Na França, edição crítica transforma livro de Adolf Hitler em alerta contra a extrema direita

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

Manifestantes na ‘Marcha da Liberdade’ em Villeurbanne, contra a ascensão da extrema direita na França. ©Jeff Pachoud/AFP

PARIS – A versão crítica francesa da mítica obra “Minha luta” (Mein kampf), do líder nazista Adolf Hitler, foi lançada este mês em meio a polêmicas e em um clima de ameaças da extrema direita no país. O projeto da editora Fayard, um trabalho de uma equipe de historiadores franco-alemã anunciado em 2011, adiado e depois finalizado a partir de 2015, resultou em um volume de 896 páginas, 3,6 quilos e 30cm x 24,5cm de dimensão, sob o título “Historicizar o mal – uma edição crítica de “Minha luta”. A edição, com 27 textos analíticos e quase 3 mil notas explicativas, nasceu com a ambição de contextualizar historicamente “Minha luta” e apontar as fake news do Führer na controversa obra.

Avanço da ultradireita

Há uma década, quando a iniciativa editorial francesa começou a tomar forma, não se imaginava que em 2021 a ultradireita e suas ramificações populistas e supremacistas estariam em evidência na França, mas também no Leste europeu, na Índia, nos Estados Unidos ou no Brasil, o que conferiu um outro significado ao lançamento do livro. Na França, a extrema direita, representada por Marine Le Pen, do partido Reunião Nacional, lidera, segundo as pesquisas, as intenções de voto para o primeiro turno das eleições presidenciais de 2022. Generais da reserva e militares da ativa lançaram recentemente manifestos denunciando um quadro de insegurança e de prenúncio de guerra civil no país, ameaçando com uma possível intervenção militar. O suposto cúmplice do agressor do presidente Emmanuel Macron, que filmou a cena do tapa ocorrida no dia 8 em Tain l’Hermitage, possuía em sua casa um exemplar de ‘Minha luta’, encontrado durante a perquisição policial. No sábado dia 12, manifestantes saíram às ruas em cidades da França para protestar contra “as ideias de extrema direita” no país.

Para Florent Brayard, codiretor do livro e membro do Centro de Pesquisas Históricas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, na sigla em francês), Hitler foi um líder populista há 100 anos, em condições históricas particulares, e não se pode compará-lo com o ex-presidente americano Donald Trump ou Jair Bolsonaro. No entanto, ressalta a “enorme ameaça” do populismo hoje no mundo:

Basta ver os estragos que os líderes populistas causaram no Brasil, nos EUA ou na Inglaterra neste quadro de crise sanitária. No Brasil, é uma terrível tragédia, com efeitos não somente para os valores democráticos, mas também para a vida das pessoas. As reflexões sobre o populismo são, de uma certa forma, o componente cívico de nosso projeto. O surpreendente na realização deste livro, e que se tornou mesmo uma estranha experiência para nós, foi identificar todos os erros e mentiras de Hitler justamente nesta época em que a checagem se tornou tão importante e fundamental para a democracia, em relação à noção de verdade e da qualidade da informação.

O historiador Olivier Baisez, da Universidade Paris-8 e colaborador da nova edição francesa, cita como um exemplo as explicações de Hitler para a derrota da Alemanha na Primeira Guerra de 1914-1918.

– Ele retoma a lenda da “punhalada pelas costas”, na afirmação de que o exército alemão estava em condições de vencer o conflito em 1918, mas que teria sido traído pelos partidos de esquerda, judeus e uma parte da população civil, em uma sabotagem do esforço de guerra que impediu a vitória. Sabemos que isso é falso. No livro, Hitler abusa de raciocínios errôneos, inventa muitas outras coisas, como fatos biográficos e mentiras sobre seu percurso político. Nós desvendamos isso, exatamente para evitar que alguém diga que ele tinha razão.

Hitler examina uma edição especial de “Minha luta”. ©AFP

Publicado em dois volumes em 1925 e 1926, “Minha luta” se tornou uma das peças de propaganda do Terceiro Reich, impresso em mais de 12 milhões de exemplares durante o regime nazista. Interditada na Alemanha em 1945, ao final da Segunda Guerra, a obra maior de Hitler, cujos direitos desde então pertenciam ao governo da Baviera, foi relançada novamente no país em 2016, quando caiu em domínio público, sob a forma de uma edição crítica organizada pelo Instituto de História Contemporânea de Munique.

“Mein Kampf” na França

Na França, onde nunca foi proibido, “Minha luta” vem sendo publicado em uma tradução de 1934 pela editora de extrema direita Nouvelles Éditions Latines. Em 1972, um processo na Justiça obrigou a editora a publicar oito páginas de introdução lembrando a ideologia criminosa do texto, que levou ao Holocausto.

Entre 2003 e 2020, “Minha luta” vendeu em torno de 70 mil exemplares, e no ano passado foram cerca de 5 mil – diz Brayard. – E o livro físico vendido em livraria por uma editora de extrema direita é uma coisa, outra é que se pode baixar facilmente na internet versões em PDF, mal traduzidas e sem acompanhamento histórico. “Minha luta” circula de forma massiva em diferentes países, e a única circulação apropriada para esta obra é uma edição crítica, o que procuramos fazer. Nas bibliotecas, a procura pelo livro aumenta a cada vez que há uma crise internacional. É um dado interessante, pois mostra que é uma fonte de informação e de orientação para muitas pessoas.

A edição, mesmo crítica, não se privou de polêmicas e de vozes contrárias ao seu lançamento ao longo dos anos. Em 2015, Jean-Luc Mélenchon, líder do partido de esquerda radical França Insubmissa, escreveu uma carta à editora Fayard: “Seu desejo de uma edição crítica, com comentários de historiadores, não muda minha discordância. Editar é transmitir. A simples menção de seu projeto já garantiu publicidade incomparável a este livro criminoso”, protestou.

Já este ano, o historiador Johann Chapoutot, autor de várias obras sobre a ideologia nazista e que recusou o convite para colaborar com a nova edição, acusou a “focalização” em “Minha luta” de encorajar uma “leitura hitler-centrista do nazismo já ultrapassada”.

Para Baisez, as duas críticas são infundadas:

– Mélenchon diz que editar “Minha luta” é somar Hitler ao crescimento da extrema direita. Não trouxemos Hitler, ele já estava aí. O que fizemos foi cercá-lo de precauções, explicações e refutações de suas mentiras. Sobre o hitler-centrismo, penso que o fato de se interessar a Hitler não impede que se trate de todos os outros amplos aspectos do nazismo. O nazismo não se resume a Hitler, mas ele permanece como um elemento importante.

O livro lançado este mês na França, sem o nome de Hitler na capa. ©Reprodução

A edição francesa buscou a excelência na crítica histórica e também na tradução. Para passar o texto de Hitler do alemão para o francês, contratou o premiado germanista Oliver Mannoni, tradutor de autores como Sigmund Freud, Stefan Zweig, Franz Kafka ou Peter Sloterdijk. Toda a receita obtida pela venda do livro, com preço unitário de € 100, será destinada à Fundação Auschwitz-Birkenau, responsável pela preservação da memória do principal campo de extermínio nazista na Segunda Guerra. “Historicizar o mal” será distribuído gratuitamente a bibliotecas, e enviado a livrarias somente sob encomenda. Em uma carta endereçada aos livreiros, a diretora-geral da Fayard, Sophie de Closets, justificou o projeto: “Para saber para onde vamos é fundamental perceber de onde viemos, e temos a convicção de que o trabalho dos historiadores é necessário para combater o obscurantismo, a conspiração e a rejeição da ciência e do conhecimento em tempos conturbados, marcados pela ascensão do populismo”.

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