A REABERTURA NO PÓS-QUARENTENA DO CAFÉ DE FLORE, O CAFÉ DOS ARTISTAS

FERNANDO EICHENBERG / REVISTA ÉPOCA

Como a pandemia afetou um ícone parisiense que não fechou nem mesmo durante a Segunda Guerra Mundial.
 
O gerente Frédéric Minerba e o garçom Tetsuya, um japonês que trabalha há 20 anos no local. ©Fernando Eichenberg

PARIS – “O sábado 14 de março foi um choque para nós no Café de Flore. Fomos prevenidos de última hora que deveríamos fechar as portas à meia-noite. Foi o mesmo para todos os bistrôs e cafés da França. Algo inédito. Estamos abertos todos os dias, das 7h30 à 1h30, durante o ano inteiro, não fechamos nunca. É uma tradição. E só fomos reabrir na semana passada. Durante a quarentena, clientes me enviavam fotos do café e arredores mostrando tudo deserto. Era uma sensação muito estranha.

Tenho 46 anos e trabalho há 13 como gerente do Café de Flore. No início da epidemia, nos dizíamos que era algo que iria passar, mas logo se viu que era sério e que deveríamos ser pacientes. Não sabíamos se iríamos ficar fechados por uma ou duas semanas, um mês. Era a total incerteza. E foi tudo muito rápido. Fomos ajudados pelo Estado, com o pagamento do subsídio desemprego temporário aos funcionários, mas tivemos, obrigatoriamente, uma perda financeira. Esperemos que ocorra uma retomada. Mas, por enquanto, em Paris só temos direito de abrir os terraços, e como nos últimos dias a meteorologia anda ruim, não nos ajuda. O governo fala em permitir a partir do dia 22, ou mesmo antes, a reabertura do serviço no interior, o que seria ótimo para todos. Nós ainda temos um terraço, o que não é o caso de muitos outros estabelecimentos, que são mais penalizados.

Os atuais patrões adquiriram o café em 1987, quase 100 anos após a inauguração, em 1885. É um lugar que tenta manter a alma parisiense da época. Ainda temos artistas, escritores que o frequentam, e também o prêmio anual literário Flore, em novembro. Para turistas franceses e estrangeiros, temos essa imagem do café de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que vinham regularmente, como Albert Camus, Picasso e tantos outros. Ainda hoje os clientes vêm aqui esperando encontrar uma personalidade. Quando Karl Lagerfeld aparecia, a impressão é que o café parava. Patti Smith é uma cliente fiel, e também já vieram ou ainda aparecem Catherine Deneuve, Sophie Marceau, Al Pacino, Mariah Carey. Quando comecei aqui, a ideia era trabalhar por uns dois ou três meses. Mas acabei gostando. Fiquei deslumbrado como um cliente que vem pela primeira vez. Entra-se num décor, como em um filme.

Temos uma base também de cliente frequentes, que todo sábado ou domingo pela manhã sentam à mesma mesa. Alguns nos escreviam SMS ou mesmo ligavam durante a pandemia, e a terça-feira de reabertura, no 2 de junho, foi um dia festivo. Às 7h15 já havia gente querendo tomar um café. Foi um pouco a Liberação de Paris dos cafés. Estávamos contentes por retomar o trabalho, voltar ao convívio com os clientes e dar vida novamente à cidade.

Desde os atentados, sempre houve algo em Paris. Recentemente, tivemos o incêndio da Notre-Dame, as manifestações dos coletes amarelos, as greves contra a reforma das aposentadorias e, agora, caímos na epidemia. É catastrófico. Nós somos mais sólidos e conseguimos nos virar, mas penso que haverá muitos casos de falência na Câmara de Comércio. Será preciso ser solidário.

O ator americano Marlon Brando no Café de Flore, em 1957, onde se encontrou com o escritor e dramaturgo Irwin Shaw. © Simon Michou /Paris Match /Getty Images

Nesta reabertura, a máscara é obrigatória para todos os funcionários do café. E os clientes devem também usá-la se saírem do terraço para utilizar o toalete no interior. Mas alguns não respeitam. Outro dia, começou a chover, as pessoas começaram a entrar sem máscara. Uns dizem que não serve para nada. Haverá sempre quem é contra as regras. Então, que fique em casa. A polícia municipal já passou várias vezes aqui para controlar o distanciamento das mesas.

Temos um total de 53 funcionários, em diferentes turnos. Graças à ajuda do governo, não precisamos demitir nenhum deles. As perdas financeiras foram grandes, mesmo com os auxílios concedidos. Houve vários feriadões durante o confinamento, são períodos de bastante movimento para nós. Mais de dois meses e meio fechados é algo enorme. Após setembro, vamos ver qual será a situação. Se haverá a reabertura das fronteiras, se as pessoas terão o mesmo desejo de sair e também se terão dinheiro. Tudo isso vai influir.

Mas sentimos as pessoas contentes, com vontade de voltar aos cafés, mesmo que ainda um pouco desconfiadas, pois há uma atenção especial quando alguém tosse na rua. E não se sabe por quanto tempo vamos manter os gestos de distanciamento e as máscaras. Virá uma segunda onda da epidemia? Se diz que não, mas devemos permanecer vigilantes, pois um novo confinamento seria algo inimaginável. Devemos fazer o nosso melhor e não gritar vitória antes da hora. Pode ser que guardemos alguns comportamentos deste período. Talvez não nos beijemos e abracemos como antes ao nos cumprimentarmos. Antes era antes, e agora é agora. Uma página será virada. Como se houvesse uma Segunda Guerra Mundial. Foi grave, houve muitas mortes no mundo, não era uma gripe, mas agora devemos olhar para frente e avançar neste período negativo que poderá, de alguma forma, se tornar positivo.

Fiquei confinado todo o tempo com a minha família. Tenho a sorte de viver em uma casa com jardim, a 20 quilômetros de Paris. Aproveitei o cotidiano com meus três filhos – de dois, seis e 11 anos -, e foi, diria, bastante esportivo. Nessa hora nos damos conta de que é um trabalho integral. Para eles, era como se fossem férias, mas sem poder sair de casa. Minha mulher teve o vírus, não sei se fui também contaminado. Tivemos de manter as crianças separadas dela por um tempo. Ela consultou um médico por videoconferência, e depois de dez dias pôde sair do quarto.

Para mim, o confinamento foi a medida correta, o que acabou sendo provado. Não havia escolha. E isso foi visto progressivamente em todos os países. A Itália ficou em dificuldades, e começou a confinar. Na Inglaterra, o primeiro-ministro Boris Johnson era contra, mas depois mudou de atitude. Em cada país que foi feito o confinamento, se viu que funcionava. E para nós deu certo também. Era a solução a ser adotada, com um custo, certamente, mas se tratavam de vidas humanas.

Não se sabe como será a vida quando tudo passar. Em casos assim, muitas pessoas costumam retomar rapidamente a vida como era antes. Se isso ocorrer, será uma pena. Penso que cada país deve refletir. É preciso fazer trabalhar suas empresas. Isso pode implicar custos suplementares, pois se compramos tomates da Espanha é porque existe uma razão. Mas é preciso fazer rodar a economia local. Se alcançarmos isso, já será um grande passo. Aqui no Café de Flore, trabalhamos com muitos produtores dos arredores, a cerca de 50 quilômetros de Paris. São gestos que contam. Penso que este período de confinamento abriu os olhos, e precisamos mantê-los abertos para o futuro”.

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