Contra Trump e nacionalismos, Macron tenta coordenar resposta europeia ao coronavírus

Presidente francês, no entanto, enfrenta dificuldade do bloco europeu de agir coletivamente; acusado de ‘neoliberalismo’, ele faz apologia do Estado de bem-estar. ©Ludovic Marin/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARISA crise do coronavírus reavivou costumeiras dissidências da geopolítica mundial. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reafirmou seu lema “Estados Unidos em primeiro lugar” e fustigou a Europa pela disseminação do “vírus estrangeiro”. Seu colega francês, Emmanuel Macron, se lançou em mais uma tentativa de liderar a ressurreição da União Europeia em torno de uma causa comum, sem obter, no entanto, o apoio almejado, nem de seus tradicionais aliados, como a Alemanha, nem de seus conhecidos desafetos do nacional-populismo.

No plano doméstico, o líder francês, sob manifestações contra suas “reformas neoliberais” e etiquetado como “presidente dos ricos”, louvou as virtudes do Estado de bem-estar social, questionou o atual modelo de desenvolvimento e prometeu decisões de “ruptura” no curto prazo.

Trump interditou de forma unilateral, por 30 dias, toda viagem proveniente da Europa — exceto do Reino Unido e da Irlanda, que também enfrentam o coronavírus mas não integram o chamado Espaço Schengen, formado por 26 países em que a circulação de pessoas é livre. Além disso, ele acusou a União Europeia de negligência. Macron retrucou em um discurso em cadeia nacional, anteontem à noite, assistido por 24,8 milhões de telespectadores.

Este vírus não tem passaporte — disse, denunciando o “isolamento nacionalista”. — É preciso unir nossas forças, coordenar nossas respostas, cooperar. (…) Teremos, sem dúvida, medidas de controle, de fechamento de fronteiras, mas será preciso tomá-las como europeus, em escala europeia, pois é nesta escala que construímos nossas liberdades e proteções.

O presidente francês garantiu ainda que a Europa reagirá de forma “organizada e compacta” para evitar que a crise financeira e econômica se propague, assumindo medidas de apoio e de retomada da atividade, “custe o que custar”. Para Bertrand Badie, especialista em relações internacionais do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), as palavras presidenciais, embora bem-intencionadas, caem no vazio:

— É preciso pôr na cabeça que a Europa é incapaz, hoje, de reagir coletivamente, e que as duas crises que vivemos atualmente, a sanitária e a financeira, revelam uma total inaptidão da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (BCE) para fornecer uma resposta integrada — afirma. — O jogo político na França, como em outros países, é o de utilizar o símbolo europeu em situações de crise, mas de uma forma vazia, formal e secundária em relação ao que se pode realmente esperar.

Por meio de um comunicado, os presidentes da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e do Conselho Europeu, Charles Michel, condenaram a decisão “unilateral e sem consulta” de parte de Washington. Ontem, por telefone, Macron propôs a Von der Leyen que a UE examine a possibilidade de instaurar nos próximos dias medidas de controle reforçadas nas fronteiras do Espaço Schengen. Além disso, o líder francês obteve o acordo do grupo de países ricos do G7 (Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Japão, Itália e Canadá) para uma conversa na segunda-feira, por meio de videoconferência.

Badie, no entanto, vê as opções de coordenação reduzidas atualmente:

— Hoje, a solução está no multilateralismo global ou, infelizmente, em estratégias de cavaleiro solitário, que são de fato muito pouco adaptadas ao jogo internacional tal como existe. Macron insiste, mas não acredita muito na Europa. Trata-se de uma forma de marcar que permanece como “o mais europeu de todos os europeus”, e que a culpa é dos demais se não funciona.

Christian Lequesne, do Centro de Pesquisas Internacionais (CERI, na sigla em francês) assinala que o inquilino do Palácio do Eliseu é o único chefe de Estado e de governo da UE a sempre lembrar da necessidade de agir em conjunto, embora isso não seja o suficiente:

— Ele não recebe retornos fortes e explícitos, este é o problema. Não houve uma reação dos líderes europeus dizendo que Macron tem razão e que Trump tomou medidas totalmente inaceitáveis. Cada país é, hoje, confrontado com a questão nacionalista. E existem os tempos políticos. Nada vem da Alemanha há meses, pois estamos no fim do ciclo da chanceler Angela Merkel, completamente esgotada politicamente. Será preciso esperar as eleições alemãs de setembro de 2021.

Ato II da globalização

As primeiras medidas tomadas pela presidente do BCE, Christine Lagarde, foram consideradas demasiado tímidas no meio europeu. Em seu pronunciamento, Macron manifestou sua insatisfação e anunciou que será preciso um esforço maior. Pressionado pelas ruas por causa da reforma da aposentadoria, que fez aprovar na Assembleia Nacional sem passar pelo voto dos deputados (falta a apreciação pelo Senado), o presidente surpreendeu os franceses ao elogiar o Estado de bem-estar e se interrogar sobre o modelo de desenvolvimento das últimas décadas e as fraquezas das democracias contemporâneas:

— O que já mostra esta pandemia é que a saúde gratuita e nosso Estado-providência não são gastos e encargos, mas bem preciosos. (…) O que revela esta pandemia é que há bens e serviços que devem ser colocados fora das leis do mercado. Devemos retomar o controle, construir uma Europa soberana, uma França e uma Europa unidas. As próximas semanas e meses necessitarão de decisões de ruptura neste sentido. Eu as assumirei.

Para Badie, esta virada em seu discurso é uma consequência dos movimentos sociais pelo mundo, deflagrados no ano passado, que tinham uma causa comum:

— O Ato I da globalização, moldado pelo liberalismo e as leis do mercado, não funciona mais. Todo mundo exige agora que se passe ao Ato II, que reintroduziria as duas coisas que o neoliberalismo dissolveu: o debate político e a realidade do social.