TEATRO: Christiane Jatahy EM alta voltagem

Foto: © Leo Aversa

FERNANDO EICHENBERG/ REVISTA PIAUÍ

PARIS – Em 2007, a diretora de teatro Christiane Jatahy foi uma das convidadas do Festival de Viena, um prestigiado evento de artes que acontece todo ano na capital austríaca. A encenadora carioca e sua trupe apresentaram a peça A Falta que Nos Move, que tinha por tema as complicadas relações familiares. O espetáculo começava de maneira inusitada: com a informação de que um dos atores não tinha chegado para a apresentação. A ideia era que a notícia fosse dada ao público do modo o mais realista possível, levando a crer que o elenco estava realmente desfalcado.

Para dar veracidade à situação, quem comunicou a notícia em alemão foi um dos organizadores do festival, Matthias Pees. “Entrei no palco aparentando nervosismo”, ele recorda. “Disse que havia me esforçado tanto para trazer o espetáculo a Viena e que agora eles me aprontavam aquilo: entrar em cena com a equipe incompleta.” Pees também anunciou que funcionários do festival estavam à procura do ator e pediu paciência ao público. Assim que o encontrassem, eles trariam o sumido ao teatro. A peça, então, prosseguiu com os atores restantes – que usavam seus nomes reais – travando conversas aparentemente espontâneas entre si e com o público sobre a ausência do colega e outros temas.

Depois de dez minutos de debates, um espectador se levantou na plateia e gritou irritadíssimo: “Isso é um absurdo, uma vergonha! Só mesmo um ator brasileiro para vir a um festival desses e não aparecer! Vou embora.” O homem era o adido cultural da embaixada brasileira na Áustria. Jatahy estava sentada algumas fileiras acima quando ouviu os gritos na plateia. Ela desceu correndo as escadarias do teatro para explicar tudo ao diplomata, mas não o encontrou. Felizmente, tinha o número do celular dele. Ligou e disse: “Pelo amor de Deus, isso faz parte da peça. Não existe outro ator, são apenas aqueles no palco.” O adido respondeu: “Bem, sendo assim, vou dar outra chance.” Ele voltou ao seu lugar no teatro e assistiu à peça até o fim.

Surpresas desse tipo fazem parte do teatro de Jatahy – e não são gratuitas. Estão relacionadas a um ousado projeto de dramaturgia, desenvolvido por ela ao longo de mais de três décadas  e marcado pela constante experimentação. Para discutir algumas das questões mais urgentes da atualidade, seus espetáculos desafiam as formas dramáticas tradicionais e os hábitos do público, rompendo a fronteira entre ficção e realidade e recorrendo ao cinema a fim de superar as limitações do teatro. Esse misto de inquietação artística e política conquistou a crítica e as instituições teatrais europeias. Tanto assim que, desde 2016, Jatahy passa mais tempo na Europa do que no Brasil e, há três anos, alugou um apartamento em Paris, onde ela é artista associada dos teatros Odéon-Théâtre e Centquatre-Paris, na capital francesa como também do Schauspielhaus, de Zurique, e do Piccolo Teatro, de Milão, além do Arts Emerson, de Boston, nos Estados Unidos. Parte do financiamento para suas criações vem do Ministério da Cultura francês e os recursos são geridos por sua companhia de teatro, a Vértice.

Neste ano, Jatahy se tornou o primeiro nome da dramaturgia brasileira a receber, pelo conjunto de sua obra, o cobiçado Leão de Ouro de Teatro, da Bienal de Veneza. Na apresentação do prêmio, ela foi definida como “uma das figuras mais originais da onda teatral que atravessou o Atlântico e regenerou a cena europeia nas últimas décadas”. Para Gianni Forte, codiretor artístico da Bienal, a arte de Jatahy reside em uma forma singular de combinar introspecção e reflexão política, por meio de uma visão experimental do teatro. “Ela envolve nossa consciência, perturba nossas representações, nos obriga a ver de onde estamos olhando, tanto quanto o que estamos vendo”, diz ele à piauí.

Na cerimônia de entrega do prêmio em Veneza, a diretora fez um discurso em consonância com sua arte política. “Esse prêmio confirma e dá fôlego às minhas escolhas. Escolhas que, algumas vezes, não foram entendidas […], porque sabemos que ainda é mais difícil quando somos mulheres, e latino-americanas, nascidas no Brasil, onde é preciso muita perseverança para continuar. É sempre sobre não desistir: nesse triste momento do Brasil, onde os artistas são criminalizados por serem artistas, essa frase parece ecoar ainda mais profundamente em mim”, afirmou.

Matthias Pees – que organizou o evento em Viena e acaba de assumir a direção do Berliner Festspiele, instituição responsável por festivais e exposições em Berlim – conta que foi fisgado pelo teatro de Jatahy ao assistir A Falta que Nos Move em uma encenação no Parque Lage, no Rio de Janeiro, no início dos anos 2000. “A qualidade do trabalho da Chris vem do fato de ela criar duas dimensões da ficção ao mesmo tempo: a estética, como obra artística, e a que surge de diferentes narrações, com diferentes perspectivas”, diz. “Essa ficção leva você a reconhecer ali a sua própria vida, a criar sua própria percepção, e a cena se torna então uma realidade da qual o espectador faz parte. Não é uma encenação: é a criação de uma realidade.” Pees também ressalta a maestria com que ela utiliza o cinema como parte de sua linguagem nos palcos. Ele cita os britânicos Simon McBurney, Katie Mitchell e o canadense Robert Lepage como exemplos de diretores de teatro que fazem o mesmo, mas ressalta que nenhum deles tem a profundidade alcançada pela artista brasileira. “Toda a pesquisa teatral dela, que se tornou também uma pesquisa cinematográfica, tem como tema a realidade, numa abordagem não apenas estética, mas também social e política.”


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