Boicote a produtos franceses, caricaturas de maomé, insultos turcos, laicidade: em entrevista à tv al-jazeera, macron rebate os ataques do mundo muçulmano e tenta acalmar as tensões

Macron em enytrevista à TV Al-Jazeera, no Palácio do Eliseu. ©Reprodução

FERNANDO EICHENBERG

PARIS – Em meio a uma sequência de atentados terroristas na França, o presidente Emmanuel Macron se viu alvo da hostilidade de parte do mundo muçulmano por causa de sua defesa do direito da publicação de caricaturas de Maomé e de suas palavras e ações contra o islamismo político no país. Manifestantes no Paquistão, Índia, Indonésia, Irã, Bangladesh, Líbia, Mali ou Somália queimaram bandeiras da França, pisotearam o retrato de Macron e apelaram ao boicote de produtos franceses. O Alto Conselho Islâmico da Argélia, uma instituição oficial, acusou o líder francês de promover uma “campanha virulenta contra o profeta Maomé”, e o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, questionou sua “saúde mental”. Para tentar apaziguar as tensões, mas sem deixar de mandar duros recados, Macron concedeu uma entrevista de 55 minutos à TV Al-Jazeera para falar ao mundo muçulmano. Denunciou a manipulação de seus propósitos para criar conflito e definiu como “indigna” a campanha de boicote. A seguir os principais trechos.

Manipulação de palavras

“Nas traduções que foram feitas (de sua frase “Não renunciaremos às caricaturas”) por várias mídias do mundo árabe, que vi nas redes sociais, havia uma mentira. Me fizeram dizer: “Apoio as caricaturas que humilham o profeta”. Nunca disse isso, antes de mais nada porque essas caricaturas – e isso é importante para todos os muçulmanos que nos ouvem – afetam todas as religiões, e além disso todos os líderes. A segunda coisa, é que disse que estava protegendo esse direito porque é o meu papel. Não cabe a mim, como presidente da República, diminuir esse direito porque alguns estão chocados. Neste momento, estabeleceria em meu país uma forma de ordem moral ou religiosa. Diria às pessoas que escrevem ou desenham: “Você não tem o direito de dizer isso porque choca os outros”. E passo a passo, a liberdade de expressão seria reduzida, porque se tornaria o espaço que de certa forma significa que não falamos mais um do outro. E essa é toda a dificuldade do projeto que é nosso coletivamente, e acredito no projeto do Iluminismo, nos valores que carregamos, que não é simplesmente conviver lado a lado, mas aceitar em comentar sobre uns e outros com calma, com respeito, às vezes zombar um do outro, seja qual for nossa religião ou filosofia, mas concordar em fazê-lo em um quadro de respeito e um ambiente tranquilo.

“Quero dissipar mentiras e ambiguidades, e quero dizer a todos os muçulmanos no mundo: há coisas em seus países que não necessariamente agradam a certas religiões ou talvez aos cidadãos do meu país.”

As reações do mundo muçulmano, creio que, antes de tudo, foram devidas a muitas mentiras, ao fato de que as pessoas entenderam que eu era a favor destas caricaturas. (…) Entendo que pode ser chocante, eu respeito isso, mas temos que conversar sobre isso. Devemos construir esse espaço de respeito e de compreensão mútua. Mas acho que a solução não é proibir esse direito, e obviamente a solução é ainda menos justificar alguma violência em nome disso. (…) Quero dissipar mentiras e ambiguidades, e quero dizer a todos os muçulmanos no mundo: há coisas em seus países que não necessariamente agradam a certas religiões ou talvez aos cidadãos do meu país. Eles estão atacando vocês, porque não gostam, porque os choca? Não. Temos que nos conhecer, entender de onde vêm nossas leis, de onde vêm nossos hábitos. Mas não há nada nessas charges, nessa liberdade de expressão, que seja feito contra qualquer religião e, em particular, contra o Islã. E vejo também com uma certa tristeza, que muitos países no mundo abriram mão da liberdade de expressão nas últimas décadas porque houve polêmica, pelo medo, pelo caos precisamente das reações. E assim temos uma forma de redução dessa liberdade de desenhar, de discutir, às vezes de provocar, que acredito ser séria para a liberdade de todos”.

Campanha de boicote à França

“Ela é indigna e eu a condeno. Mas é feita por alguns grupos privados, porque não entenderam e se basearam em mentiras, sobre as caricaturas, e às vezes de outros líderes. Isso é inaceitável. (…) Digo a muitos líderes que na França a imprensa é livre. Em muitos países que pediram um boicote, não existe mais uma imprensa livre, ou seja, não existe mais a possibilidade de caricaturar, e não somente o profeta ou Deus ou Moisés e qualquer outro, mas os próprios líderes do país. Às vezes, se faz caricaturas de líderes estrangeiros, não do país onde se vive, porque quebraram as mãos dos cartunistas, porque às vezes prendem ou matam jornalistas. Este não é o caso da França. E então, quando um jornal na França diz algo, não é a posição do governo. E decidir boicotar um país, um povo, porque um jornal disse algo em nosso país é uma loucura. Ou é apenas transpor o que é válido em alguns países, mas não no nosso e não no mundo livre, porque a palavra de um jornalista não é uma palavra de propaganda”.

Caricaturas de Maomé

“A França, hoje, está em choque com estes ataques, ao mesmo tempo em um sentimento de tristeza, de unidade também e de cólera. E, pela primeira vez, mesmo enquanto estávamos enfrentando esses ataques, houve reações muito fortes, internacionalmente, para atacar a França com base em muitos mal-entendidos.(…) Um dos mal-entendidos das últimas semanas, em todo caso um mal-entendido ou fonte de muita manipulação, é o tema das caricaturas. Não é um tema novo. Lembro que, há pouco mais de 15 anos, foi algo que suscitou terríveis controvérsias também com a Dinamarca, e com o apoio da França naquela época. A história de nosso país é ter construído a coisa pública extraída, de certa forma, da religião. (…) Construímos nossas leis, que são fruto do espírito do Iluminismo, como emanações do povo soberano. E em nossas leis, princípios e direitos existem as liberdades individuais, a liberdade de culto que mencionei, que defendemos e que se exerce em nosso país, mas também a liberdade de consciência e a liberdade de expressão. Isto significa que no nosso país qualquer jornalista pode falar livremente do presidente da República, do governo, da maioria política, bem como da minoria e do resto do mundo. Nessa liberdade de expressão, há também a possibilidade de desenhar, de caricaturar. Este é nosso direito. Vem de longe, do final do século 19.

“Entendo e respeito que se possa ficar chocado com esses desenhos, mas nunca vou aceitar que se possa justificar a violência física por causa desses desenhos, e sempre defenderei em meu país a liberdade de dizer, escrever, pensar, desenhar.”

Esse direito gerou caricaturas nos jornais, e também temos uma história. Essas caricaturas zombavam de líderes políticos, o presidente em primeiro lugar – e tudo bem -, e de muitas religiões, todas as religiões. E quando falamos sobre caricaturas, quero que saibam que muitos veículos de imprensa, como Charlie Hebdo, caricaturaram sobretudo o deus dos cristãos, a religião judaica, os rabinos, etc. E, há vários anos, de fato, caricaturam o profeta Maomé, na verdade caricaturam também a religião muçulmana. Entendo os sentimentos que despertam, os respeito, mas quero que você entenda o meu papel, que é o de acalmar as coisas, como estou fazendo aqui, mas ao mesmo tempo de proteger esses direitos. E há uma diferença importante que todos os muçulmanos que podem ter ficado chocados devem entender. A questão não é se a França e seu representante, o Presidente da República Francesa, fazem seus cartuns ou os apoiam como tais – esta não é a questão, porque esta imprensa é livre, não são jornais oficiais, não é o governo francês que fez essas caricaturas, mas se o Presidente da República na França concorda em suprimir este direito: a resposta é não, porque é um direito do povo francês, e isso afeta a todos. O importante é que tenho que preservar essa liberdade. (…) Entendo e respeito que se possa ficar chocado com esses desenhos, mas nunca vou aceitar que se possa justificar a violência física por causa desses desenhos, e sempre defenderei em meu país a liberdade de dizer, escrever, pensar, desenhar”.

Muçulmanos protestam na Índia contra a França e Macron: “desastre para a humanidade”.
©Francis Mascarenhas/Reuters

Combate ao islamismo radical

“O terrorismo realizado em nome do Islã é uma praga para os muçulmanos em todo o mundo. Segundo as estatísticas oficiais, nos últimos 40 anos, mais de 80% das vítimas deste terrorismo no mundo são muçulmanas. Quando meninas são sequestradas na Nigéria por grupos em nome do Islã, são essas meninas, cujas famílias são muçulmanas, as vítimas. Quando tal ou tal maternidade é bombardeada, quando … poderia citar dezenas de exemplos. Esse terrorismo, nós o combatemos porque nos atinge em nosso solo. E tem uma segunda categoria que decidi combater, e houve mal-entendidos por um problema de tradução. Isso é chamado de islamismo radical na França. O que isso significa? São os extremistas violentos que sequestram a religião e cometem violência dentro do Islã. E traduziram este combate que estava liderando como uma luta contra o Islã. Não, é o oposto. A França é um país onde há vários milhões de nossos cidadãos cuja religião é o Islã. Não vou lutar contra eles. São plenamente cidadãos, querem viver em paz. E temos países amigos em todos os lugares cuja religião majoritária é o Islã. Mas hoje, em nome do Islã e sequestrando essa religião, extremistas violentos estão fazendo o pior. E eles não são terroristas. Mas o que eles estão fazendo? Tiram as crianças da escola, as doutrinam e justificam a violência. Na França, eles atuam em conexão com grupos no exterior. É o que temos nos dedicado a enfrentar há três anos com muita força. (…) O que reafirmei no discurso de Mureaux, no início de outubro, é a minha determinação por um projeto de lei, que tem sido chamado de ‘Separatismos’.

“Quero separar esses extremistas que cometem o pior ou justificam o pior, às vezes em discursos muito sofisticados e perigosos, dos muçulmanos.”

Mas quero eliminar as ambiguidades, é um projeto de lei para combater esses grupos extremistas violentos e indivíduos que agem em nome do Islã. É para proteger todos os homens e mulheres franceses e de forma mais ampla e em particular aqueles cuja religião é o Islã. E o que vamos fazer? Impedi-los de desescolarizarem as crianças da República, vamos impedir qualquer financiamento vinculado a atividades terroristas que lhes permita realizar as suas atividades. Portanto, vamos criar transparência financeira. E iremos, acima de tudo, assegurar, o que para mim é essencial na França, que qualquer pessoa, seja qual for a sua religião, respeite plenamente as leis da República Francesa. Mas quero separar esses extremistas que cometem ou justificam o pior, às vezes em discursos muito sofisticados e perigosos, dos muçulmanos. E em todos os lugares nas últimas semanas no mundo muçulmano, tentaram combinar os dois distorcendo minhas palavras, me fazendo mentir, dizendo que Presidente da República Francesa e, portanto, a França, tem um problema com o Islã”.

Crise com a Turquia

“Muito depende do presidente Erdogan. Acredito em amizade e respeito. Nunca insultei nenhum governante do mundo. Nunca. Respeito o presidente que os turcos elegeram para si próprios, e estou ao lado da Turquia. (…) O que está acontecendo hoje? Observo que a Turquia tem inclinações imperiais na região, e acho que isso não é bom para a estabilidade da região. O que aconteceu na Síria, creio eu, foi uma surpresa e uma agressão para muitos aliados. Os Estados Unidos estavam no terreno, nós estávamos na região por via aérea como parte da coligação internacional. Lutamos contra o Estado Islâmico (EI) na Síria graças às forças democráticas sírias e aos combatentes curdos. Com a guerra sendo vencida contra o Califado, o que a Turquia fez? Invadiu a Síria, sem respeitar nenhuma soberania, para lutar contra aqueles que foram nossos aliados de ontem.

“Hoje, qual nosso desejo? Que as coisas se acalmem, que o presidente turco respeite a França, a União Europeia, os seus valores, não diga mentiras e não profira insultos”

Na Líbia, lamento o não cumprimento dos compromissos da Conferência de Berlim. Em Berlim, todos nós ao redor da mesa dissemos que devemos fazer cumprir o embargo de armas e não permitir que nenhum combatente estrangeiro entre em solo líbio. Mostramos muitas vezes que vários países, incluindo a Turquia, violaram esse embargo. Estes dois exemplos por si só mostram que a Turquia, hoje, se comporta de forma beligerante com os aliados da OTAN. Depois, o que a Turquia fez no Mediterrâneo oriental foi profundamente agressivo em relação a Chipre e à Grécia. São dois países são europeus. Apoiamos a soberania da Europa. Não podemos aceitar a situação, que é a estratégia contemporânea do presidente turco. Por isso, considero que quando somos aliados, quando somos amigos, devemos dizer as coisas com a verdade e onde estão as nossas linhas. Hoje, qual nosso desejo? Que as coisas se acalmem, que o presidente turco respeite a França, a União Europeia, os seus valores, não diga mentiras e não profira insultos. Seria ótimo e acho que é o mínimo. (…) Hoje, não estamos lá. Nas últimas semanas, retrocedemos. E não se trata de uma posição francesa, mas europeia. Ontem (29/10), realizámos um Conselho Europeu em que os 27 membros foram unânimes em apoiar a França. E o presidente Charles Michel apoiou muito claramente a França nos ataques que enfrenta hoje e também lembrou a Turquia de seus deveres”.

Laicidade francesa

“Nunca vi alguém ser condenado à morte em nome da laicidade francesa. Mas gostaria que todos fossem claros, há uma linha vermelha, e qualquer pessoa que sentencie à morte ou justifique um ato violento, para mim, está do outro lado. Se formos claros sobre isso, já teremos feito um enorme progresso durante esta entrevista. (…) A laicidade é a possibilidade de acreditar e de não acreditar, sem consequências para sua cidadania e, portanto, é uma lei da liberdade. Convido a que se faça este exame crítico: como muitos países, que por vezes nos dão lições, tratam alguns dos seus cidadãos quando têm tal ou tal religião? Eles têm os mesmos direitos? Frequentemente, não. Então, é um princípio de separação entre Igreja e Estado, e de que o Estado é neutro e não se preocupa com a religião. Não a financia, não a regula, e os funcionários públicos têm um princípio de neutralidade, não deve haver sinais visíveis de religião.

Laicidade não significa a supressão das religiões. E você vê nas ruas o véu na cabeça, pessoas que podem usar a cruz ou o quipá.

E a nossa escola deve permitir justamente este espaço neutro, e por isso é que não há símbolos religiosos até os 18 anos. Pode haver na universidade. Mas a laicidade não significa a supressão das religiões. E assim, na sociedade, todas as religiões vivem. E você vê nas ruas o véu na cabeça, pessoas que podem usar a cruz ou o quipá. (…) Na França, o princípio de laicidade não tem nenhum problema com o Islã como religião. Um fato é que quando os cultos foram organizados, o Islã estava muito pouco presente na França. Havia poucos cidadãos cuja confissão era o Islã em 1905 (data da lei sobre a laicidade). Com as ondas migratórias dos anos 1960 e 1970, que prosseguiram nas últimas décadas, o Islã cresceu em nosso país. Os números nunca são precisos, porque não fazemos estatísticas religiosas, mas quando olho as análises que são feitas por alguns institutos, elas dizem que entre 4 e 6 milhões de franceses têm como religião o islamismo. Portanto, não temos nenhum problema com esta religião, que é a de vários milhões de nossos cidadãos”.

Reino Unido e multiculturalismo

“Por que as coisas não são em nossa sociedade, por exemplo, como no Reino Unido? Porque não somos uma chamada sociedade multicultural. É verdade que os anglo-saxões, e vários outros países da Europa, se construíram de maneira muito diferente em relação às religiões. O Reino Unido ainda é uma monarquia parlamentar. O monarca tem uma relação com uma religião que foi construída na dor por reviravoltas no século 17 e, portanto, a relação com a religião não é a mesma. Mas as sociedades anglo-saxãs realmente têm um multiculturalismo, o que significa que as religiões coexistem. É um modelo melhor que o nosso? Não vou julgá-lo, mas é diferente. Mas gostaria de dizer duas palavras sobre a beleza do modelo francês, porque acredito profundamente nele. Não acredito em lutar contra esta ou aquela religião, quero que todos os filhos que nasçam ou cheguem em solo do nosso país vivam felizes e em harmonia, mas porque acho que na ambição francesa existe algo único, que é a ideia de que basicamente podemos ter a mesma representação do mundo porque somos cidadãos do mesmo país. E essa é a ideia de dizer: “Você pode exercer sua religião, pode acreditar ou não, mas temos que dialogar, respeitar uns aos outros para compartilhar a mesma representação do mundo, ou seja, nós devemos saber viver juntos no sentido verdadeiro e profundo do termo. Devemos saber nos compreender, aceitar a alteridade do outro e construir uma representação comum de quem somos e do resto do mundo”.

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