“Cada tribo enxerga na pandemia a confirmação de suas convicções” diz fundador dos Médicos Sem Fronteiras (MSF)

O francês Rony Brauman afirma que OMS tem que ser refundada, critica governo Bolsonaro e afirma que crise da Covid-19 concretizou ameaça que pairava sobre o planeta há 40 anos, com crescimento das cidades, desflorestamento e mudanças climáticas. ©Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Médico formado em epidemiologia e patologias tropicais, o francês Rony Brauman é um dos fundadores da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), a qual presidiu de 1982 a 1994, acompanhando in loco epidemias como a cólera ou a ebola. Em entrevista ao GLOBO, Brauman, que hoje é membro do Centro de Reflexão sobre a Ação e os Saberes Humanitários (Crash), integrado ao MSF, defende uma total refundação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e faz outras ponderações. Acredita que a cloroquina é ineficaz no tratamento da Covid-19; lamenta a atitude do governo Bolsonaro face à doença; alerta para uma eventual retorno mais violento da pandemia, e afirma: o que esta epidemia contém de “radicalmente novo é a conscientização planetária de um risco compartilhado”.

Para o senhor, a pandemia não porta uma moral comum, mas sim uma vulnerabilidade compartilhada…

A pandemia não traz em si lições que possam ser tiradas de forma unívoca e universal. Se vê bem que nos discursos das diversas tribos, cada uma enxerga nesta epidemia uma confirmação de suas precedentes convicções. O que essa epidemia contém de radicalmente novo é a conscientização planetária de um risco compartilhado. É o sentimento de uma vulnerabilidade compartilhada, que segundo (Jean-Jacques) Rousseau e outros filósofos é o próprio fundamento do gênero humano. E essa consciência não tem nada de bom ou de ruim, é indeterminada no plano moral. É um choque, um medo compartilhado, e apesar de tudo, dá a esperança de que medidas de antecipação deste risco sejam melhor compreendidas e que possa haver um clima mais favorável para suas aplicações.

Aa epidemia poderia voltar em uma forma mais virulenta e contagiosa, como o senhor alerta?

É uma preocupação clássica em epidemiologia de vírus. Os vírus se introduzem nas células e se inscrevem no genoma, e existe a possibilidades de mutação. Era o receio com o Sras-Covid-1 ou a ebola, de que por meio de uma recombinação genética se tornasse um vírus mais virulento e contagioso. Poderia haver uma recombinação genética com a epidemia de gripe comum que virá agora no outono. Não é algo provável, mas pode ocorrer e temos de estar preparados. Mas é preciso situar isso em um contexto mais amplo, na ameaça de epidemia viral há cerca de 40 anos, com uma aceleração desde o fim dos anos 1990.

Como se deu isso?

Por razões de densificação das populações; de megalópoles constituídas rapidamente nos anos 1980-1990; de mudanças climáticas; da deflorestação que levou à migração de certos animais para as cidades ou das grandes monoculturas, que se expandem cada vez mais, seja de soja ou de óleo de palma, com plantas que possuem um patrimônio genético comum. Também pelas viagens intercontinentais, que favorecem a circulação mundial do vírus. São elementos objetivos que temos há muito tempo, e que impõem a reflexão sobre nosso modo de habitat, a biodiversidade e também nas pesquisas sobre os germes, genomas e a geografia e sociologia das epidemias.

Para o senhor, nossa organização social, sustentada na “força conjugada das virtudes do mercado e da tecnociência”, abriu verdadeiras “autoestradas aos vírus”. Será possível mudar isso?

É uma mudança necessária. É possível, mas será preciso uma considerável massa de pessoas que considere isso importante. Não pode ser algo abstrato, que não seja interiorizado pelos indivíduos, e que só se faz por demanda das autoridades. Isso requer muitos esforços, financeiro, de mudança de hábitos, que são difíceis de aceitar. Não são apenas os animais o problema, mas também o vegetal. As grandes monoculturas, que se expandem cada vez mais, seja de soja ou de óleo de palma, são feitas com plantas que possuem um patrimônio genético comum. Os OGMs e as culturas vegetais totalmente homogêneas preveem um controle relativo do genoma, destinado a torná-lo mais resistente a certas agressões. Em uma interferência viral que provoque um problema mais sério, se terá um genoma totalmente aberto a sua replicação, e de forma muito ampla. Daí a ideia de que a manutenção da biodiversidade em termos de polimorfismo genético é uma forma de resistência à dispersão de germes, sejam patogênicos para os humanos, para os animais ou as culturas.

No debate pós-pandemia, onde o senhor se situa?

Quando se diz melhorar o mundo, ainda não se diz como, por que meios, para o que fazer. A ameaça de pandemia sempre parece como algo abstrato, assim como o aquecimento climático. Se sabe que existe o aquecimento global, embora existam pessoas para contestá-lo – elas são menos numerosas a cada ano, mas ocupam postos importantes, o que é perigoso. Além dos “climacéticos”, a questão da transformação da vida cotidiana, como o uso de energias fósseis e a emissão de gás de efeito estufa, é atual porque é falada, mas na prática não se faz nada. No momento, estamos perdendo essa corrida pela transformação social destinada a frear o aquecimento global. Não sou muito otimista. Sei o que quero para meus filhos e netos e a sociedade em geral, mas não sei em que medida isso será feito.

Qual sua análise do trabalho da OMS nesta crise?

Sou bastante crítico ao que faz a OMS, mas viso ainda mais seus países membros, que a impedem de realizar um trabalho correto, exercendo pressões intoleráveis e não fornecendo os meios necessários. Desse ponto de vista, me identifico com críticas endereçadas à OMS, mesmo com aquelas do presidente americano, Donald Trump, porque, de fato, a organização fez prova de uma complacência excessiva em relação ao governo chinês. E isso foi um insulto aos médicos chineses que tentaram lutar para que houvesse uma conscientização da existência de um sério problema. É totalmente normal que o atual diretor da OMS seja atacado em relação a isso. Dito isso, os próprios EUA exerceram nos últimos anos pressões inaceitáveis sobre a OMS, principalmente em relação à política de medicamentos genéricos – desenvolvida na Índia, no Brasil e em outros países -, para defender os interesses de empresas farmacêuticas que têm lucros mirabolantes, de forma desonesta. E essa crise nos lembrou que a Fundação Gates é o segundo doador da OMS. O orçamento da organização é garantido em 80% por doações voluntárias, e deveria ser o contrário, contribuições mais altas e obrigatórias, o que já era previsto no início. É do interesse de todos que haja uma instância mundial encarregada de monitorar a progressão das doenças e dos meios para contê-las, além de denunciar publicamente Estados que descumpram suas obrigações. Isso não é uma utopia, faz parte do regulamento sanitário internacional adotado por todos os países membros da OMS, em 2005, mas que nem os EUA, a China e outras nações aplicam. É preciso reforçar a OMS, não destruí-la. E isso passa por um esforço orçamentário, mas também pela renúncia de uma certa forma de soberania.

O senhor se diz preocupado com elogios à “suposta eficácia da ditadura chinesa” no combate à Covid-19.

Na China, há uma mistura de uma grande competência científica e um aparelho político pesado e coercitivo. Há um medo da hierarquia, daí o atraso na reação.  As ditaduras não são uma boa resposta a uma situação epidêmica. Infelizmente, as pessoas esperam muitas vezes por atitudes autoritárias, por certezas. Quando há uma epidemia de meningite ou de tuberculose, se sabe o que se deve fazer. Mas quando há um novo vírus – e haverá outros -, é preciso esperar até se ter um conhecimento de sua dinâmica de ação e de transmissão, para ser capaz de reagir de forma apropriada. Há forçosamente um período de incertezas e de contradições.

Segundo o senhor, Taiwan é um exemplo de sucesso na luta contra a pandemia, totalmente ignorado pela OMS por pressões de Pequim.

Taiwan foi excluído, inclusive, do status de observador internacional na OMS por razões exclusivamente políticas. E foi um modelo interessante na forma democrática e eficaz com a qual reagiu à epidemia, sendo ignorado pela OMS, em um sinal inaceitável e perigoso de submissão à China. Mas outros Estados fizeram o mesmo, e não necessariamente poderosos. A Etiópia e suas epidemias de cólera, que poderiam representar uma ameaça aos países vizinhos – Quênia, Somália e Sudão -, dissimulou doenças, sob a gestão do diretor-geral atual da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. Na época da ebola, os ministros da Saúde da Guiné e de Sierra Leone também exerceram pressões para que a OMS silenciasse sobre uma epidemia que já estava espalhada. É tudo isso que deve ser revisto em relação à organização, na forma de críticas precisas e severas, para que seja reforçada. Foram os países membros que a perverteram, para que servisse a seus interesses.

Como o senhor vê o Brasil de Bolsonaro no combate à Covid-19?

Vejo como uma continuidade das declarações e da política de Bolsonaro. É terrível, aterrador, angustiante, deprimente que um grande país seja dirigido por um personagem tão assustador. Ele é, de uma certa maneira, um Trump ao quadrado. Mas já era o caso quando fazia suas declarações sobre os índios, os homossexuais ou os incêndios na Floresta Amazônica. Na conheço em detalhes o funcionamento político do Brasil, mas espero que existam contrapoderes para atuarem como resistência ao trabalho de destruição feito por Bolsonaro.

Qual sua posição em relação ao debate da cloroquina?

A cloroquina, por exemplo, se tornou objeto de polêmicas totalmente estéreis.

No início, essas controvérsias faziam parte do trabalho científico, mas, hoje, estão ultrapassadas. A cloroquina não serve para nada, e em alguns pode causar problemas. E isso continua a polemizar de forma intensa por todo lado. Esse caos, essa desordem nas mentalidades que é terrível. Para muitas pessoas, há simplesmente uma crença no fato de que os laboratórios têm interesse em nos vender um produto mais caro, o que é também uma realidade que se constata regularmente. Também não tenho muita confiança nas empresas farmacêuticas. Isso alimenta o ceticismo. Há um medo intenso diante dessa ameaça onipresente e planetária, e o corolário disso é a necessidade de se acreditar em algo. Penso que o sucesso da defesa da cloroquina como o grande meio de lutar contra a Covid-19 vem disso. Hoje, temos dois e meses e meio de centenas de testes clínicos feitos e, para mim, não há nenhuma dúvida: a cloroquina é ineficaz. Mas houve essa panaceia e muitas pessoas – sejam políticos, intelectuais, pseudopesquisadores – desenvolveram inúmeros argumentos para dizer que funcionava, e hoje é difícil que voltem atrás após terem expressado publicamente um entusiasmo desproporcional.

E sobre o debate isolamento versus economia?

É um debate muito mal construído. O confinamento, visto como um remédio coletivo não farmacêutico, tem a ver com a dosagem, como todo medicamento. Entre um remédio e um veneno há uma só diferença, a dosagem. Todo medicamento é um veneno em potencial se for utilizado de maneira excessiva. Apoiei o confinamento no início, porque não havia outra alternativa. Era uma solução de último recurso, lamentável, mas necessária. As lições científicas disso serão tiradas no futuro. E o fim do confinamento também é uma questão de dosagem. Não há oposição a priori entre confinamento e economia. Não me identifico nesse debate. A etapa seguinte da discussão é definir o que entendemos por boa economia. Para mim, há boas e más formas de economia. O ultraliberalismo é, por exemplo, uma forma muito ruim de economia, como o era também a economia soviética dirigista. São modelos econômicos fracassados. Mas a economia em si é muito importante, é preciso que as pessoas continuem a produzir alimentos, serviços, energia, objetos.

O senhor é contra o rastreamento digital dos indivíduos no controle de casos possíveis e confirmados de Covid-19, uma posição adotada também pelo MSF e a Cruz Vermelha. Por quê?

Já somos rastreados eletronicamente por todo lado. Não quero me refugiar nessa espécie de paraíso inexistente de um mundo em que se escaparia da vigilância de Google, Apple ou da NSA (Agência de Segurança Nacional dos EUA). Minha primeira crítica em relação ao rastreamento digital é porque acredito pouco em sua eficácia. É preciso um estado epidêmico relativamente precoce e uma adesão massiva da população ao rastreamento para que funcione. As populações alvo, principalmente idosos, não são facilmente atingíveis porque não utilizam smartphone. 75% dos franceses possuem um smartphone, ou seja, 1/4 não tem, o que já é muito. E apenas uma parcela dos 75% concordaria em ser rastreada. A eficácia é discutível. E partilho as inquietações das organizações de defesa dos direitos humanos em relação a esse instrumento suplementar de vigilância dos indivíduos. Penso que o rastreamento mais eficaz será o humano, com equipes sanitárias que se deslocam para testar e retraçar a cadeia de contatos de casos confirmados. É algo que começa a ser montado, e penso que esse será o caminho.

Segundo o senhor, não é amanhã que sairemos desta crise.

Enquanto não houver vacinas eficazes, o que levará de um ano e meio a dois anos, o vírus continuará a circular, embora não por todo lado e nem na mesma intensidade. Continuará a pressão pela manutenção das medidas de defesa e de distanciamento, o que vai tornar mais difícil a vida econômica e social. As consequências serão duráveis e pesadas na vida cotidiana, nas escolas, nos espaços públicos, nos transportes em comum, nas atividades culturais. Nos próximos dois anos, vamos continuar a viver com esse vírus, exceto se amanhã uma combinação de medicamentos possibilite considerar que se torne uma simples gripe, mas, infelizmente, no momento não há indicadores neste sentido.

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