Lei de Macron para combater radicalização arrisca estigmatizar Islã e aumentar discriminação de muçulmanos

Fiéis participam das orações coletivas de sexta-feira na Mesquita Omar, em Paris: pesquisa indica que maioria dos muçulmanos tem apreço e confiança nas instituições da República. ©Tyler Hicks/NYT

FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO

PARIS – Nos últimos 30 anos, os sucessivos governos da França procuraram legiferar sobre a gestão e a prática do culto muçulmano no país. O atual presidente, Emmanuel Macron, não fugiu à regra. Seu projeto de lei sobre os separatismos, alvo de controvérsias, visa a um maior controle do islã no país para combater a radicalização do islamismo político e o terrorismo. O líder francês chegou mesmo a evocar a criação de um “Islã do Iluminismo”, mais em acordo com os princípios e valores republicanos. Especialistas ouvidos pelo GLOBO, no entanto, apontam equívocos e potenciais ameaças desta nova tentativa de reorganização do chamado “Islã da França”, e alertam para os nocivos efeitos da estigmatização e da discriminação.

A primeira investida oficial para estruturar o islã na França, hoje a segunda religião do país, ocorreu em 1990, no governo de François Mitterrand. Três elementos levaram o então ministro do Interior, Pierre Joxe, a agir: a polêmica em torno da exclusão de três alunas que se recusaram a retirar seus véus em sala de aula, em Creil; o fatwa lançado pelo aiatolá Khomeini contra o escritor Salman Rushdie, e o crescimento do islamismo na Argélia. Mas o Conselho de Orientação e de Reflexão sobre o Islã da França (Corif), criado na ocasião para pensar a organização do islã no respeito da lei da laicidade de 1905 – que estabeleceu a separação das Igrejas e do Estado -, só durou três anos.

Macron se situa na continuidade de políticas intervencionistas do Estado no culto muçulmano, diz o sociólogo Vincent Geisser, do Instituto de Pesquisas e Estudos sobre os Mundos Árabes e Muçulmanos (Ireman):

– De Mitterrand, passando por Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e François Hollande até hoje, todos os presidentes sonharam em criar uma organização muçulmana a sua imagem. A novidade é que Macron assumiu o dossiê de forma bastante pessoal. Ele está muito ativo, presente e visível. Há um processo de personalização e presidencialização da questão islâmica hoje na França, uma tendência que existia com Sarkozy e que Macron consolida e aprofunda.

Para a historiadora Valentine Zuber, diretora de pesquisas em religião e relações internacionais na Escola Prática de Altos Estudos e autora do recém-lançado ensaio “A laicidade em debate, além das ideias preconcebidas”, a expressão macronista “Islã do Iluminismo” denota uma cultura anticlerical do século 18, introduzida na Revolução Francesa, em um embate entre duas instituições rivais com pretensões políticas, o Estado e a Igreja Católica, vencido pelo primeiro com a lei de 1905.

– É uma cultura profundamente enraizada, veiculada pela escola laica francesa. Há uma visão do religioso extremamente negativa na França, como o lado do obscurantismo. Há esforços a serem feitos por parte das religiões, para mostrarem que estão adaptadas às sociedades modernas, onde se exprime o pluralismo de valores. E também deve haver um esforço por parte do Estado, de uma melhor consideração do papel do religioso na socialização dos indivíduos e na identidade cidadã.

A historiadora aponta um discurso islamofóbico “totalmente descomplexado” hoje na França, e uma laicidade que tem como objetivo combater a expressão religiosa muçulmana sob a cobertura de pensamentos universalistas.

– O verdadeiro alvo são os muçulmanos, e isso complica enormemente as coisas – diz. – O interessante é que hoje não há um retorno do religioso mainstream, mas dos extremos. Isso é verdadeiro para o islã, mas também para o catolicismo, o judaísmo e o protestantismo. Todas as religiões têm variadas sensibilidades, das mais liberais as mais fundamentalistas, e atualmente se assiste a uma visibilidade dos movimentos mais extremistas.

Na opinião de Geisser, a expressão “Islã do Iluminismo”, se usada, deveria ser aplicada a todas as comunidades:

Os católicos não são católicos do Iluminismo. Quando se propôs a legalização do casamento homossexual, entre 3 e 4 milhões de franceses foram às ruas protestar, padres incluídos. E não se diz que são franceses do obscurantismo. É verdade também para o rabinato de tendências extremamente conservadoras ou movimentos evangélicos muito rigoristas. A questão hoje do conservadorismo social e religioso é comum a muitos franceses, não é própria dos muçulmanos.

Por um lado, o sociólogo defende o controle dos financiamentos das mesquitas e da formação dos imãs, previstas no projeto de lei do governo. Por outro, alega que os instrumentos para isso já existem na legislação atual. Seu recente estudo sobre as caricaturas de Maomé com jovens muçulmanos revelou por parte dos entrevistados a deslegitimação da violência para defender o profeta.

– O que é muito importante, na minha opinião, é distinguir a reforma do islã da luta contra o terrorismo islamista.

Na pesquisa quantitativa intitulada “Os efeitos da luta contra o terrorismo e a radicalização das populações muçulmanas da França”, os autores – Francesco Ragazzi, Stephan Davidshofer, Sarah Perret e Amal Tawfik – chegaram a conclusões opostas às constatações do governo: a maioria dos muçulmanos demonstram apreço e respeito às instituições e valores republicanos.

– Nosso estudo mostra que o pressuposto do governo de que o grupo muçulmano na França rejeita as instituições e deseja o separatismo é errôneo – diz Sarah Perret, do King’s College de Londres. – Os muçulmanos revelaram, inclusive, ter mais confiança em certas instituições, como a escola, do que os não muçulmanos. Há uma retórica oficial que quer separar muçulmanos e islamismo radical, mas existe uma ideia geral de suspeição em relação à comunidade. Se a estigmatização continuar, este nível de confiança que existe hoje certamente vai diminuir.

Segundo Perret, há uma instrumentalização da laicidade hoje na França:

– Vemos uma tendência preocupante de uma laicidade identitária. Políticos de extrema direita, como Marine Le Pen, não usam o termo pela igualdade de tratamento para todos os cultos. A laicidade que está irrigando o debate público é diferente daquela adotada em 1905. E a discriminação é um elemento-chave completamente ignorado pelas políticas públicas, e que prepara o terreno para os discursos radicais e favorece o comunitarismo.

Para Stephan Davidshofer, da Universidade de Genebra, é “alucinante” que a luta contra a discriminação não esteja no centro do dispositivo de combate ao terrorismo, como seria o caso na Nova Zelândia por meio de medidas adotadas após os atentados contra mesquitas em Christchurch, em 2019.

– São abordagens totalmente diferentes. Na França, nada se faz para estancar esta dinâmica contraproducente. E há mesmo uma tendência a ampliá-la, principalmente no contexto político atual, em uma necessidade de se olhar mais para a direita com vistas às próximas eleições presidenciais. Não se deve negar o problema do terrorismo islamista, mas o debate está intoxicado, e se entra em uma agenda que é mais política do que de segurança.

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