Europa cria órgão para combater manipulações e desinformação no ensino de sua história

Turistas visitam o campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Governo ultranacionalista aprovou lei que torna ilegal atribuir crimes nazistas ao Estado polonês. ©Sophie Rosenzweig

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Na Europa Central e do Leste, o discurso histórico atual tende a uma glorificação neonacionalista. Na parte Ocidental, existe a tentação de sucumbir à amnésia nas narrativas de fatos do passado. Sustentado nestas premissas e na procupação com a crescente propagação de discursos xenófobos, racistas e antissemitas, o Conselho da Europa, formado por 47 países, lançou a criação do Observatório do Ensino de História da Europa. A ideia é ter um instrumento capaz de realizar uma radiografia do ensino de História nas diferentes nações, para lutar contra a manipulação e a desinformação e favorecer um relato histórico europeu minimamente comum.

A iniciativa partiu da França, durante seu período de presidência do Conselho, encerrado em novembro, e aprovada em votação por ministros da Educação europeus. Segundo o ex-deputado europeu Alain Lamassoure, designado para capitanear o projeto, 23 países aceitaram ser membros fundadores do Observatório, e outros seis teriam indicado seu interesse em aderir. Hungria e Polônia, governados pelos ultraconservadores nacionalistas Viktor Orbán e Jaroslaw Kaczynski, respectivamente, se recusaram a participar. Suécia e Itália manifestaram reticências.

– Mas Rússia, Geórgia, Turquia, Armênia e Grécia, por exemplo, estão dentro – diz Lamassoure. – E quase todos os países da ex-Iugoslávia, que, infelizmente, continuaram a ter relações muito difíceis entre si, e ensinam uma História muito nacionalista, entenderam que têm interesse em fazer evoluir o sistema e também necessidade de um encorajamento internacional para isso.

Relatório detalhado

Criado em 1949, o Conselho da Europa visa promover a garantia dos direitos humanos, da democracia e do Estado de direito em seus países membros. O Observatório deverá ser instituído no segundo semestre deste ano, após a nomeação de um comitê científico e a escolha de uma cidade para criar sua  sede. O objetivo é de, a cada dois anos, divulgar um amplo e detalhado relatório sobre o estado do ensino de História em cada país, acompanhado de debates com acadêmicos, políticos, ONGs, estudantes e pais de alunos. Os países que não aderiram não ficarão excluídos da análise, mas serão privados de participar do comitê. Espera-se que, a exemplo da avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), feita pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o estudo do Observatório também possa exercer alguma pressão externa para que países corrijam eventuais desvios no ensino da História.

Alain Lamassoure, coordenador do projeto do Obervatório. © AFP/John Thys

– Há 15 anos, vimos em todos os países europeus, sem exceção, ressurgir um discurso de ódio, de partidos políticos extremistas, xenófobos, racistas – alerta Lamassoure. – Cada país é totalmente livre de ensinar o que quiser em todas as áreas, na história, na filosofia, na matemática. Mas é muito inquietante nos darmos conta de que se não transmitirmos às próximas gerações os ensinamentos de nosso erros do passado, arriscamos ver o reaparecimento de movimentos nacionalistas que conduziram às guerras. A maneira de apresentar as narrativas históricas tende a incitar à reconciliação ou, ao contrário, a reforçar ressentimentos.

Lamassoure acusa a formação, hoje, de patriotas em vez de cidadãos europeus, e lamenta tentativas oficiais de “reescrever” a História. Cita como exemplos manuais escolares húngaros que destacam a “Grande Hungria” de 1867 a 1918, o que serviria ao ultranacionalismo do partido Jobbik e a política de Orbán; e também a lei votada pela Polônia, em 2018, que proíbe a atribuição de crimes nazistas ao Estado polonês. Em sua mira, também está o ensino “bastante nacionalista” na Catalunha, em Flandres, na Escócia ou na Irlanda do Norte.

– Percebi que em um certo número de países havia uma visão da História completamente falsa. Nas jovens gerações, há pequenos nacionalistas ou amnésicos, que são bastante vulneráveis. Quando se faz sondagens, hoje, sobre quem é o povo mais próximo da França, dois em cada três franceses respondem que é o alemão. É quase um milagre. Isso é graças, também, a essa contribuição política original que é a União Europeia, que, embora avance lentamente, combina a união com a independência e autonomia de cada país.

“Instrumento de reflexão”

O historiador Benoit Falaize, colaborador do projeto, acredita que o Observatório é uma oportunidade para que se faça uma cartografia europeia de todos os temas sensíveis do ensino de História em cada país:

– Na Estônia, se vê que a memória do nazismo é vista como uma parte do patrimônio nacional, porque os nazistas se opuseram ao comunismo. Na Ucrânia, há grandes personagens que colaboravam com o regime nazista que têm ainda sua estátua em Kiev e são apresentados como heróis nacionais nos manuais escolares. Isso interroga.

Benoit Falaize, autor do livro “Ensinar História na escola”. ©Divulgação

As interpretações da Segunda Guerra Mundial e as memórias sobre a violência dos totalitarismos nazista e soviético são, segundo ele, motivo de constante divergências nas classes de História.

– O que ensinar aos jovens húngaros de hoje? Que os soviéticos invadiram o país e foi uma catástrofe nacional? Ou que ocorreram duas tragédias nacionais na Segunda Guerra Mundial, a tomada de poder pela extrema direita em aliança com os nazistas, sucedida pela invasão soviética? No segundo caso, é possível definir um ideal democrático, ou seja, “não” ao poder autoritário e ditatorial. No primeiro, pode dar algo como “finalmente, os nazistas não era tão ruins, e não temos nada a ver com os judeus”, o que leva a uma consciência cidadã bastante singular. A comunidade de historiadores na Hungria está, hoje, em franca oposição ao governo Orbán sobre a maneira como é ensinada a Segunda Guerra Mundial.

Além dos países de “propaganda nacionalista”, os idealizadores do Observatório atentam também para aqueles que concedem pouca importância ao ensino da História ou que o fazem de forma insatisfatória.

– Na Holanda e nos países escandinavos, o programa nacional de educação é chamado de “cânone”, constituído de uns 50 temas, e cada escola deve escolher uma dezena deles – diz Lamassoure. – São assuntos sem relação cronológica, como a Renascença na Itália, a descoberta da América, os progressos científicos do século XX, a situação dos camponeses na Idade Média ou dos operários na Revolução Industrial. Há conhecimentos sobre o passado, mas que não permitem entender o que ocorreu nas gerações de seus pais e avós, em seu país e no mundo. Se não compreendermos o fenômeno da colonização e da descolonização, como entender a relação atual entre os continentes? Não é possível.

Ele conta também com a divulgação de trabalhos de historiadores externos aos âmbitos nacionais, como meio de influência para que as populações afrontem seu passado e seu presente. Foi o caso do historiador americano Robert Paxton, que revelou com sua obra “A França de Vichy”, em 1972, o papel exercido pelo governo francês na deportação de judeus durante a ocupação nazista.

– Um outro exemplo, ainda mais interessante, é o do historiador polonês Jan Thomasz Gross, que se instalou nos Estados Unidos fugindo do comunismo. Ele estudou a cumplicidade de uma parte do povo polonês com os nazistas, contra os judeus, um tema que permanece extremamente sensível na Polônia. Outro historiador, o americano Timothy Snyder, faz um trabalho extremamente interessante sobre o Holocausto na Europa Central e do Leste. Os historiadores dos países estudados não podem fazer de conta de ignorarem estes estudos.

Falaize defende o Observatório como um “excelente instrumento de reflexão” para historiadores e professores de História em “um momento em que se impõe a questão da democracia na Europa”. E alerta para um novo “fenômeno político”:

– Hoje, pode-se continuar a fazer funcionar a democracia com pessoas no poder que dizem qualquer absurdo, o que é assombroso. Antes, só os ditadores se assumiam como tal e suprimiam a democracia. Hoje, há manipulações, fake news, violência verbal… Não se formam, atualmente, cidadãos críticos e vigilantes aos usos da democracia e de manobras políticas de doutrinação.