christiane jatahy abrirá festival de avignon com peça que reflete intolerâNcia e ódio e tendo O brasil atual como pano de fundo

Ensaio da montagem que a diretora brasileira Christiane Jatahy vai fazer de Entre chien et loup (entre cachorro e lobo, em tradução literal) , uma livre adaptação do filme “Dogville”, na 75ª edição do Festival de Avignon . Fotos dos ensaios: ©Magali Dougados

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A 75ª edição do Festival de Avignon, uma das mais importantes manifestações cênicas internacionais, será aberta este ano pela mais recente criação da brasileira Christiane Jatahy, artista constantemente prestigiada nos palcos europeus. Tendo como pano de fundo a atual situação política e social brasileira, “Entre chien et loup” (entre cachorro e lobo, em tradução literal) reflete sobre a intolerância e as raízes do ódio e do mal na vida em comunidade, em um alerta teatral e real para a ameaça dos extremismos no mundo.

O festival francês, anulado em 2020 por causa da pandemia da Covid-19, ocorre este ano de 5 a 25 de julho. Jatahy fez uma adaptação livre do filme “Dogville” (2003), do dinamarquês Lars Von Trier, no qual a personagem Grace (Nicole Kidman), perseguida por gângsteres, chega fugida à cidade de Dogville, onde é acolhida com relutância pelos moradores. A convivência com a forasteira se traduz em abusos, revelando os piores aspectos dos anfitriões, e termina em um massacre. Na peça, Grace é Graça, interpretada por Julia Bernat, atriz habituée dos espetáculos de Jatahy, foragida de um Brasil dominado por um governo fascista envolvido com milícias.

A brasileira Christiane Jatahy. ©Estelle Valente 

Este trabalho é para falar do fascismo – resume Jatahy. – A Graça sai do Brasil no governo Bolsonaro. E mesmo que ele não seja nominado, fica claro que a trama está relacionada ao que acontece hoje no país. Graça encontra os personagens do filme não em Dogville, mas em um teatro, tentando mudar o final da história do filme, e aceita participar desta experiência. Há a questão da aceitação e da exploração, até a desumanização. Neste momento, se instaura o fascismo, quando a vida do outro não tem mais valor.

Milícia em cena

A encenação aborda mas não deixa claro qual seria a relação da família da protagonista com as milícias. Jatahy quis também mostrar como o “fascismo pode surgir de um lugar não distante de nós”:

–  É o que se passa no Brasil, com muitas pessoas próximas que não enxergam o discurso fascista. E muitas vezes, quando se dão conta, já é tarde demais. É uma peça que fala sobre o risco do que pode ocorrer em outros lugares do mundo. E para tratar disso, fala claramente sobre o que está acontecendo hoje no Brasil. Eu não acreditava que Bolsonaro pudesse ser eleito e que pessoas que conheço poderiam votar nele. Isso foi uma questão central em muitas famílias brasileiras. Porque não se está falando daqueles fanáticos explícitos, mas de pessoas que conseguem disfarçar o discurso extremamente violento que sempre houve em Bolsonaro, e sublimar isso, como se não fosse fato, como se o verbo não fosse ação.

A diretora, que vive entre o Rio e Paris, ressalta o crescimento na França da líder de extrema direita Marine Le Pen, bem situada nas pesquisas para as eleições presidenciais de 2022, e define o momento atual como “extremamente complicado”:

– Fizemos alguns ensaios abertos na França e na Suíça, e os espectadores se sentiram impactados. O perigo vem com muitos disfarces, e não é real apenas no Brasil. Estamos em uma encruzilhada, e podemos cair em um lado muito sombrio para a humanidade. A peça fala sobre isso.

Em sua mais nova criação – já com turnê agendada em teatros da França, Suíça, Espanha, Itália e Bélgica -, Jatahy aprofunda a interação de cinema e dramaturgia, com filmagens ao vivo exibidas em uma tela, na mistura de realidade e ficção, uma marca de seu trabalho.

Há um jogo superimportante entre o passado e o presente, em uma mescla do ao vivo com o pré-filmado. Desta vez, filmamos antes algumas cenas no mesmo cenário da peça, e isso vai causando uma estranheza, porque o espectador já não sabe se o que está vendo é um registro do passado ou se está ocorrendo na hora. E os personagens vão ficando presos dentro deste filme. É um passado que retorna, um pouco o que estamos vivendo agora. O crescimento da extrema direita na Europa é um passado que pode voltar.

O discurso combina com o tema do Festival de Avignon 2021, “Lembrar-se do futuro”, com uma programação de 46 espetáculos. No dia de abertura, haverá também a apresentação de “O jardim das cerejeiras”, de Anton Tcheckhov (1860-1904), dirigido pelo português Tiago Rodrigues e protagonizado pela atriz francesa Isabelle Huppert.

Sem máscara, nu frontal

“Entre chien et loup”, que além de Julia Bernat conta com atores franceses e suíços no elenco, deveria ter inaugurado em outubro de 2020 o novíssimo teatro da Comédie de Genebra, mas a pandemia adiou os planos. Os contratempos sanitários, no entanto, foram superados pela trupe.

– Desde o início, decidi que levaríamos à risca todas as medidas de proteção contra o vírus – conta Jatahy. – Em dois meses e meio de ensaios, os atores só tiraram as máscaras duas vezes, uma vez para uma filmagem, e uma outra para uma foto. E sempre com teste negativo. Tínhamos dez atores em cena, mais 18 pessoas na sala de ensaio, e não houve nenhum caso de Covid-19. Os atores só viam os olhos uns dos outros, foi uma experiência muito forte. Quando se tornou possível tirar as máscaras, foi impressionante ver os rostos, como um nu frontal.

Diferentemente do trágico final de “Dogville”, Jatahy não renuncia à ideia de utopia, outra característica de suas obras:

– Há na peça toda uma discussão sobre como não repetir o fim de “Dogville”, que representa o fracasso da humanidade. A tentativa de mudar aquele caminho é contínua. Otimismo não tenho mais. Mas tenho a esperança de que se possa reverter tudo isso.

“Entre chien et loup”

De 5 a 12 de julho no Festival de Avignon (França)

Adaptação e direção: Christiane Jatahy

Elenco: Julia Bernat, Véronique Alain, Élodie Bordas, Paulo Camacho, Azelyne Cartigny, Philippe Duclos, Vincent Fontannaz, Viviane Pavillon, Matthieu Sampeur, Valerio Scamuffa.

Colaboração artística e cenografia: Thomas Walgrave
Direção de fotografia: Paulo Camacho
Música: Vitor Araújo
Assistente de direção: Stella Rabello

Colaboração e assistência: Henrique Mariano

Produção: Comédie de Genebra

Duração: 1h50

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