“Mulher”: documentário explora a universalidade e a conexão invisível entre o ser feminino

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – O filme “Mulher”, com estreia nesta quinta-feira, abre com o depoimento da mexicana Norma Bastidas, recordista mundial do mais longo triatlo (152 km de natação, 3.692 km de ciclismo e 1.139 km de corrida em 59 dias). Sua vida, no entanto, não se resume as suas proezas atléticas. A partir dos 11 anos, passou a ser abusada sexualmente pelo avô, e depois foi vítima de tráfico sexual, prostituição forçada, alcoolismo e depressão. Diante da câmera de Anastasia Mikova e Yann Arthus-Bertrand, os diretores do filme, ela conta em lágrimas como, quando já era uma personagem conhecida, revelar publicamente seu trágico passado foi o momento mais difícil de toda sua existência. “Nunca me senti tão terrorizada como no momento de falar disso pela primeira vez. Desde que as palavras saíram, quis engoli-las, mas persisti. Queria quebrar o silêncio. Pois sei, hoje, que foi o silêncio que tornou tudo aquilo possível”, diz no filme.

Norma é uma das cerca de duas mil mulheres entrevistadas em mais de 50 países (Brasil incluído), durante quase quatro anos, pela equipe de “Mulher” – uma sequência de “Humano”, lançado em 2015. Exceto por um ou outro rosto conhecido, o espectador não saberá quem são, pois as cerca de cem mulheres que aparecem no filme de 1h48min não são identificadas pelo nome nem o país de origem.

– Queríamos essa universalidade, algo que transcendesse as fronteiras, e que, justamente, nos une e nos faz sermos seres humanos a partilhar histórias e emoções – diz Anastasia. – Queríamos a palavra virgem. De uma mulher que fala de seu primeiro orgasmo ou do amor por seu filho, não precisamos saber se vem do Brasil, dos Estados Unidos, do Vietnã ou da Rússia. Por outro lado, em certos temas, fornecemos informações por meio dos próprios testemunhos. Quando se fala de estupro, fizemos com que se entendesse que são mulheres yazidi que estavam nas mãos do Estado Islâmico, por exemplo.

Segundo ela, 70% do filme poderia, infelizmente, tratar somente das violências sofridas pelas mulheres – “um tema do qual ainda não se fala o suficiente”, ressalta -, mas a intenção foi mostrar também outros aspectos do ser feminino. As histórias pessoais abordam tanto a primeira menstruação como a desigualdade no trabalho, o sexismo, a relação com o corpo, o envelhecer, a educação, a emancipação, a paixão ou a maternidade. “Mulher” provoca lágrimas, risadas e reflexões, em um verdadeiro “tobogã emocional”, na definição da própria diretora.

Yann Arthus-Bertrand e Anastasia Mikova, os diretores de “Mulher”. ©Peter Lindbergh

Após já ter apresentado o filme em vários festivais e pré-estreias em cidades do mundo, Anastasia confirmou, diante das reações do público, o mesmo sentimento que tivera ao realizar as entrevistas:

– Nas mulheres, há um “efeito espelho” muito forte. Em países completamente diferentes, a plateia se reconhece enormemente nestas mulheres na tela. Algo que eu mesma vivi quando as entrevistei. Estava do outro lado do planeta, em um local que nada tinha a ver com a minha vida, e havia essa conexão invisível presente. E vejo que as mulheres sentem isso ao assistir ao filme. Como se fizéssemos parte deste grande todo feminino. Creio que o termo sororidade é o que mais se aproxima para definir isso.

Em uma das sequências intercaladas entre os depoimentos, mulheres de todas as idades são confrontadas a sua nudez através da lente do célebre fotógrafo Peter Lindbergh, em um de seus últimos trabalhos antes de sua morte, em setembro do ano passado.

– Na filmagem, algumas mulheres hesitaram no início, mas depois que ficaram nuas, assumiram seus corpos. Uma delas, de 92 anos, não queria mais se vestir (risos). Outra, que sofreu uma remoção dos dois seios, disse que até aquele dia detestava seu corpo, mesmo antes da operação, e que a filmagem mudou sua vida. E penso que as imagens mostram isso.

Anastasia insiste que “Mulher” foi feito também para os homens, pois “fala sobre o viver junto” e abre “uma janela para um mundo que eles não conhecem”. Para ela, o filme trata de resiliência e de “escuta”:

– As mulheres estão falando por todo o lado, a fase seguinte é que sejam realmente ouvidas, para que suas palavras não sejam em vão, mas que tenham consequências concretas.

O lançamento do filme é acompanhado por um livro e uma exposição imersiva, que será inaugurada em Paris, em maio, incluindo a totalidade dos depoimentos coletados.