THOMAS CHATTERTON WILLIAMS fala sobre racismo e seu manifesto CONTRA A CULTURA DO CANCELAMENTO

©JF PAGA

FERNANDO EICHENBERG / REVISTA ÉPOCA

PARIS – Como um dos principais idealizadores do manifesto contra a cultura do cancelamento, que contou com a assinatura de 153 artistas e intelectuais de renome – entre os quais Noam Chomsky, Margaret Atwood, Salman Rushdie, J.K. Rowling e Francis Kukuyama -, o escritor americano Thomas Chatterton Williams jamais imaginou que a iniciativa a  alcançaria tamanha repercussão e controvérsia. O número de seus seguidores no Twitter, hoje em 80 mil, mais do que dobrou após a publicação de “Uma carta sobre justiça e debate aberto”, traduzido em apoio e também em críticas.

Willliams defende a primazia de valores e princípos universais face a sociedades cada vez mais “fragmentadas em grupos identitários”. O racismo não poderá ser superado se acreditarmos em categorias raciais, diz.

Filho de pai negro e mãe branca, autor do ensaio autobiográfico “Self-portrait in black and white: family, fatherhood and rethinking race” (“Autorretrato em branco e preto: família, paternidade e repensando raça”, em tradução literal, ed. Norton), e colaborador do The New York Times, The Guardian e Harper’s Magazine, Thomas Chatterton Williams conversou com Época em um café em Paris, onde reside há dez anos.

Qual é sua avaliação sobre os rumos da luta antirracismo e a questão racial hoje?

Em “Self-portrait in black and white”, defendo que não podemos superar o racismo enquanto acreditarmos em categorias raciais. É algo abstrato, que vem da interação da Europa com a África no comércio de escravos com os EUA, o Brasil e todo o Novo Mundo, por meio da dominação. Cada grupo é diferente, e todos devem ser igualmente respeitados, mas sou contra essa política de identidades, em vez de se tentar alcançar um tipo de “ideal republicano”, como se diz qui na França, ou a visão de futuro de Martin Luther King, em que a cor da pele não importa. O racismo não pode ser vencido com ideais que são fundamentalmente racistas. A armadilha é que as sociedades são racistas. Temos de lutar para superar essas divisões. Nos EUA, se você tiver uma única gota de sangue negro, você é negro. É o contrário da maneira como muitos brasileiros pensam: se você tiver qualquer sangue branco, você não é negro. Acreditei nessa forma de pensar, até que tive minha primeira filha aqui na França, que tem cabelos loiros, olhos azuis e pele branca, e é um quarto descendente de africanos. Ao ter meus filhos, minha crença nisso se esfacelou, me convenci de que estas categorias não funcionam para nenhum de nós.

Quando sua filha, Marlow, nasceu, chegou a considerar-se um “ex-negro”?

Comecei a questionar o que significa se autodefinir com estes termos originados da escravidão. As pessoas na África não se definiam elas mesmas como negras até o dia em que foram levadas para o Novo Mundo e tornadas negras. Comecei a me questionar o porquê aceitamos esta lógica. Não se trata de dizer “não sou negro, quero me tornar branco”. Quero rejeitar esse raciocínio binário, de que algumas pessoas são brancas e outras negras.

Assumir a identidade negra não é necessário para combater o racismo?

É preciso reconhecer que algumas pessoas foram tornadas negras, racializadas, na sociedade. Mas não existem significativas diferenças biológicas. Temos de superar isso. Essas categorias raiciais se tornam cada vez mais fortes. Necessitamos de uma nova maneira de pensar, o que é bastante difícil. Mesmo Donald Trump, que se queixa de ser tratado de forma injusta, e muitos brancos americanos se apresentam como vítimas. Há uma narrativa de vítima. E isso não nos ajuda no estarmos juntos em sociedade e ter uma visão que possamos compartilhar. É uma forma nociva de funcionamento da sociedade.

Não há vítimas reais na sociedade?

Claro, há vítimas na História. Mas definir o presente pela vitimização do passado, dizendo que todas as experiências individuais podem ser medidas por noções de vitimização de grupos não descreve suficientemente bem a realidade. Dizer, em 2020, que todos os negros são vítimas não capta o mundo em que vivemos. Dizer que todos o brancos possuem todos os privilégios na sociedade é algo muito simplista.

Como analisa o surgimento do movimento Black Lives Matter?

Concordo fortemente com a ideia de que é necessária uma reforma da polícia. A polícia é extremamante violenta, mata mais de 1.000 pessoas por ano (nos Estados Unidos; no Brasil são mais de 5 mil registros). É algo horrível, muito violento, e é preciso que mude. Mas não concordo com a lógica que diz que vidas negras e brancas são diferentes. Isso reforça o pensamento racial que não é baseado na realidade, e não penso que seja algo efetivo. Os policiais estão matando pessoas, matam mais brancos, mas matam negros de forma desproporcional em relação à população total (no Brasil, 75% dos mortos pela polícia são negros). Temos de fazer com que todo mundo entenda que todos estão sob risco e de que devemos ter uma força policial menos violenta. Dizer que apenas vidas negras contam faz com que muitas pessoas nem mesmo escutem, falando que “não é meu problema”, e reforça a ideia de que negros são criminosos, que sempre têm problemas com a polícia. Isso distorce o problema, cria algo sobre identidade, quando deveria ser sobre justiça e violência.

O senhor denuncia a cultura do armamento americana…

A polícia têm medo, porque todo mundo pode ter uma arma. Não há comparação com países como França ou Alemanha. O Brasil está mais próximo dos EUA neste sentido, pois há cada vez mais armas e também um problema de violência policial.

O senhor ressalta que não há apenas pessoas negras na ruas, mas negros pobres.

Quando tudo gira em torno de raça, perdem-se muitos aspectos sobre pobreza e classe. A polícia não mata apenas negros, mas negros pobres, brancos pobres. A polícia mata pessoas pobres. Todas os brancos mortos EUA pela polícia são pobres. Georges Floyd foi morto pela polícia de uma forma terrível. Mas por que ele teve a ver com a polícia? Porque era tão pobre que estava usando notas de dinheiro falsas para tentar comprar algo. Se não for abordada a questão da pobreza, mas apenas o aspecto da raça, nada será resolvido para a maioria dos negros. Os negros necessitam de ajuda material, assistência de saúde, creches, empregos. Mas, frequentemente, o discurso nos EUA é que se precisa de mais representantes negros em Harvard, de mais chefes de empresa negros. Isso não soluciona a vida de milhões de negros. Se viu que não muda muito o fato de que o presidente do país seja negro, se há tantas pessoas pobres. O discurso em torno de raça não leva em conta as dificuldades materiais de muitas pessoas.

O negro pobre não é menso bem tratado do que o branco pobre?

Obviamente que existe racismo. Com certeza, a polícia interpela mais negros. Racismo existe, e não quero defender a polícia. Há muitos problemas, mas penso que se deve pensar em questões de justiça e valores e princípios universais, e não na lógica de identidades, o que reforça a ideia de que as pessoas são fundamentalmente diferentes. Em 2020, a realidade é bem mais complexa do que “o negro está mal e o branco vai bem”. Os protestos de Black Lives Matter se tornaram cada vez mais antagonistas. O que era tão eficiente no movimento pelos direitos civis e na luta de Martin Luther King estava no fato de que todo mundo podia aderir, e se está no caminho oposto.

Qual a influpência das redes sociais nas sociedades de hoje?

Há também o QAnon (movimento de teorias conspiratórias), uma loucura. É como uma religião. Acreditam em mentiras extraordinárias, algo muito maior do que se pode imaginar. Esta é uma das razões pelas quais digo que não podemos continuar fracionando em pequenos grupos identitários. Cada um deles tem sua própria verdade. Não compartilham valores, princípios. As pessoas vivem em seus próprios sistemas de realidade. Claro que isso tem terríveis consequências para a sociedade, para o funcionamento da democracia, para as eleições. Tudo isso nos torna desconfiados em relação ao outro. Temos de encontrar uma visão unificada. E as redes sociais são um pesadelo. Obviamente há coisas boas nelas, mas se observarmos bem, nos permitimos participar de uma terrível experiência psicológica de massa, que está destruindo nossa sociedade civil. A Rússia só pode interferir se a sociedade já está destruída. Não poderia intervir na Suíça ou na Suécia, porque são sociedades em que as pessoas confiam umas nas outras. Mas pode facilmente intervir nos EUA, porque as pessoas já têm esses problemas.

Qual era a intenção ao lançar o manifesto contra a cultura do cancelamento?

No manifesto defendemos uma sociedade mais igualitária e que não se pode alcançar isso reduzindo a liberdade. Vivemos em um ambiente no qual se tem cada vez menos liberdade para dizer o que se pensa, para cometer um erro. Pessoas têm sido punidas por normas que ainda não foram estabelecidas. É um argumento em defesa da máxima tolerância, da liberdade de expressão, e contra punir pessoas ou demiti-las quando não se concorda com elas. Temos de ser capazes de discordar. A cultura da intolerância vem de Trump, quando tenta impedir que um atleta futebol ameriçcano continue jogando porque discorda de sua política. Vem da mídia e de instituições culturais. Esse é um momento de pânico, estamos cometendo muitos erros. E quando se faz isso, se cria mais inimigos. Teve o caso de David Shor, que partilhou uma pesquisa que mostrava como protestos violentos prejudicavam os democratas nas eleições. A pesquisa foi dirigida por um acadêmico negro. E Shor foi demitido, acusado de insensibilidade por partilhar estes dados. É algo injusto, e foi uma das razões que nos fizeram redigir o manifesto. Não se pode ter uma cultura em que pessoas são punidas, nem mesmo por comentar, mas somente por partilhar ideias, conhecimento.

Quais foram os efeitos do manifesto?

Se você ler o manifesto, não há nada de muito controverso. Nomes conservadores assinaram, como Francis Fukuyama, mas também Noam Chomsky, alguém realmente de esquerda, e muitas pessoas de centro. Mas se criou uma polêmica que jamais imaginávamos. Nos chamaram de transfóbicos, porque J. K. Rowling também assinou. Disseram que éramos antipalestinos, porque judeus assinaram. Outros nos acusaram de supremacistas brancos. Foi chocante. Mas foi um sucesso, porque foi traduzido e publicado pelo mundo, centenas de pessoas nos escreveram para nos agradecer, porque descrevemos situações que viviam. Não se pode ter tal rrepercussão quando se fala sobre algo que não existe. Pessoas ficaram bravas, argumentando: se Donald Trump está aí e é tão ruim, por que falar destes outros problemas? Mas não é assim que funciona a realidade, não se tem um problema de cada vez. Critica-se Trump, mas deve-se assegurar que não se crie algo ruim para substituí-lo. Para mim, está muito claro que se deve criticar Trump e também um tipo de autoritarismo na esquerda.

Por que deveríamos ler hoje o escritor James Baldwin (1924-1987)?

Primeiro, porque tem uma linda escrita. Era muito perspicaz, percebeu há 50-60 anos muitas coisas que estão acontecendo hoje. Na França, teve uma extraordinária percepção sobre as questões de raça na Europa e nos EUA. Há meio século, escreveu sobre raça ser uma ilusão, e que isso deveria ser superado para se acabar com o racismo. Também escreveu sobre as injustiças sofridas pelos negros, mas em outro tom. Hoje, o tom é “punir, punir, punir”. Baldwin não escrevia sobre punição, mas reconciliação e amor. E isso não temos hoje. Provavelmente, é um dos escritores mais importantes a serem lidos hoje. Ele se tornou popular novamente nos EUA. Mas há muitos outros escritores negros, como Ralph Ellison, Albert Murray, vozes que tratam das mesmas questões. É um pouco frustrante quando se nota que estas questões e argumentos não são novos e têm sido tratados há muito tempo.

Está otimista em relação ao futuro?

Você tem de ser otimista. Estamos em um período sombrio, mas acredito que o real EUA é o de 2008 e 2012, que votou duas vezes por Barack Obama, e que quer superar isso. Penso que Trump representa o fim de algo. Essa visão divisonária, de brancos, está lutando por algo que está no fim do caminho. E também acredito que a reação extremista à esquerda não vencerá a longo prazo. Não posso escrever e viver sem otimismo.

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