RIP Claude Régy (1923-2019)

Claude Régy: “Muitas pessoas vêm escutar a música que esperam, ver a pintura que esperam, ver o teatro que esperam. Elas gostam de rever o que já viram, e não apreciam que as tiremos de seus limites do conhecido, porque é algo seguro, não há aventura”. ©Joël Saget/ AFP

PARIS – O diretor de teatro francês Claude Régy, fundador de uma nova estética na dramaturgia, morreu na noite do último dia 25, aos 96 anos de idade. Certa vez, fiz uma longa entrevista com ele aqui em Paris, para a revista Bravo!, por ocasião de sua montagem de 4.48 Psicose, texto da inglesa Sarah Kane (1971-1999), em cartaz no Théâtre des Bouffes du Nord, que seria também apresentada em São Paulo. Lembro que ao nos despedirmos em seu apartamento, que se destacava por conter apenas o mínimo essencial para uma vida cotidiana – uma escolha sua -, me perguntou por qual das escadas havia subido até o seu andar. Diante da minha resposta, me aconselhou a descer por uma outra: “Os degraus em que você pisará também foram usados por Jean-Jacques Rousseau, quando era preceptor de um jovem neste mesmo prédio”, disse. Desci cuidadosamente pela desgastado mármore da escadaria pensando nos passos do célebre filósofo do século XVIII. O ator Gérard Depardieu, que debutou no teatro sob a direção de Claude Régy, o definia como o “apóstolo do silêncio, da penumbra e do despojamento”.

Aqui o texto que escrevi, na época, para a revista.

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FERNANDO EICHENBERG / BRAVO!

PARIS – Quando a sala imersa na escuridão é repentinamente iluminada por um facho de luz, a atriz Isabelle Huppert esta lá, em pé, imóvel diante do público, as pernas levemente separadas, os cabelos presos, vestida com uma ajustada camiseta azul, uma calça de couro preta e calçando tênis. E assim ela permanecerá, sem se deslocar um milímetro, por quase duas horas, o tempo de, entre silêncios e vozes, desvendar as palavras e a tensiva poesia de 4.48 Psicose, último texto escrito pela dramaturga inglesa Sarah Kane antes de seu suicídio, aos 28 anos de idade, em 1999. Depois de uma temporada de casa cheia no Théâtre des Bouffes du Nord, o célebre teatro de Peter Brook em Paris, a montagem francesa da peça de Sarah Kane, dirigida por Claude Régy, chega no fim deste mês em São Paulo, única etapa sul-americana de uma turnê mundial.

Em cena, os projetores criam ora um quadrado ora um retângulo de luz branca no solo, única sustentação móvel da solitária atriz no décor minimalista, completado ao fundo por uma enorme cortina de tule translúcida e metálica. A tela, por vezes, é um muro negro; em outras, fosforesce números disformes representando uma minutagem aleatória: 93, 86, 79, 72, 65, 58… 4.48 é o tempo digital, a hora mais propícia ao suicídio, “uma hora e doze minutos” anteriores à convulsão de um novo dia. “Às 4.48 eu não falarei mais (…) Às 4.48/ happy hour/ quando a claridade faz sua visita/ quente obscuridade que banha meus olhos. (…) Às 4.48/ quando a desesperança fizer sua visita/ eu me enforcarei/ ao som do sopro de meu amante”, anuncia secamente o personagem, irremovível como uma estátua esculpida no centro da cena. Mas a estátua respira, transpira, fala.

A descoberta do texto de Sarah Kane foi mais do que uma feliz coincidência para o diretor Claude Régy, um militante da negação da representação teatral. Para ele, colocar a palavra em primeiro plano, instalar um ator em um espaço vazio e se ocupar unicamente em transmitir aquilo que um texto contém, escutá-lo sem ocultá-lo, é, ao mesmo tempo, a última derradeira fronteira e o nascimento do teatro. Suas primeiras experimentações com o trabalho do texto como principal fonte dramática datam do final dos anos 1960, com a montagem de L’Amante Anglaise, de Marguerite Duras, na qual atores imóveis e próximos face ao público disparavam suas falas nas mais variadas formas. Renunciando ao falar natural, cotidiano e utilitário, ele procura a reinvenção de uma nova linguagem, como se nunca tivesse sido escrita. Nada muito original, ressalta, lembrando Marcel Proust e Gilles Deleuze. Em 4.48, sua  intenção é fazer com que as palavras e frases surjam do nada e se propaguem, até retornarem ao vazio, em uma pluralidade de sentidos na imaginação ou na consciência dos espectadores.

A atriz Isabelle Huppert, dirigida por Claude Régy em 4.48 Psicose.  © Brigitte Enguerand

Em um encontro com estudantes, em novembro de 1988, Sarah Kane disse: “Estou escrevendo uma peça intitulada 4.48 Psicose, sobre uma depressão psicótica e o que ocorre no espírito de uma pessoa quando desaparecem completamente as barreiras distinguindo a realidade das diversas formas da imaginação. Tão bem que você não faz mais diferença entre sua vida acordada e sua vida sonhada”. O texto não pode ser reduzido a um simples monólogo autobiográfico ou a uma desesperada e catártica carta de adeus. Sua escrita mistura prosa, versos, fragmentos, frases soltas, blocos, intervalos, ritmos, diálogos, mas em nenhum momento as palavras são despejadas nas páginas como um desordenado desabafo suicida. Ao contrário, tudo é extensamente trabalhado, reescrito em construção precisa e calculado na sua forma, quase como uma orquestração do desespero. As palavras jogam com os opostos, ressonam como pluma e chumbo, voam e se arrastam, conotam e denotam. Em um momento são inofensivas, e em outro, são golpes secos, punchs, projéteis prontos a acertar um alvo perdido na plateia. “Cada frase exigiu uma longa busca, e às vezes ela dá um jeito para que funcione como um carro-bomba”, diz Régy. Para ele, 4.48 é um poema de sofrimento, de destruição, de masculino e feminino, de violência e impotência, portador de um desejo de não-viver, e não de morrer. No texto, Sarah Kane escreve: “Não tenho nenhum desejo de morte/ nenhum suicida nunca teve./ (…) Escrevo para os mortos, aqueles que não são nascidos”.

Introdutor na França de autores contemporâneos como Peter Handke, Tom Stoppard, Harold Pinter, Edward Bond, Gregory Motton, Jon Fosse ou Botho Strauss, amigo de Marguerite Duras e Nathalie Sarraute, iconoclasta assumido e inimigo declarado do teatro-representação, Claude Régy – que admite só se interessar pelas obras cujo conteúdo considera incapaz de enunciar ou representar – encontrou na peça de Sarah Kane matéria viva para sua criação. “Nada mais que uma palavra sobre uma página e há o teatro”, escreve a autora em 4.48. “Eu me esforço fazendo isso há quase cinquenta anos”, diz o diretor. “Ou seja, fazer com que o texto se torne um elemento dramático por ser um portador se sensações, criador de imagens. Se o ator pensa fortemente as imagens, os espectadores olharão para ele com interesse, e não verão obrigatoriamente as mesmas imagens. Há toda uma liberdade neste conjunto, e Sarah Kane tentou extinguir muitas fronteiras, entre elas aquela entre a forma e o conteúdo. Ela dizia que a forma é sentido. A forma deve servir para transmitir a sensação que o autor quer passar, e não para fazer literatura bonita ou simples elegância na forma de utilizar a sintaxe e o vocabulário. Talvez, ela seja alguém que encontrou um tom correspondente a sua época. Depois de ter realizado ações visíveis e violentas, ela se dedicou unicamente à linguagem, caso de 4.48, rejeitando toda teatralidade repertoriada sob o nome de teatralidade. Ela encontrou uma forma de falar, com força, do mundo tal qual ele é verdadeiramente, e não como uma falsa imagem de um mundo político, hipermoderno”.

Claude Régy se mantém fiel a suas pesquisas iniciadas na época em que a dramaturgia se dividia entre o teatro do absurdo de Ionesco e Beckett e o didatismo de Brecht. Obcecado pelo silêncio e pela lentidão, busca o inconsciente, as zonas obscuras e proibidas, para, pelo texto, recuperar a liberdade de leitor do espectador. Já rotulado de “reacionário individualista” e de fazer rádio em vez de teatro, ele se defende: “Privilegio a matéria sensitiva dos sons, e isso não é uma descoberta minha; Nietzsche e Schopenhaeur já haviam alertado que os sons criam sentidos”.

Sua encenação de 4.48 Psicose é um demonstrativo exemplo de seus métodos, no qual Isabelle Huppert cumpre sua função com extrema habilidade, talento e justeza. Os dois já haviam trabalhado juntos em Jeanne au Bûcher, de Arthur Honnegger, em 1992. Claude Régy conta que, numa noite de insônia, ao terminar a leitura da peça, pensou instantaneamente na atriz para interpretar o personagem: “Tinha dúvidas se ela seria suscetível a correr um risco tão grande, mas, enfim, ela também tinha muitas razões para se arriscar em algo assim”. Praticamente só em cena – o ator Gérard Watkins aparece algumas poucas vezes, na penumbra, como uma consciência dupla –, Isabelle Huppert recita e interpreta o texto alternando lucidez e ironia, força e fragilidade, aspereza e doçura, masculino e feminino, silêncios duradouros e efêmeros, frases longas e palavras soltas, voz mansa e alterada. Suas feições rígidas como pedra, de repente, se esfarelam. Com os punhos crispados, ela não chora, verte lágrimas. Sua presença inconcussa cumpre o papel exigido pelo texto. Não há agressividade explícita. “Sons e frases nos atingem com uma violência pouco habitual, e nos sacodem, tirando-nos de nosso adormecimento cotidiano”, diz o diretor.

As representações no exterior têm colocado o problema da tradução, um ponto no qual Claude Régy é radical. Na sua montagem de Carnet d’un Disparu, de Leos Janeck, ele baniu as legendas. Na turnê de 4.48, igualmente se opôs: “Se você vai ler e ao mesmo tempo olhar para a imagem, há uma quebra; é uma estupidez, uma destruição da liberdade que se tenta dar neste tipo de representação, uma traição em relação à obra, às pessoas que realizaram o espetáculo e ao público. As pessoas são sempre persuadidas de que a linguagem serve para carregar um sentido, e elas querem se agarrar a este sentido. Elas perguntam qual é a história, o que ela conta, o que quer dizer, e se há um símbolo, qual é seu significado”. Voto vencido, acabou aceitando, contra a vontade, uma tradução parcial, de trechos selecionados por ele mesmo, mas respeitando a tipografia do texto original em vez de alinhar as frases em um sistema de legendas horizontais, para resguardar algo da forma poética. “Procurarei escolher frases curtas que caibam em uma linha e outras de pura poesia, e tentar fazer as pessoas entenderem de que não se trata de um texto de uma significação única e precisa”, explica.

“Atingi o fim desta assustadora e repugnante história de uma consciência internada em uma carcaça estrangeira e cretinizada pelo espírito malfeitor da maioria moral./ (…) Observe-me desaparecer”, diz Sarah Kane/Isabelle Huppert, próximo da hora 4.48. O espectador observa e escuta. Desaparece e reaparece com ela, até a derradeira frase: “Por favor, abra a cortina”. O som retorna ao eco vazio, e as luzes se apagam. A palavra permanece.