Análise: França ainda não achou saída para questão explosiva do Islã radical

Soldado em frente à basílica de Notre-Dame em Nice nesta quinta-feira, após o atentado.
©Eric Gaillard/Reuters

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – O atentado em Nice se soma a outras recentes ações terroristas ocorridas em solo francês em um contexto de agravamento das tensões em torno da questão muçulmana e do islã radical. O desfecho do processo judicial sobre os ataques de 2015 à redação do jornal satírico Charlie Hebdo, com veredicto previsto em duas semanas, levou à republicação de caricaturas do profeta Maomé, provocando protestos de muçulmanos na França e no exterior. Já o anúncio pelo governo de um projeto para combater com maior rigor o islamismo político acirrou controvérsias em torno da laicidade e da islamofobia. Para analistas ouvidos pelo GLOBO, a França se encontra, hoje, no impasse de um debate de surdosl que impede uma solução consensual para um problema altamente inflamável.

Há um mês, o paquistanês Zaheer Hassan Mahmoud, de 25 anos, feriu duas pessoas com uma machada em frente ao antigo local do jornal, em Paris. No último dia 16, o jovem checheno Abdoullakh Anzorov, 18, decapitou em Conflans-Sainte-Honorine o professor Samuel Paty, que havia mostrado caricaturas de Maomé em uma aula sobre liberdade de expressão. Ontem, um agressor de origem tunisiana matou três pessoas a facadas na Basílica de Notre-Dame, em Nice, em mais um atentado.

Para Marc Hecker, especialista em terrorismo do Instituto Francês de Relações Internacionais (Ifri), o processo de Charlie Hebdo marcou o início de uma nova fase da ameaça terrorista no país que possui a maior população muçulmana da Europa, estimada em quase 6 milhões de habitantes. 

– O contexto é bastante tenso neste momento. Houve a republicação de caricaturas de Maomé, depois os apelos do grupo terrorista al-Qaeda para que se cometessem ataques na França. Isso em um quadro político muito volátil, hoje marcado pela vontade do presidente Emmanuel Macron em lutar de forma mais dura contra o jihadismo, mas também contra o islamismo em um sentido mais amplo – resume.

Momento delicado

Após a morte de Samuel Paty, Macron assegurou que a França não renunciará à liberdade de expressão e às caricaturas do profeta, e determinou o fechamento de uma mesquita e de uma associação muçulmana por cumplicidade com o islamismo radical. Hecker define a situação como bastante “delicada”: após a luta contra o terrorismo ter sido reforçada nos últimos anos em seus aspectos técnicos e legislativos, chegou, hoje, nas questões políticas e de sociedade, atingindo “diferentes sensibilidades”. Segundo ele, o governo avança em uma “estreita linha divisória”, na qual um passo em falso poderá provocar efeitos contraprodutivos.

– Por enquanto, a resposta do Estado tem sido proporcional – avalia. – Há cerca de 2 mil mesquitas na França, e durante o estado de emergência entre 2015 e 2017, 19 delas tiveram as portas cerradas. Desde 2017, com a nova lei contra o terrorismo, foram fechadas mais sete mesquitas. Há grupos que acusam a política francesa de islamofóbica, mas o fato é que essas ações atingiram uma ínfima parte da população muçulmana francesa. Permanecemos em um estado de direito. Precisamos de mais pedagogia, e explicar que a cultura francesa não está contra os muçulmanos – defende.

Os números, no entanto, mostram nos últimos 20 anos um aumento dos estabelecimentos salafistas na França, com crescentes reivindicações comunitárias e identitárias, observa Hecker:  

– Há cada vez mais tensões nestas áreas, e o governo quis agir, elaborando um projeto de lei que chamou de “Separatismos”. É um nome discutível, mas teve o mérito de colocar o debate sobre a mesa – justifica.

Política catastrófica

François Burgat, do Instituto de Pesquisas e Estudos Sobre o Mundo Árabe e Muçulmano (Iremam, na sigla em francês) e autor de “Compreender o Islã Político”, discorda e classifica a política de Macron como “catastrófica”.

– O problema do extremismo em todo o mundo é a disfuncionalidade da representação política. Na França, o mal funcionamento da representação dos muçulmanos é evidente. Em vez de reforçá-la, o país se dedica a deslegitimar e descreditar toda expressão de oposição da comunidade muçulmana. É uma catástrofe estratégica e metodológica. A política atual da França não faz nada para solucionar a fratura, mas sim para envenená-la. A hostilidade que se manifestava em relação a grupos radicais se estendeu brutalmente à quase totalidade da comunidade muçulmana. 

Na sua opinião, a política de Macron visa também sua reeleição ao pleito presidencial de 2022:

– O contexto na França não é o de uma gestão racional das tensões internas da sociedade, mas de uma espiral eleitoreira. A atitude de nossas autoridades não é para acalmar ou solucionar a fratura, e sim para criar capital político. Macron tem consciência de que não poderá ser reeleito sem investir no eleitorado de direita e em parte de extrema direita.

Reflexão nacional

Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), acusa a incapacidade atual de diálogo em uma França na qual o islã é a segunda religião do país, depois do catolicismo.

– Vivemos um impasse: de um lado, parte do mundo muçulmano se sente ofendido com a publicação das caricaturas de Maomé, e de outro, parte da opinião pública na França é bastante intransigente nas questões de laicidade. É uma incomunicação total. 

Segundo ele, o combate ao islamismo político deveria ser acompanhado de uma reflexão nacional sobre o princípio de laicidade:

– Penso que a única saída da França seria olhar como fazem os outros países que aplicam a laicidade de uma forma mais flexível. Mas isso é tabu na França. Se falo isso aqui, serei acusado de cumplicidade com os islamistas. E existe também um filtro importante no acesso à igualdade do nosso modelo republicano, em termos de riqueza e de posição social, nas pessoas originadas de países onde o islã é a religião dominante. Elas enxergam uma França de muita desigualdade social e territorial. Devemos ser capazes de mostrar aos que questionam nossa laicidade que nosso modelo funciona.

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