MICHEL PICCOLI (1925-2020)

Resnais, Demy, Melville, Buñuel, Renoir, Godard, Hitchcock : Michel Piccoli, aqui em 2011, atuou com grandes diretores. AFP/Anne-Christine Poujoulat

Imenso ator, Michel Piccoli nos deixou no dia 12, aos 94 anos, vítima de um acidente cerebral, em uma morte anunciada hoje por seus familiares. Presente em mais de 220 filmes, foi dirigido por renomados diretores e contracenou com grandes atrizes e atores. Tive a chance de entrevistar esse talentoso e generoso ser humano, que nunca deixou se engajar por pequenas e grandes causas, em 2003, um pouco antes de entrar em cena no Théâtre des Bouffes du Nord. Lembro como se fosse ontem conversarmos após o espetáculo, comendo tâmaras secas, e depois pegarmos junto o metrô de volta para nossos respectivos lares, os passageiros mirando sem jeito, incrédulos, se perguntando se era realmente o ator que estava ali no vagão.

Segui aqui o resultado de nosso encontro, publicado no primeiro volume de meu livro de entrevistas, “Entre Aspas 1” (L&PM).

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Seja simples e verdadeira”, aconselhou Anton Tchekhov a Olga Knipper para apaziguar as dubitações artísticas da atriz, também sua amada. As palavras eram pronunciadas pela voz grave do ator Michel Piccoli, que encarnava o escritor e dramaturgo russo na peça Ta Main dans la Mienne, dirigida por Peter Brook. No palco do Théâtre des Bouffes du Nord, em Paris, Michel Piccoli-Tchekhov se impunha com seus silêncios métricos, sua entonação tímbrica e olhares incertos, seu humor de elegante e carinhosa ironia, seus gestos emocionais e suas frases desesperadas e reflexivas. O trinômio Brook-Piccoli-Tchekhov já havia sido reunido antes, na elogiada montagem de O Jardim das Cerejeiras, em 1981. No teatro, outros prestigiados diretores de teatro como Bob Wilson, Luc Bondy, Patrice Chéreau ou Jean Vilar também recorreram ao  singular talento de Piccoli para interpretar personagens de Shakespeare, Bernard-Marie Koltès, Marguerite Duras e Racine.

Fora dos palcos, Michel Piccoli também é um ator de cinema. Ainda um “jovem ator obscuro”, como ele mesmo descreve, enviou uma carta para o diretor espanhol Luis Buñuel convidando-o para assistir ao espetáculo em que estava atuando. “Ele veio e nós nos tornamos amigos”, contou, surpreso com sua própria ousadia. A nova amizade gerou uma cumplicidade nas telas. Piccoli foi ator em seis filmes de Buñuel, entre eles Diário de uma Camareira, A Bela da Tarde e O Discreto Charme da Burguesia. Já Jean-Luc Godard lhe proporcionou um de seus primeiros papéis principais, contracenando com Brigitte Bardot em O Desprezo. Mas Piccoli queria mais. Em cerca de 60 anos de carreira, atuou em mais de 170 filmes, numa média de quase três filmes por ano. Na sua extensa filmografia de ator trabalhou para diretores como Alfred Hitchcock, René Clair, Jean Renoir, René Clement, Claude Sautet, Alains Resnais, Roger Vadim, Costa-Gavras, Michel Deville, Jacques Demy, Marco Ferreri, Agnès Varda, Claude Chabrol, Louis Malle, Lilina Cavani, Ettore Scola, Claude Lelouch  Jacques Rivette, Manoel de Oliveira ou Marco Bellocchio (por  Salto nel Vuoto recebeu o prêmio de melhor intérprete no Festival de Cannes, em 1980). Não satisfeito, o incansável ator decidiu passar para trás das câmeras e dirigir seus próprios filmes, o que lhe abriu caminhos para novas descobertas e um novo prazer.

Entrevistei Michel Piccoli num dos recantos do labiríntico Théâtre des Bouffes du Nord, pouco antes de ele entrar mais uma vez em cena para interpretar, ao lado da atriz Natasha Parry, as cartas escritas pelo melancólico e apaixonado Tchekhov a Olga Knipper. Depois da representação, sentamos numa mesa do café do teatro para degustar tâmaras secas e jogar conversa fora, desta vez, sem a presença do gravador. Tomamos juntos o metrô na fria noite de inverno parisiense e nos despedimos quando ele desceu calmamente na estação próxima a sua casa.

“Seja simples e verdadeira”, recomendara Tchekhov a inquieta Olga. Michel Piccoli parece ter seguido os conselhos do mestre russo. Na definição da cineasta Agnès Varda, Piccoli é “um maravilhoso ator que sabe esconder seu ofício porque possui o dom de ser simples e de falar justo”.

Com Catherine Deneuve, em Belle du Jour (1967), dirigido por Luis Buñuel.

Você diz que só o presente e o futuro lhe interessam. Então, imagino que você não olhe muito para trás.

Nunca. Posso olhar para trás se as pessoas me falam de coisas que aconteceram no passado, isso me interessa muito. Se Le Pen (Jean-Marie Le Pen, líder da Frente Nacional, partido de extrema direita francesa), por exemplo, diz que os campos de concentração nazistas foram apenas “um detalhe da história”. De imediato me recordo da história. Mas, para responder a pergunta, eu me lembro de quase tudo que vivi, mas não gosto de falar, e não me recordo por própria iniciativa.

Você costuma fazer uma analogia entre a profissão de ator e músicos e pintores. Os músicos, como os pintores, não param de trabalhar seus dedos, sua técnica, sua memória. Quando se é ator, no início, não se sabe bem que direção tomar, como se vai fazer. “O ator é seu próprio instrumento e instrumento dos outros.” Você ainda pensa assim?

Os atores só podem trabalhar quando o mestre está presente. E quando eles decoraram o texto – uma mecânica totalmente imbecil decorar. E todos os demais artistas, pintores, músicos, chefes de orquestra, não. Mesmo os cantores, quando despertam pela manhã, se angustiam em decidir o que vão comer, se biscoito ou pão, porque ontem a garganta estava arranhada. Nós, quando nos despertamos, não temos angústia. Os bailarinos não param nunca de trabalhar. Nós trabalhamos muito quando temos a chance de fazê-lo. Mas depois que a peça está pronta? Peter Brook é bastante exigente, nós encenamos na Espanha, na Itália, e continuamos a ensaiar. Mas tenho vontade de chegar aqui num horário que pode parecer preguiçoso para um ator, às 19h45min, ir embora às 23h15 e estar em casa às 23h45mim. Teria trabalhado, contando o transporte, cinco horas. Cinco horas em 24 horas não é muito. Mas quando ensaiamos, trabalhamos quase 20 horas em 24 horas. Um neurocirurgião trabalha isso também.

Por que você diz que gostaria de atuar como pinta Edvard Munch?

É um pouco idiota dizer isso (risos). Mas não, não é idiota. Eu tenho uma espécie de paixão por Munch. Quando se observa de perto uma pintura de Munch é uma desordem incrível. Não sabemos o que vemos. A impressão é que ele pintou com seus dedos. E quando recuamos, não só vemos o que se passa, mas sentimos o que se passa por trás do que vemos. Citei Munch porque jamais poderia pintar como ele. É bom ter exemplos. Gostaria de ter trabalhado com Munch e com Buster Keaton.

Por que Keaton?

Porque é um dos atores mais elegantes que conheço, e que sabe aliar o grotesco, o cômico, o absurdo e o trágico de uma forma tão leve e precisa. É um homem de circo, um clown, um acrobata. Ele sabe fazer tudo. É ator, escritor, inventor de gags, ele é extremamente bonito. Você não é apaixonado por Buster Keaton? Eu confesso que sim. Gostaria de ter sido mulher quando Buster Keaton tinha entre 18 e 57 anos, ou 63 anos. Ele morreu na miséria. Eu o vi no circo, em Pigalle. Eu gostaria de ser Buster Keaton e Munch ao mesmo tempo.

Sobre o cinema de hoje, entrevistei certa vez Jean-Luc Godard…

É um personagem. Foi difícil a entrevista?

No início, ele estava um pouco lacônico, mas depois a conversa fluiu e até nos divertimos.

Podemos nos divertir com ele. Ele tem humor, é muito engraçado. E também insuportável (risos). Ele é alguém difícil, mas tem um humor extraordinário, muito inteligente. Preferiria falar de Godard do que de mim.

Godard diz que o cinema acabou. Pelo menos, uma certa idéia de cinema. Ele acredita que não se pode mais usar a palavra “cinema” e que a maior parte dos filmes que se faz não é vista.

Ele sabe do que fala, pois não se assiste mais a seus filmes (risos). Mas nunca ocorrerá o fim do cinema. Godard diz isso porque sempre pensou que tudo era o fim de tudo. Sempre o fim. Penso que ele é um pouco infeliz de fazer filmes. Ele está numa terrível balança, porque é extremamente célebre, os diretores de cinema americanos – falo dos inteligentes – querem ver Godard, que é um Munch para eles. Mas quase ninguém vê seus filmes. Muitas pessoas ouvem falar dele, se escreve muito sobre Godard, ele é uma referência cinematográfica para todo mundo. Mas ele faz coisas tão pessoais, tão inteligentes, fora da norma do trabalho de mercado. Godard é um pintor, músico, montador, chefe-operador, escritor, tudo. Outros cineastas são invejosos e têm ciúmes dele, porque se fala mais de Godard do que deles. Eu conheço alguém que faz filmes – não vou dizer seu nome, porque não é o que interessa – que, falando de Acossado, dizia que Godard não tinha nenhum talento, enquanto que Belmondo, sim, tinha talento. Você pode imaginar? Isso é o combate artístico, intelectual, político que existe no seio do cinema. É por isso que o cinema não está morto e não morrerá. Mesmo quando Godard morrer, ele, Godard, existirá sempre e seu cinema também. Mas ele tem vontade de dizer que o cinema acabou. Creio que é o contrário, cada vez mais vamos descobrir a vida profunda de pessoas e de países graças ao cinema. Acredito nisso. Aconteceu com países que ignorávamos, por meio de cineastas iranianos, por exemplo. Assisti recentemente a um filme de um cineasta argentino, Luis Ortega, Caja Negra, extraordinário. Talvez Godard não tenha visto o filme. E se o vir, poderá, talvez, detestá-lo. Mas ele é capaz de gostar muito e dizer “eu detesto”. Mas me entendo bem com ele e lamento muito só ter trabalhado duas vezes com Jean-Luc. Lamento bastante.

Cena de O Desprezo (1963), com Brigitte Bardot, dirigido por Jean-Luc Godard

Vocês ainda mantêm contato?

Difícil. Ele está cada vez mais solitário. Cada vez mais observador, solitário, ele se distancia. Mas se o vejo, eu o abraço.

O Desprezo foi um filme importante para você.

Muito importante. Para todo mundo. Para Godard, em primeiro lugar. Para Fritz Lang, para Brigitte Bardot. Mas não para Jack Palance, porque ele não sabia muito bem quem era Godard. E Jean-Luc não gostava nada dele.

Em 1964, Godard declarou: “Eu escolhi Piccoli porque precisava de um ator muito muito bom. Ele tem uma papel difícil e o interpreta muito bem. Ninguém percebe que ele é impressionante, porque ele tem um papel todo feito em detalhes”.

Ele disse isso? Ah, então… Espero que ele diga de novo. Mas é magnífico dizer isso, porque era o que eu queria. Queria fazer muito bem minha profissão de ator, mas que não se visse o corpo, que não se visse a pretensão, o egocentrismo, a competição artístico-financeira. Tento fazer o “número” que deve ser feito por meio desse roteiro, desse texto. Fazer o número daquele que eu interpreto, não o meu, é bem diferente.

Seu encontro provocado com Luis Buñuel foi bastante inusitado. Você escreveu uma carta pedindo que ele fosse assistir ao seu espetáculo. 

Era uma outra época. Ainda escrevíamos naquela época. Receber uma carta era algo ao mesmo tempo normal e um acontecimento. Buñuel era alguém extremamente rigoroso, muito polido, bastante atencioso em relação aos outros. Mas isso, hoje, não poderia ocorrer. Ou, talvez sim, pois receber uma carta hoje é algo tão extraordinário. Gostaria de ter escrito a Robert Bresson. Talvez possa escrever uma carta para Godard. Ou para Luis Ortega.

Você diz que a profissão de ator lhe diverte cada vez mais, mas lhe basta cada vez menos. 

É verdade, a profissão de ator me diverte cada vez mais, porque é preciso trabalhar quando se tem uma profissão, e eu faço tantas coisas, e nunca é a mesma coisa. Encenei Tcheckov com Peter Brook há 21 anos, e agora, 21 anos depois, é outra coisa. A cada vez é algo novo.

Mas com a direção, você diz ter encontrado uma nova profissão que o surpreende…

Aliás, Godard me disse um dia: “Anne-Marie (Anne-Marie Miéville, mulher de Godard) me disse que foi ver seu filme e que não era de todo ruim”. Eu não ousaria lhe dizer “vá assistir ao filme” ou lhe perguntar “o que você pensa do filme?”.

No lançamento de seu segundo filme como diretor, La Plage Noire, você afirmou ver mais interesse em filmar do que em atuar.

Sempre me divertiu mais. Desde o início, mesmo quando era ator no cinema, sempre me interessava muito mais o que se passava por trás da câmera do que o que havia diante da câmera. Porque diante dela, o que eu fazia? Interpretava como no teatro, com a voz um pouco menos forte, e um trabalho de ator de laboratório, muito diferente. Depois da cena feita, me diziam para ir embora e retornar tal hora, tal dia. E sempre me perguntei “mas o que eles fazem nesse tempo todo em que não estou lá?”. E é tudo o que eles fazem durante este tempo todo que faz o filme, para chegar ao que vai se ver na tela. Há um enorme trabalho, e isso tudo sempre me intrigou muito. E toda as profissões do cinema são interessantes. Por exemplo, sempre fui muito próximo dos chefes maquinistas, aqueles que fazem os travellings. Isso é muito importante. É preciso combinar com ele sobre a hora de começar, como caminhar. Eu sempre ensaiar as cenas antes sozinho, sem diretor, e com todos os técnicos em volta.

Então, hoje você prefere ser diretor do que ser ator?

Certamente. Ser diretor quer dizer escrever o roteiro. E quando se consegue, é magnífico. Depois, você é produtor. Saber quanto vai custar, contratar os atores, e depois tem toda a montagem, que é algo extraordinário. Na montagem, você reescreve seu filme. Você é responsável pelo o engajamento das pessoas que trabalham com você. É como um incrível labirinto. Sobretudo para um diretor como eu, que não é nada comercial. Eu lamento um pouco isso, mas também pouco me importo. Tenho a sorte de trabalhar com um produtor (Paulo Branco) muito inteligente, apaixonado pelo cinema, que faz filmes de autor. Ele aceita diretores de primeiro filme. Fiz um primeiro filme que ele gostou muito, mas quase não teve público. O meu segundo foi um enorme sucesso como filme, mas sem público. Vamos ver o terceiro. Mas isso porque tenho a chance de trabalhar com alguém que gosta de trabalhar comigo. Isso é uma sorte.

Com a atriz Juliette Gréco, com quem foi casado de 1966 a 1977.

Por que você não gosta da expressão “cinema de autor”?

Porque se diz que cinema de autor são filmes que “não funcionam”, filmes difíceis, filmes artísticos, que o público não vê. Há uma grande disputa econômica. Se fala de filmes comerciais. É algo de muito concreto, os filmes comerciais embolsam muito dinheiro. Mas muitos filmes ditos de autor, vinte anos depois ainda são lembrados, mesmo que seja por um público restrito. O Mensageiro do Diabo, de Charles Laughton, todo mundo fala, é uma referência. Já os filmes de Arnold Schwarzennegger não serão vistos daqui a vinte anos, exceto se ele consiga ser eleito presidente dos Estados Unidos, ou talvez nem assim, como no caso de Ronald Reagan. Muitos filmes de grande e imediato sucesso depois são esquecidos. Eu sou inconsciente e orgulhoso em relação aos meus filmes.

Se você não se questiona todo tempo, de nada serve seguir uma profissão artística. Isso ainda continua como um de seus lemas?

Para uma profissão artística é algo indispensável, é a base da profissão. Uma das bases. Mas mesmo que  não se tenha uma profissão artística, é preciso sempre se questionar. Para tudo, em todos os domínios. “Por que somos amigos dessa? Por que amamos aquela? Por que queremos transar com essa? Por que não transamos mais com aquela?” (risos).

Como é trabalhar com Peter Brook?

Peter mudou de vida na época em que era o diretor de grandes espetáculos em Londres. Ele se disse “é preciso buscar outra coisa”. Ele se colocou em questão. Ele não queria terminar sua vida como o grande diretor ao qual se iria dar o título de Lord. Porque ele veio à Paris, não sei. Talvez porque seja melhor começar uma outra vida num outro país. Talvez por causa de Gurdjieff (ocultista e filósofo francês de origem russa, 1877-1948), não sei, nunca lhe perguntei. Em todo caso, a verdade é que ele reaprendeu a fazer teatro, de uma outra forma. Diferente de uma forma grandiosa e de clássicos ingleses, não solene ou espetacular. Ele quis entrar no segredo o mais secreto dos autores e atores. E isso num teatro que não é mais um teatro. Este teatro estava em ruínas e ele o deixou assim, mas como um belo local. Este teatro é um pouco o símbolo do que ele quis abandonar. Ele ficou muito feliz de entrar num teatro que não ostentava mais a riqueza do ouro. E ele partiu para a África. Mas não em busca do ouro da África, mas do teatro.

Você tem prazer em atuar, diante do público, mas os ensaios lhe angustiam. Certa vez, durante um ensaio com Patrice Chéreau, você saiu no meio…

Foi ele quem lhe disse isso?

Não, li em algum lugar.

Não é que não goste dos ensaios, mas realmente me angustia, me dá medo. Eu me pergunto onde vamos e penso que nunca vou conseguir chegar lá. Com Peter, certa vez, quase fui embora também. Mas se acaba retornando. Aconteceu com Patrice Chéreau e com outros. Mas não é nada grave. São crises de criança mimada, crises de artistas. (risos)

Com a atriz Romy Schneider, em Les Choses de la Vie (1970), de Claude Sautet.

Hoje é o dia dos mortos (2 de novembro). Muitos de seus personagens refletiram sobre a morte, mas você diz não sofrer de nenhuma angústia em relação a isso. A única perda que o transtornou foi a de seu irmão, a quem você não conheceu (ele morreu pequeno), uma morte “metafisicamente perturbadora”. Você nunca chora pelos fracassos ou os dramas. Como você os supera?

Creio que tenho a faculdade de dormir. É algo bastante animal. Eu me sinto talvez angustiado antes do fracasso ou da morte. Antes que fracasse, que o divórcio exista. E o privilégio está aí. Tenho muitos amigos que morreram e no momento sempre me entristeci muito. Mas vinte e quatro horas depois eu via que continuava a viver muito bem, me divertia. E, entretanto, eram pessoas que me eram indispensáveis para trabalhar e para viver. E elas morreram e continuei a trabalhar e a viver. Isso que me intriga. E não há resposta a isso. Há respostas se somos religiosos, crentes. Dizemos: “Bom, ele esta no Céu, vamos rezar por ele. E como ele está no Céu, ele vai rezar por mim”. Ou então dizemos: “Ele vive ainda em mim e graças a ele vivi os melhores momentos da minha vida”. E falo não somente de uma mulher, posso falar de um homem como Buñuel, Ferrero, Sautet ou Godard e Peter, que não estão mortos. Num momento da peça, Olga diz de Tcheckov: “Você sempre disse que a morte não existe”. Eu não sei. É uma questão sem resposta e muito íntima. Eu penso fugazmente nas pessoas que morreram e que me eram indispensáveis, que eu acreditava indispensáveis. Na minha casa, seria incapaz de colocar fotos da minha mãe, do meu pai ou de meus amigos mortos ou do meu irmão morto. Há pessoas que vivem com os mortos. Não podemos viver com os mortos se eles estão mortos. É uma resposta idiota, mas…

Por outro lado, você defende uma fidelidade constante na vida, uma vigilância permanente, uma busca incessante de compreender, reagir e jamais renunciar.

É preciso sempre tentar compreender e não perder a energia de buscar como se pode continuar a lutar contra os invasores da “vida clara”, que vão dos ditadores ideológicos aos ditadores econômicos, financeiros, que hoje não chamamos mais de ditadores, mas de “decisores”. Na França, as pessoas têm medo do desemprego, da demissão, de suas dívidas. Há tantas pessoas que levam uma vida de medo, um medo corrente, não é um medo da vida ou um medo metafísico, mas concreto. E já fomos tantas vezes traídos há um século. O que era o mundo livre, no tempo da ditadura soviética, se abriu para os “decisores” do mundo. É terrível. Há gangsters no comando de países: Berlusconi, Bush, Putin, e certamente em muitos países muçulmanos, como o rei da Árabia Saudita, os grandes aliados dos EUA. Não compreendemos mais nada. Mas não é por que não compreendemos que não devemos procurar saber o que poderemos fazer e mesmo como poderemos votar. Isso é o mínimo. Eu não sei mais como votar, isso é grave. O mundo se encontra em uma inimaginável explosão e implosão de tudo em que as pessoas acreditaram. Mesmo o liberalismo, o paternalismo, os trabalhadores que podem ter férias pagas e partir. Eles vão à praia, ao restaurante, assistem à tevê e, no dia seguinte, vão dormir. E no dia seguinte fazem a mesma coisa. Eles não vêem nada. Mesmo as férias se tornaram um comércio gigantesco. Nas férias, vivemos como embrutecidos. As pessoas são condenadas pelo comércio. Não é por que você tem o telefone celular que está muito próximo das pessoas. Você não está mais próximo das pessoas porque tem Internet. Às vezes, é mesmo o contrário disso. Você pode viajar pela Patagônia só pela Internet. Tudo é organizado para que você não precise fazer mais nada. É como os filmes pornô, você não precisa mais imaginar. Não podemos imaginar mais nada. E isso ocorre em todas as classes da sociedade, entre os ricos como os pobres.

Você mantém a esperança ou é sobretudo um pessimista em relação ao futuro da humanidade?

Se eu fosse pessimista, já teria abandonado. E não abandonei. Eu também não sou otimista por nada. Nunca entrei num partido político – cada um tem sua maneira de fazer as coisas -, mas eu sinto necessidade de me sentir ativo em alguma coisa. Não posso ficar de braços cruzados.

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