Com viés expansionista inspirado no período áureo do Império Otomano, Erdogan busca a reeleição na Turquia

Fiéis muçulmanos reúnem-se em reconversão em mesquita do Museu de Santa Sofia, em Istambul: Erdogan busca explorar antiga imagem da Turquia de defensora do Islã. ©Kerem Uzel/Bloomberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A Turquia tem se destacado por sua onipresença em diferentes frentes do tabuleiro geopolítico internacional, fonte de atritos com inúmeros países, em uma ofensiva autoproclamada pelo presidente Recep Tayyip Erdogan. Suas ambições além fronteiras – refletidas em ações políticas e militares na Síria, na Líbia, no Mediterrâneo Oriental ou no Sul do Cáucaso, e também por um discurso islamista com pretensões de liderança no mundo muçulmano -, ganharam a definição de “neo-otomanismo”, como um novo viés expansionista inspirado no período áureo do Império Otomano.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO, no entanto, não veem planificação de maior influência global e de grandeza territorial nos anseios de Erdogan, mas uma estratégia voltada para o público interno. Com sua base eleitoral enfraquecida em meio a uma Turquia em sérias dificuldades econômicas, o presidente estaria, sobretudo, usando sua agressiva política externa para reforçar sua imagem doméstica e buscar a reeleição no pleito de 2023.

Há quase 18 anos no poder, na soma de seu mandato como premier (2003-2014) e como presidente (desde 2014), Erdogan, cofundador do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), dirige hoje um país mergulhado em uma grave crise econômica, com crescentes índices de desemprego e de inflação e uma forte desvalorização da moeda. Para governar, costurou uma aliança com o Partido do Movimento Nacionalista (MHP), de extrema direita, e não tem poupado esforços para criminalizar a oposição, em uma política repressiva de prisões arbitrárias, de controle da mídia e vigilância das redes sociais. Nas eleições municipais do ano passado, o AKP sofreu um significativo revés ao perder as prefeituras de Istambul e Ancara, as duas cidades mais importantes do país.

O presidente turco Recep Tayyip Erdogan está no poder há quase 18 anos ©AFP

Para Jean-François Pérouse, diretor do Instituto Francês de Estudos Anatolianos, em Istambul, e coautor da biografia “Erdogan, novo pai da Turquia?”, o neo-otomanismo de Erdogan é “uma forma de mascarar os problemas internos do país”, recorrendo a “recursos simbólicos” para se manter no poder.

– Se focalizou em demasia neste termo, que é uma utilização da História para as necessidades do presente. Há também a dimensão mais religiosa nesta referência estereotipada. Se apresenta o Império Otomano como o momento em que os turcos foram os campeões do Islã. Erdogan procura também esta glamourização para seduzir a comunidade de crentes, pelo menos no mundo sunita. Nas campanhas eleitorais, se mostra como o líder dos muçulmanos e um interlocutor internacional indispensável. Mas a realidade é bem outra.

Não existe um “plano expansionista”, na opinião de Pérouse, mas uma estratégia de ações pontuais com o objetivo de “fabricar novos meios de legitimidade”. Jean Marcou, do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble (Sciences-Po) e ex-diretor do Observatório da Vida Política Turca, vê o neo-otomanismo de Erdogan como um método de “exaltação do nacionalismo”.

– Há um panturquismo bastante étnico desenvolvido no quadro da cooperação com o Azerbaidjão, por exemplo, que é mais um nacionalismo de extrema direita, de movimentos como o MHP. Erdogan tenta recuperar todos estes nacionalistas para aparecer como um personagem central em um contexto de difícil situação econômica. Hoje, ele precisa da extrema direita para fazer passar as leis no Parlamento, sua base eleitoral é cada vez mais estreita. E joga com golpes táticos, que parecem exitosos, como fez no Mediterrâneo Oriental, na Síria, na Líbia e no Cáucaso. Mas o problema é que se encontra muito isolado.

Em suas investidas no exterior, Erdogan acumulou desafetos. Embora tenha se aliado com a Rússia contra a Armênia no conflito de Nagorno-Karabakh, diverge com Moscou nos interesses na Líbia e na Síria. Suas atividades no Mediterrâneo Oriental provocaram reprimendas e sanções por parte da União Europeia (UE), que as qualificou de “ilegais e agressivas”. Seu empenho em se tornar arauto do islamismo bateu de frente com o presidente da França, Emmanuel Macron, em pleno confronto com o islã político em seu país.

Para Marcou, França e Turquia são dois países que almejam um protagonismo ascendente no cenário internacional:

– Para a França, é um dos efeitos do Brexit, que a promoveu como o único país da UE a ter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. A França intervém militarmente na África protegendo os interesses da Europa, e também o fez ao lado da Grécia e do Chipre na questão mediterrânica. Neste arco, que vai do Golfo ao Sahel, passando pelo Mediterrâneo, Líbia, e África do Norte, não é surpreendente que que a França se encontre em confronto com a Turquia.

Erdogan ameaçou repetidas vezes a UE com o rompimento do acordo de controle de suas fronteiras, assinado em 2016, para evitar a passagem em massa de imigrantes para o continente. Mas, no dia 15, apelou à abertura de “uma nova página” com a UE para “salvar” as relações da Turquia com a Europa do “círculo vicioso de crises”.

Biden pode ser empecilho

Já a vitória de Joe Biden nas eleições americanas não foi uma boa notícia para o presidente turco. Embora os EUA tenham retirado a Turquia do programa dos aviões F-35, como punição pela compra por parte de Ancara do sistema de defesa aérea russo S-400, Erdogan mantinha um diálogo com Donald Trump. Para Didier Billion, diretor-adjunto do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, autor de “O papel geopolítico da Turquia”, não há dúvida de que com Biden a relação será “mais complicada”.

– Biden será bem mais exigente com a Turquia em questões de direitos democráticos e humanos, que foram totalmente violados por Erdogan. Ao mesmo tempo, não penso que haverá uma ruptura. A Otan (Organização do Atlântico Norte), que é comandada pelos EUA, considera a Turquia uma peça essencial na região. Por muitos anos, a Turquia foi disciplinada e dócil no seio da Otan, mas hoje age por seus interesses nacionais. Não haverá um clash da Otan e dos EUA com a Turquia, mas certamente o diálogo será mais tenso.

A economia, que hoje já compromete a credibilidade de Erdogan, é a grande incógnita no pleito presidencial de 2023, segundo Jean-François Pérouse, com potencial de complicar sua reeleição.

A desconfiança aumenta. Em sua retórica, Erdogan havia insistido muito em colocar a Turquia entre as dez maiores economias do mundo. Terá de revisar isso para baixo, pois o país tende a ficar mais próximo do 20° lugar.

O presidente turco tem sofrido várias dissidências com a a passagem de importantes integrantes de seu campo à oposição. Billion acredita que seu “melhor período da vida política” já passou, mas ressalva que não se pode subestimá-lo como líder e “animal político”.

– Se as oposições não se unirem, ele terá chances de se reeleger em 2023. Se a crise econômica e social se aprofundar, seus adversários terão fortes argumentos. Mas se conseguir inverter a situação, levará vantagem. Por isso que utiliza um discurso internacionalista, para reconstituir suas bases eleitorais.

TABULEIRO GEOPOLÍTICO DO PRESIDENTE TURCO

Síria

Na guerra civil síria, a Turquia se opõe à Rússia e apoia as milícias que lutam contra o regime de Bashar al-Assad. As forças turcas intervieram no Norte do país, apoiaram o chamado Exército Livre da Síria, que tinha o suporte de nações ocidentais, e depois operaram contra milícias curdas sírias, associadas por Ancara aos separatistas curdos turcos, e aliadas dos EUA na luta contra o Estado Islâmico. Ancara quer impedir um embrião de Estado curdo em sua fronteira, que avive as reivindicações da minoria étnica no país. A Turquia abriga cerca de 4 milhões de refugiados sírios em seu território, e já ameaçou romper o acordo assinado de 2016 com a União Europeia de controle de suas fronteiras.

Líbia

A Turquia elegeu a Líbia como base de sua política intervencionista na região. Seu objetivo é proteger os investimentos privados turcos no país e reforçar sua estratégia de acesso à exploração gasífera no Mediterrâneo Oriental. Ancara apoia política e militarmente o chamado Governo de Acordo Nacional (GAN), de Fayez al-Serraj, criado em 2015 com o aval da ONU, e que desde abril de 2019 enfrenta uma ofensiva do Exército Nacional Líbio (ENL), do marechal Khalifa Haftar, que controla regiões do Leste e do Sul. As ambições turcas na Líbia têm a oposição de países como Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Rússia e França.

Mediterrâneo Oriental

A Turquia trava com a Grécia uma longa disputa por águas territoriais. A recente descoberta de imensas reservas de gás na costa de Chipre acirrou o conflito, que ameaçou passar do âmbito diplomático para o militar. Os gregos têm acordos de exploração e exportação do produto com o governo cipriota. Em novembro de 2019, Ancara assinou um tratado com a Líbia estabelecendo uma Zona de Exploração Exclusiva que incluía parte da ilha grega de Creta, provocando protestos de Atenas. Na UE, a França se opõe de forma enérgica aos movimentos turcos no Mediterrâneo.

Sul do Cáucaso

A Turquia apoiou política e militarmente o Azerbaijão na guerra com a Armênia para a retomada do território de Nagorno-Karabakh, enclave de maioria armênia em território azeri. Um acordo de cessar-fogo em 9 de novembro, após mais de um mês de conflito, consolidou os ganhos territoriais obtidos pelo Azerbaijão ao sul e ao norte do enclave. Rússia e Turquia disputam influência na região, e a Armênia acusou Ancara de prosseguir no Cáucaso a “política expansionista” que executa no Mediterrâneo contra a Grécia e o Chipre, e também na Líbia e na Síria.

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