Sarah Al-Matary: “Há hostilidade crescente em relação à ciência e uma incredulidade face a figuras de sábios”

Em seu novo enasio, Sarah Al-Matary chama a atenção para o anti-intelectualismo, movimento que rejeita acadêmicos, cientistas e artistas e que pode ser observado tanto na extrema direita quanto na esquerda radical.

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Diante do deputados da Assembleia Nacional francesa, em 2007, a então ministra da Economia, Christine Lagarde, lançou: “A França é um país que pensa. Não há ideologia da qual não tenhamos feito uma teoria, e possuímos provavelmente em nossas bibliotecas do que discutir por séculos. Chega de pensar, chega de tergiversar, arregacemos simplesmente as mangas”. A França como a “pátria dos intelectuais”, no entanto, seria um mito criado a partir do século 18. E todo mito tem seu contrário, neste caso expressado pelo anti-intelectualismo, do qual as palavras da ex-ministra são apenas um exemplo. Esta é a tese construída nas cerca de 400 páginas do mais recente ensaio da pesquisadora francesa Sarah Al-Matary, da Universidade Lumière-Lyon 2., “La haine des clercs – l’anti-intellectualisme en France” (ed. Seuil). Segundo ela, o secular anti-intelectualismo francês criticou, ao longo de sua existência até hoje, intelectuais que, em nome da razão e do universal, desprezavam os valores do nacionalismo e o Exército, e pregavam a liberdade, a igualdade e os direitos humanos.

Um anti-intelectualismo que também rejeita acadêmicos, cientistas e artistas, em um quadro não muito distante dos regimes populistas do mundo atual. “Meu livro é uma tentativa de compreensão das razões do anti-intelectualismo, e uma maneira de lembrar sua importância em nosso país. Muitos esperavam um tipo de manifesto em defesa dos intelectuais, mas é uma tentativa de descrição do anti-intelectualismo em toda sua complexidade, da extrema esquerda à extrema direita”, diz a autora em entrevista ao Globo, em sua residência em Paris.

Como surgiu o mito da França como “pátria dos intelectuais”?

Como todo mito, se tem a impressão de que é eterno. Na realidade, quando se olha um pouco mais perto, nos damos conta de que é um mito relativamente recente, pois tem um pouco mais de 200 anos. E é um mito que se constrói progressivamente, a partir do século XVIII, com esta ideia de que a França é um dos países representantes do Iluminismo. E também com a Revolução Francesa, muitas vezes considerada como o desfecho do pensamento iluminista, e que vai instaurar esta ideia de que a França é o país dos direitos humanos e de que os intelectuais são os defensores potenciais destes valores universais. Depois, isso vai se prolongar até nossos dias, com Saint-Germain-des-Près, em torno de personagens como Jean-Paul Sartre e de outros nomes. Mas é um mito, e que tem seu reverso, o anti-intelectualismo. E uma das singularidades do anti-intelectualismo francês em relação ao de outros países é que aqui a figura do intelectual é colocada em um lugar tão alto que os ataques contra ela são excessivamente violentos.

A senhora coloca o célebre caso Dreyfus – em que o oficial militar Alfred Dreyfus foi injustamente acusado de espionagem para os alemães, em 1894, e defendido pelo escritor Émile Zola – como “o momento de maior visibilidade do anti-intelectualismo”, quando se tornou realmente popular, embora já tivesse se manifestado antes.

O caso Dreyfus vê a banalização e vulgarização do uso desta palavra e da etiqueta do intelectual. É um momento muito importante de visibilidade, porque é um verdadeiro confronto que ocorre. O intelectual tal como será definido a partir deste momento, como o defensor dos valores universais, da justiça, da liberdade e dos direitos humanos, assumirá um papel central em nosso país. Mas insisti em deslocar um pouco a cronologia. Há duas revoluções que me parecem importantes. Uma revolução política, a Revolução Francesa, que vai instaurar os princípios de uma democracia liberal e parlamentar, que concede um grande espaço à deliberação, à palavra. E uma palavra confiada a advogados, cientistas, literatos, que serão rapidamente atacados como pessoas de uma palavra vã, mentirosa e falsa. Já há aqui um embrião de ataque anti-intelectualista. A segunda revolução importante é econômica, a Revolução Industrial, que vai instaurar uma verdadeira divisão entre os trabalhadores intelectuais e manuais. É algo que se politiza e que envolve uma massa mais extensa, pois há mais pessoas alfebetizadas, e vão emergir as primeiras teorias anti-intelectualistas.

O nacionalista Maurice Barrès, anti-Dreyfus, multiplicou ataques aos intelectuais, em um discurso similar ao de líderes populistas contemporâneos…

O caso de Maurice Barrès é efetivamente interessante porque foi um dos primeiros a utilizar a palavra anti-intelectual, antes do caso Dreyfus, nos anos 1880, antes que a palavra se banalize. A partir de um certo momento, ele vai se dedicar a provar o valor do que chama de inconsciente popular. É a sua fase populista, e será um dos defensores do boulangisme (movimento de direita nacionalista, 1885-1889), originado do nome do general Boulanger. De forma geral, vai defender o particular, em valores como a terra e a raça, contra o universal. Não é o único a pensar, na época, que liberdade, igualdade e fraternidade e os direitos humanos são valores abstratos que não valem muita coisa. Boa parte dos anti-intelectuais se reclamam de um pensamento realista. Podemos encontrar ecos disso hoje em tudo que se chama de “real politik”. É o realismo em oposição ao idealismo dos teóricos e do intelectualismo.

“A França é governada por pederastas: Sartre, Camus, Mauriac”, disparou Jean-Marie Le Pen, fundador do partido de extrema direita Frente Nacional, hoje rebatizado como Reunião Nacional e liderado por sua filha, Marine Le Pen. Como a senhora analisa o anti-intelectualismo lepenista?

É uma tradição antiga, e ligada especificamente a um anti-intelectualismo que se reclama da ação e do corpo, seja pelos valores militares ou por meio do esporte. Se pensa no fascismo em suas versões italiana e alemã. Situo Jean-Marie Le Pen na extensão do movimento do pujadismo, dos anos 1950. Ele começou ao lado de Pierre Poujade (1920-2003). A especificidade do pujadismo é que este anti-intelectualismo vai defender o “pequeno povo” contra os poderosos e as elites financeiras e administrativas. Há um tipo de articulação entre anti-intelectualismo, no sentido clássico de “ódio aos intelectuais” e antioligarquismo. Vários dos textos de Le Pen citam a antifilosofia, o ódio ao Iluminismo, a valorização do bom senso e da energia popular, a estigmatização das elites universitárias e administrativas, desligadas do mundo e do povo. Esse discurso anti-intelectual é um pouco menos presente em sua filha, Marine Le Pen, que em sua estratégia de “desdiaboalização” focaliza bem mais nas elites financeiras do que em figuras de intelectuais.

No mandato de Nicolas Sarkozy (2007-2012), teria sido a primeira vez que um presidente da República expressou publicamente sua desconfiança em relação aos intelectuais, desvalorizando o academicismo e valorizando o trabalho manual.

Foi algo realmente inédito, porque foi a primeira vez que o discurso anti-intelectualista é assumido diretamente pelo chefe de Estado. Antes, durante da Guerra da Argélia, houve ministros que se manifestaram neste sentido. Mas um chefe de Estado, que assume esse discurso na tevê, ao vivo, de maneira tão frontal, não se tinha visto. Para Sarkozy, penso que não se trata de uma simples postura. Serviu a um tipo de narrativa em torno da construção de seu próprio personagem, de alguém que alcançou o topo da função de Estado sem ter sido necessariamente um bom aluno e ter passado pelas grandes escolas que formam as elites de nosso país. Foi algo recorrente, não apenas pontual. Houve um antes e depois Sarkozy para o anti-intelectualismo na França.

Outra das facetas do anti-intelectualismo é, segundo a senhora, um ataque aos artistas, como se nota em governos populistas de hoje.

Com frequência, o anti-intelectualismo visa também os artistas e, de uma certa maneira, globalmente todos aqueles que são produtores de cultura. Foi o caso na França sob o governo do primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin, quando houve um grande movimento de protesto, principalmente em torno da petição lançada pela revista Les Inrockuptibles contra um suposto anti-intelectualismo de Estado, que atingia o serviço público e também a cultura. O artista, na medida em que é pouco controlável, escapa ao poder e é frequentemente considerado como perigoso.

Existe também, em sua análise, uma rejeição do “intelectual dos direitos humanos”, do academicismo e do progresso científico, que se vê, hoje, nas teorias da “terra plana” ou na crítica aos que alertam para o aquecimento global.

É também algo bastante antigo, remonta aos anos 1900, que sucedem ao boom do caso Dreyfus. É questionado o fato de que os Direitos Humanos são fundados em valores ditos abstratos. É um debate que vem desde Jean-Jacques Rousseau, no século 18. O anti-intelectualismo é um tipo de aglomerado de diferentes tradições. Há, efetivamente, elementos de hostilidade ao cientificismo, tal como vai se desenvolver no século 19. E é certo que, hoje, há uma hostilidade crescente em relação à ciência e uma incredulidade face a certas figuras de sábios. O anti-intelectualismo é um tipo de aglomerado de diferentes tradições. A Ação Francesa (movimento nacionalista e soberanista da direita radical, criado em 1898) vai taxar de efeminados um certo número  de intelectuais considerados pouco viris, segundos seus critérios.

O anti-intelectualismo não é exclusividade da extrema direita, também se manifesta na esquerda radical?

A história do movimento operário é atravessada pelo discurso anti-intelectualista, que pode ser visto também na oposição entre sindicatos e partidos, vistos como focos de intelectuais. Proudhon (Pierre-Joseph, um dos precursores do anarquismo) é um anti-intelectualista de extrema esquerda que contesta a hierarquia, segundo ele injusta, entre os trabalhadores intelectuais, situados no topo da sociedade, e os manuais, oprimidos. Ele defende a educação integral, que reaproxima a escola e o ateliê, como forma de permitir um reequilíbrio. Há o caso também de mulheres anti-intelectuais, que são raras. Por muito tempo, as mulheres sofreram para que fosse reconhecido seu direito de pensar. A questão, para elas, era poder chegar à altura daqueles que eram considerados como intelectuais.

Como a senhora vê anti-intelectualismo contemporâneo?

Na França, vejo, por exemplo, uma diminuição considerável de postos no Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS, na sigla em francês). Há uma crise de vocação da profissão de professor, tão depreciada socialmente. São formas insidiosas de anti-intelectualismo. Não são ataques contra personagens midiáticos, mas algo bem mais perigoso. É um anti-intelectualismo que prefere valorizar um acionário do que um funcionário da cultura. É preciso um reequilíbrio, e fazer com que cada um se sinta socialmente útil. Temos todos a necessidade de recuperar a dignidade no que fazemos, seja qual for nossa atividade.

O recrudescimento do populismo é também uma retomada do anti-intelectualismo?

Na França, me parece que o anti-intelectualismo não se exprime ainda de forma muito saliente neste tipo de movimento. É, sem dúvida, mais forte nos Estados Unidos, por exemplo, com líderes como Donald Trump, e na Europa do Leste. A partir do momento em que os regimes se tornam cada vez mais autoritários, há um certo número de medidas que são tomadas de limitação da liberdade intelectual, e em relação também à imprensa, aos educadores. Penso que isso é, em parte, verdade também para o Brasil ou a Turquia. Na França, faço parte da associação Comitê de Vigilância dos Usos da História. É evidente quando há manipulações de episódios ou de personagens históricos. Mas somos todos, a França ou o Brasil, um pouco vítimas de nossas narrativas nacionais. Porque as nações foram fundadas nestas lendas em torno da pátria etc. É para criar o consenso. Talvez seja algo necessário para evitar que as pessoas se matem entre si. Não digo que não haja um fundo de verdade na França como pátria dos direitos humanos e dos intelectuais, mas são narrativas elaboradas pelas elites e datáveis. Não foi algo que existiu por toda a eternidade e para sempre. Mas há um trabalho de difusão pela escola de certas narrativas heroicas, que têm sua beleza, mas não é por causa disso que são totalmente confiáveis.

A revolta dos coletes amarelos tem traços de anti-intelectualismo?

Na minha opinião, há uma crítica das oligarquias e das elites tecnocráticas e financeiras nos coletes amarelos. Mas não me parece que importantes figuras intelectuais foram atacadas. Há o caso do filósofo Alain Finkielkraut, mas que é muito particular e complexo. Os insultos de que foi vítima foram pontuais, onde se mistura uma parte de antissemitismo, de antissionismo, de ressentimentos por proposições intoleráveis que ele pode ter feito. Não vejo anti-intelectualismo nos coletes amarelos. Há uma verdadeira reivindicação de extensão do direito à cultura, que o acesso ao saber seja mais amplo. E também de um acesso direto à cultura, contra o paternalismo e da necessidade de intelectuais como guias. Em uma nova fase da democracia, mais direta e social, em que o papel de intermediário dos intelectuais e políticos se tornaria caduco. Mas sou obrigada a constatar que este tipo de discurso lembra um certo tipo de discurso anti-intelectualista que permeou o movimento operário desde Proudhon. Mas não há ataques lançados de forma recorrente contra os intelectuais. Muitos deles, inclusive, apoiaram o movimento, e não foram rejeitados.

A senhora afirma que somos todos, em dado momento, anti-intelectuais. Em que sentido?

Penso que é preciso lutar permanentemente contra si mesmo nesta questão e em muitas outras. É muito fácil se dizer antirracista, mas há sempre um momento, que pode durar uma fração de segundo, que se pode ter a tentação de uma hostilidade ou a apreensão de uma desconfiança face ao estrangeiro. É o mesmo para o anti-intelectualismo.