FRANÇA: manifestos MILITARES REVELAM INFLUÊNCIA DA ultradireita NA CORPORAÇÃO

Guardas marcham durante o desfile militar anual do Dia da Bastilha na avenida Champs-Elysées, em julho de 2018. ©Ludovic Marina/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS — Dois manifestos militares publicados no espaço de menos de três semanas surpreenderam o governo e os meios políticos franceses por seu ineditismo. Violando o conhecido apelido do Exército de “o grande mudo” — por seu dever de reserva na expressão de posicionamentos políticos  — generais da reserva e militares da ativa soltaram a voz para denunciar o que consideram ser um quadro de insegurança e de prenúncio de guerra civil no país, ameaçando com uma possível intervenção militar. O episódio revela a disposição de uma parte da caserna em defender os interesses da corporação e também em influir nos destinos do país, em um clima de campanha política a menos de um ano das eleições presidenciais de 2022 que favorece a candidata da extrema direita, Marine Le Pen.

Iminência de guerra civil

Embora descartem qualquer possibilidade de uma intervenção militar na França, analistas consideram grave a manifestação pública de integrantes do Exército. Diferentemente da primeira carta, assinada por 24 generais da reserva, a segunda foi lançada na noite do último domingo por um grupo de anônimos autointitulados militares da ativa. Os dois manifestos, divulgados pela revista de extrema direita Valeurs Actuelles, alertam para a iminência de uma guerra civil na França diante da suposta incapacidade do governo em enfrentar os perigos do islamismo, da imigração e da violência nos subúrbios do país.

Para o historiador Claude Pennetier, do Centro Nacional de Pesquisas Sociais (CNRS), a atitude destes militares é um sinal de que a extrema direita se encontra hoje “bem mais à vontade e mais respeitável” no país, capacitada a aspirar o apoio de corporações como o Exército.

— Trata-se de algo inédito. Desde a Guerra da Argélia [1954-1962] e da OAS [organização paramilitar clandestina francesa contrária à independência dos argelinos], os militares não ousavam manifestar sua opinião desta forma. Obviamente, não há perspectiva de um golpe militar, mas é algo grave e inquietante, e que constitui mais um reforço ao partido de extrema direita Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen. O fato é que há entre militares e também policiais um aumento da extrema direita, ou pelo menos de uma direita dura.

Um pesquisa realizada entre 9 e 15 de abril pelo instituto Ipsos, em conjunto com o Centro de Pesquisas Políticas de Sciences-Po (Cevipof, na sigla em francês), revelou a importância do voto a favor da RN no seio das forças de ordem. Segundo a sondagem, 44% dos militares e policiais ouvidos pretendem votar em Marine Le Pen no primeiro turno do pleito presidencial de 2022 (20% escolheram o atual presidente, Emmanuel Macron). No segundo turno, a porcentagem sobe para 60%.

O cientista político Luc Rouban, do Cevipof, acredita que esta crise se inscreve em um contexto de forte expectativa por parte da população por eficiência pública e também de uma exasperação face a problemas que nunca são resolvidos, como a precariedade dos subúrbios e as violências urbanas.

— Existe na França, hoje, uma demanda por autoridade, o que não é a mesma coisa que autoritarismo. Os franceses são muito ligados à democracia representativa e às liberdades públicas, não se quer um ditador ou generais no poder. Mas os militares têm um pouco esta imagem de uma instituição bem gerida, eficaz, com verdadeiros profissionais que trabalham bem. É o contra-exemplo da cacofonia que se pôde ver nesta crise sanitária da Covid-19. Isso também influencia.

O analista admite, no entanto, uma certa “ambiguidade” nesta tendência pela autoridade. Em outra recente pesquisa do Cevipof, 44% dos entrevistados concordaram com a frase “na democracia nada avança, seria melhor menos democracia e mais eficiência”.

—  Isso não significa um desejo de suprimir a democracia, mas simplesmente, talvez, menos debates e parlamentarismo e mais ações cotidianas concretas. Mas é algo ambíguo. E é certo que Marine Le Pen se aproveita disso tudo.

A ministra da Defesa, Florence Parly, acusou os manifestos militares de “grosseira maquinação política”, utilizando “a retórica, o vocabulário, o tom e as referências da extrema direita”. Em termos similares, o primeiro-ministro Jean Castex denunciou “um manifesto político de extrema direita” e uma “manobra política”.

Orçamento e desprestígio

Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), os militares signatários colocaram o governo em uma armadilha. Segundo ele, o Executivo não pode ficar sem reação face a uma tomada pública de palavra militar, mesmo sob anonimato, deste teor.

—  O governo tem todo o interesse em aplicar sanções, mas também em encontrar um meio de abrir um verdadeiro debate com as mais altas autoridades de defesa nacional. Deve colocar de lado esta ideia de manipulação política, que sem dúvida existe, e procurar compreender por que militares chegaram ao ponto de se expressar dessa forma e por que agora. Melhor tratar o problema profundamente do que deixar se instalar um mal-estar em um dos mais essenciais corpos de funcionários, responsável pela segurança e a defesa do país.

Cautrès aponta um ambiente deletério dos debates públicos e políticos na França atual, algo de que se aproveita a direita radical:

— A estratégia política do semanário Valeurs Actuelles se insere nesse contexto. É uma publicação que não cessa de colocar em evidência a ideia de uma França que declina, que vai mal, que não tem mais lugar no mundo, em falta de patriotismo e onde a autoridade do Estado teria se enfraquecido face à ameaça islamista. Há um clima muito ruim deste debate público no país. Isso alimenta um eco midiático na França em torno das questões do islamismo e da insegurança. E, nesse terreno, Marine Le Pen joga em casa.

Tensão com Macron

A relação do presidente Emmanuel Macron com a corporação militar começou com atritos já no início de seu mandato. Em 19 de julho de 2017, o general Pierre de Villiers oficializou sua demissão do cargo de chefe do Estado-Maior das Forças Armadas após ter deflagrado uma crise por suas críticas abertas — com direito a réplicas de Macron — em relação à política orçamentária do governo para os militares.

Para alguns analistas, os recentes manifestos têm como pano de fundo reivindicações puramente profissionais e socioeconômicas, relativas à revalorização da carreira militar e ao reconhecimento do esforço realizado pelo Exército e a polícia para garantir a segurança desde o ataque terrorista contra o jornal Charlie Hebdo, em janeiro de 2015.

Segundo Rouban, a crise atual é também um elemento de uma tensão mais geral em toda uma parte do aparelho de Estado e da alta função pública, que se sente descartada de um certo número de decisões estratégicas e políticas do governo.

—  Há uma tensão interna entre as autoridades políticas em torno de Emmanuel Macron e a alta função pública, da qual faz parte a recente reforma da Escola Nacional de Administração (ENA). Há também problemas com a polícia. Existe o sentimento de um aparelho de Estado que se sente um pouco ignorado pelas autoridades políticas. Isso faz parte do problema.

Na sua opinião, o momento é “delicado” para o governo Macron:

—  Agora que a campanha eleitoral presidencial está aberta, o entourage de Macron tende a ir mais para a direita. Seu objetivo é criar um curto-circuito na direita parlamentar no tema da insegurança e se colocar como o principal defensor da segurança no país. Neste quadro, é embaraçoso ver as forças de ordem manifestarem seu descontentamento.

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