Autoritarismo está por trás de discurso de ameaça de guerra civil na França, diz sociólogo

Ato do movimento dos coletes amarelos em Paris com a inscrição ‘traidores da nação’ no chão; arsenal repressivo aumentou com luta antiterrorista. ©Benoit Tessier / Reuters

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – O discurso de ameaça de uma guerra civil tem sido presente na França, adotado seja por militares, políticos da extrema direita e da direita e mesmo membros do governo. Generais da reserva e militares da ativa lançaram dois manifestos alertando para o quadro de insegurança e de prenúncio de guerra civil no país, e ameaçando com uma possível intervenção do Exército. O tema é recorrente nas manifestações da Reunião Nacional (RN), partido de extrema direita liderado por Marine Le Pen. Considerado um nome em ascensão da direita tradicional na corrida presidencial para o pleito de 2022, Xavier Bertrand também denunciou a confrontação entre os franceses “no risco de guerra civil”. Já o projeto de lei contra o separatismo proposto pelo governo Emmanuel Macron para combater o radicalismo islâmico no país foi elaborado sob o tema do agravamento dos conflitos na sociedade.

Adam Bazcko, especialista em sociologia de guerras civis do Centro Nacional de Pesquisas Sociais (CNRS, na sigla em francês), descarta qualquer possibilidade de uma guerra civil no país e define este atual mantra francês como um pretexto para transformar instituições públicas e de poder em um viés autoritário.

Por que, hoje, este recorrente discurso de ameaça de guerra civil na França?

Não há risco de guerra civil. Pesquiso sobre os contextos de guerras civis em geral. Hoje, trabalho sobre os casos do Afeganistão, da Síria e do Mali, por exemplo, e os elementos que levaram estes países a entrarem em guerra civil não estão de nenhuma forma reunidos na França. Não há um Estado francês em processo de ruptura e de desmoronamento, e também não há a estruturação de um grupo político-militar dedicado a reivindicar uma parte do território francês e a praticar violências contra os agentes do poder público. Então, por que oficiais do Exército francês, políticos da direita tradicional e membros do governo – a lei do separatismo tem o tom de ameaça de guerra civil – evocam esta questão? Minha resposta é que a linguagem da guerra civil, mais a dramatização da situação política, dissimulam um desvio bem mais importante que é uma virada autoritária em instituições e em partidos políticos com tendência a impor modos cada vez mais autoritários na administração cotidiana do poder.

Quais os exemplos disso?

Além da multiplicação de discursos políticos em partidos tradicionais e democráticos, como é o caso de Os Republicanos, nos quais os membros começam a falar cada vez mais como partidos não democráticos, há ecos disso na situação americana – onde o Partido Republicano crê cada vez menos na alternância política -, mas também húngara – com partidos cada vez mais autoritários e com cada vez menos respeito pela instituição universitária ou a imprensa -, ou na brasileira. Já a França viveu quase a metade dos últimos seis anos sob um estado de exceção legal. A definição do que poderiam fazer as forças de segurança foi determinada por uma lei derrogatória. Tivemos uma multiplicação de medidas que atacaram as liberdades públicas. A liberdade de manifestar na França recuou bastante nos últimos anos. As violências na manutenção da ordem se multiplicaram. A Comissão dos Direitos Humanos da ONU notificou a França por isso. O quadro legal de detenção preventiva piorou muito, o que foi denunciado pela ONU e pelo Conselho da Europa. Houve uma radicalização das posições dos sindicatos da polícia. A recente multiplicação de alertas ao risco de islamoesquerdismo na universidade francesa mostra o desejo de politização no meio conservador. A essência do trabalho universitário é sua independência em relação aos poderes políticos, e isso é questionado agora aqui na França, como na Polônia, na Hungria, na Flórida ou no Brasil. A campanha sobre o islamoesquerdismo é bastante reveladora, porque foi misturada à escrita inclusiva, aos estudos pós-coloniais e à suspeita de importação da cultura do cancelamento no meio universitário. A relação entre estes elementos é que todas estas acusações vêm do mesmo grupo político, que se caracteriza por uma visão conservadora com o objetivo de transformar a sociedade e o Estado franceses de uma forma que lembra muito a situação polonesa, a americana do Partido Republicano de Donald Trump e a brasileira.

Como o senhor analisa a tomada de posição dos militares?

Isso mostra que a instituição militar está em crise. A partir de 2015, o Exército integrou a luta antiterrorista, o que não faz parte de seu trabalho. Foi uma proposição do então governo de esquerda [de François Hollande] contra o desejo de grande parte do Estado-Maior. Se vê também hoje uma radicalização dos militares, que votam cada vez mais à extrema direita. Há um tipo de pânico moral no Exército como em toda uma parte da sociedade, com a dimensão de uma ideia hegemônica de que as dezenas de milhões de imigrantes dos últimos anos provocariam uma onda de “grande substituição” [da população branca], para usar a linguagem da extrema direita. Essas teorias do complô, que são delirantes em relação à realidade, se tornam cada vez mais dominantes em determinados setores da sociedade francesa, o Exército incluído.

O recente tapa recebido por Macron por um adepto da extrema direita, mas também agressões a ministros e parlamentares tiveram importante repercussão na França como o sinal de uma brecha entre os cidadãos e a classe política.

Este tipo de agressões já se produziu no passado, não é novidade. Mas é representativo de uma ruptura progressiva entre a classe política e os cidadãos, o que é revelado de forma mais brutal pela abstenção eleitoral crescente e sistemática há 30 anos. E foi o que mostrou bem o movimento dos coletes amarelos, que rejeitava todos os partidos políticos, com demandas de todos os tipos, da esquerda à direita. Há uma ruptura entre a estruturação partidária do campo político francês e as demandas dos cidadãos. Isso se explica muito pelo fato de que houve uma grande continuidade de políticas na alternância de poder entre direita e esquerda nas duas últimas décadas, de difícil compreensão para os cidadãos. A presidência de François Hollande foi a da reforma do código de trabalho, de inspiração bastante liberal, e da reforma universitária, em continuidade com o governo de Nicolas Sarkozy [direita] e próxima com a de Macron. A continuidade de programas e, sobretudo, o fato de que os diferentes votos não tiveram efeito em termos de transformação de práticas políticas pelos partidos provocaram uma ruptura cada vez maior entre os políticos e os eleitores.

Segundo o senhor, o “suicídio político” da esquerda abriu caminho para a direita e a extrema direita na França, e seja com a vitória de Macron ou de Marine Le Pen nas eleições presidenciais de 2022 existem, do ponto de vista do arsenal jurídico e da legislação atual, condições que possam levar o país a repetir situações autoritárias como as da Hungria ou da Polônia.

A fragmentação e o desmoronamento da esquerda francesa é muito importante, porque influi no debate político e nas medidas que são adotadas com o objetivo de vitória na próxima eleição presidencial. O eleitorado disputado por todos não é de centro, mas de direita e de extrema direita. Os eleitores que votam à esquerda se tornaram marginais em número. Hoje, segundo as mais recentes pesquisas, de 70% a 75% dos franceses se dizem de direita. Além de reduzida, a esquerda se encontra fragmentada, sem nenhuma chance de representar uma ameaça eleitoral. Macron não tem necessidade nenhuma de conciliar com as vozes de esquerda. Ele considera, com certa razão, que os eleitores de esquerda se verão obrigados a votar nele contra Marine Le Pen. Há uma radicalização do debate, definido por temas propostos pela extrema direita e não pela disputa tradicional entre partidos de direita de esquerda.

Em uma eventual reeleição de Macron, o senhor prevê novas violências sociais por causa de mais uma onda de reformas liberais, e no caso de uma vitória de Marine Le Pen, um quadro ainda pior.

Neste ponto vemos que o risco de guerra civil é totalmente ausente. O movimento dos coletes amarelos, que teve uma enorme mobilização na França e hoje está fraturado, mostrou que as forças de manutenção da ordem controlam extremamente bem a situação. Se ocorrerem novas desordens no país, o que é provável, há uma polícia que possui perfeitamente os meios de reprimi-las e de tornar cada vez mais difícil o ato de protestar. A situação seria ainda mais grave com a eleição de Marine Le Pen, pois ela poderia se aproveitar de regimes derrogatórios que se multiplicaram no domínio da segurança para impor medidas e reprimir toda contestação da ordem. Haverá um risco de desvio autoritário com Macron, mas ainda maior se Le Pen assumir o poder.

Quais as lições a serem tiradas das recentes eleições regionais na França, marcadas por um índice recorde de abstenção e as derrotas de Macron e de Le Pen?

Esta eleição mostra que várias forças políticas surgidas na última década, principalmente a República em Marcha [de Macron] e a França Insubmissa [da esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon], ao decidirem não formar estruturas partidárias, com militantes e quadros, se interditaram uma implantação local séria. Estamos face a dois partidos hoje que dependem completamente de seus chefes e das eleições presidenciais. É por isso, principalmente, que o Partido Socialista e Os Republicanos, que são estruturas com uma verdadeira representação partidária em escala nacional, foram os grandes vencedores das eleições regionais. A segunda lição é que a esquerda vai mal, pois não há um líder dominante para impor um programa e obrigar um tipo de coalizão. Isso indica uma marginalização da esquerda no pleito presidencial. A terceira lição é que se Macron é amplamente favorito para a reeleição, está em uma situação de grande fragilidade para o pleito legislativo. É bastante provável que se passe algo absolutamente inédito na 5° República: um presidente eleito sem maioria no parlamento, ou seja, uma Assembleia Nacional com quatro forças concorrentes, e nenhuma com maioria suficiente para formar um governo, como ocorre com frequência no governo italiano, por exemplo. Não me surpreenderá se a República em Marcha não consiga eleger mais de um quarto de deputados nas próximas eleições legislativas.

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