Trump. E há um enfraquecimento de toda tentativa de democratização interna. Mais a pressão externa se acentua, mais a repressão cresce internamente.

Por que a Rússia tem hoje, na sua opinião, o maior poder como mediador para evitar um conflito?

A Rússia possui uma cooperação com Teerã e pode dar um apoio condicional. Tem condições de negociar dizendo que pode ajudar a vender o petróleo iraniano e negociar armas, mas com certas condições. A China pode, igualmente, fazer isso, porém mais como um ator econômico do que político, apesar do fato de que as empresas chinesas sejam sancionadas pelos americanos. Há uma dificuldade para a administração americana em ter um duplo confronto, ao mesmo tempo com a China e o Irã. No plano operacional, a China pode dar apoio econômico ao Irã, o que é um desafio para os EUA. Mas, ainda assim, o Irã está em um impasse, não vejo solução para o país sem mudar sua política. Pode sobreviver, mas não se desenvolver. O risco é o de que Trump pense que já ganhou a batalha no plano econômico e que os aiatolás vão capitular. Mas o objetivo dos dirigentes iranianos não é o de assegurar o desenvolvimento econômico do país, mas de manter sua ideologia no sistema político.

Por que a oposição entre moderados e conservadores no Irã teria se tornado, hoje, uma “clivagem artificial”?

Na política externa, há um debate. Mas na política interna, o controle é dos teocratas e dos serviços secretos dos Guardiões da Revolução. Mesmo nos períodos de abertura, são esses grupos que se enriqueceram e se reforçaram. É muito difícil, de fora, ter alguma influência sobre um sistema político fechado como o da República Islâmica. Por isso, também, que a política da Europa fracassou, pois pensava poder jogar os moderados contra os conservadores. O debate existia no Irã antes da escalada do risco de confronto. No momento, a situação é diferente, pois existe na população iraniana a percepção da ameaça de guerra – e também em toda a região, nos países do Golfo, nos Emirados Árabes, em Omã, no Bahrein.

Segundo o senhor, para contra-atacar, o Irã recorre as suas redes de influência no Oriente Médio…

O objetivo principal dessas redes mudou para o Irã. Os xiitas no Iraque ou o Hezbollah libanês sã vistos hoje, sobretudo, como parte da solução para a sobrevivência econômica, para contornar o embargo, vender petróleo, fazer contrabando, aceder à tecnologias. Essas redes não são mais mobilizadas para o que se chamou em determinado momento de ambições expansionistas do Irã na região. Isso nunca foi uma realidade, era algo virtual. Mas, antes, essas redes eram usadas para difundir a ideologia da Revolução Islâmica no exterior. Hoje, há um desmoronamento econômico do Irã, uma recessão de 6% é algo considerável para um país em desenvolvimento. O Irã é como o Brasil, do qual se diz há décadas que é o país do futuro. Concretizar seu potencial é difícil.

Por que Rohani estaria, hoje, em pior situação, segundo o senhor, do que os ex-presidentes Mohammad Khatami e Mahmoud Ahmadinejad em seus segundos mandatos?

Em primeiro lugar, ele foi escolhido como candidato por sua fraqueza. Na eleição de 2013, houve o debate em torno da candidatura de Hachemi Rafsandjani, pai espiritual de Rohani, que foi rejeitada pelo líder supremo Khamenei, que não queria um presidente forte. E a evolução da política americana invalidou sua estratégia para a República Islâmica. Com um presidente americano como Trump, não é possível cumprir a agenda de desenvolvimento econômico de Rafsandjani, que foi retomada por Rohani. Esse contexto acelerou seu enfraquecimento. Hoje, Rohani é mais um espectador do que um ator na política iraniana.

Segundo o senhor, o retorno dos EUA a uma diplomacia ideológica mostrou os limites da Europa. Mesmo o Instex, mecanismo que permitiria às empresas europeias comercializar com o Irã sem estarem sujeitas às sanções americanas, não funcionou.

A Europa exagerou ao vender seu papel. Foi o então presidente Barack Obama que deu uma incumbência à Europa. Entendeu que não poderia superar a oposição do Congresso americano para negociar diretamente com Teerã e usou os europeus para recompensar economicamente o Irã. Essa estratégia pode funcionar no sentido positivo, mas não no negativo. Ou seja, quando os EUA querem um confronto com o Irã, a Europa não tem como se opor. A Europa não é um ator operacional no caso de uma escalada de tensões movida pelos EUA. Os países europeus integram a aliança militar com os americanos. O Reino Unido apreendeu um navio com petróleo iraniano, aparentemente, sob as ordens dos EUA. As ligações militares e também comerciais são muito fortes, o que impede a Europa, no caso de um confronto entre os EUA e o Irã, de atuar como mediador. Um papel que pode ser protagonizado em primeiro plano pela Rússia, que é mais independente em relação aos EUA, e, em segundo plano, pela China.

Esse alinhamento com a Rússia e China, na sua análise, não é tão benéfico no plano econômico como poderia ser com a Europa.

Os iranianos necessitam dos ocidentais no nível dos negócios. Essa é a contradição. A ruptura total com a Europa é uma opção difícil. Os europeus compram petróleo iraniano potencialmente a longo prazo. Há complementaridades econômicas que ultrapassam a ideologia. Se um dia houver novamente um dirigente pragmático no Irã, ocorrerá uma aproximação com a Europa, pois os interesses econômicos são convergentes. Essa complementaridade econômica não existe com a Rússia e a China. Mas face à escalada americana, o único ator que pode compensar no plano econômico é a China. Europeus trabalham com bancos chineses no mercado iraniano, pois os bancos da Europa se recusam.

As tensões no Estreito de Ormuz deverão continuar?

O Irã disse a todo mundo: ou todos exportam petróleo ou ninguém.

Quais os futuros cenários possíveis para essa crise?

Há duas possibilidades, a escalada militar ou a negociação e o retorno à situação que havia sob Obama. Todo mundo pensa que é preciso um apaziguamento generalizado e que o Irã possa voltar a ter atividades econômicas. Mas, a curto prazo, se está mais para a escalada ou o status quo. Hoje, face à pressão máxima americana, o Irã procura sobreviver e se vê obrigado a encontrar uma solução no quadro da República Islâmica. O Irã limita a si mesmo em suas opções por causa das hostilidades em relação à Arábia Saudita e Israel, que também são atores da escalada americana. O desafio para o Irã é mudar sua política regional para poder se integrar na globalização econômica e garantir o desenvolvimento do país.

No momento, o impasse deverá perdurar?

Se cada um ver seus interesses políticos no curto prazo, para satisfazer sua clientela eleitoral, há um risco de escalada. O Irã não é popular nos EUA, e o líder supremo Khamenei sempre fez do antiamericanismo sua marca de fábrica política. Há atores poderosos dos dois lados que têm interesses em uma escalada, esse é o perigo. A questão é saber se o interesse geral ou o particular é que vai prevalecer. Os EUA permanecem como uma grande potência. Não estamos assistindo ao seu declínio, como dizem alguns. O exemplo do Irã demonstra que Washington pode definir a agenda estratégica internacional.