RIP: BRUNO LATOUR (1947-2022)

Foto: ©Fernando Eichenberg/2013

FERNANDO EICHENBERG

Tive a chance de conversar com o pensador francês Bruno Latour uma vez em Paris, para uma entrevista para o jornal O Globo. Além de suas bem-vindas reflexões sobre o mundo moderno, tenho a vívida lembrança de de sua extrema generosidade e bom humor em nosso encontro, em sua sala no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-po). O incansável intelectual nos deixou neste 9 de outubro de 2022, aos 75 anos, vitimado pelo câncer. A seguir a entrevista publicada no jornal e também no segundo volume de meu livro de entrevistas “Entre Aspas – vol 2” (ed. L&PM).

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PARIS – A modernidade é uma falácia, uma ficção inventada para organizar a vida intelectual. Os chamados “modernos” pregam a separação de Ciência, Política, Natureza e Cultura, numa teoria distante da realidade do mundo e inadaptada aos desafios impostos neste início de século, acusa o pensador francês Bruno Latour, de 66 anos. “Ecologizar” é verbo da vez, sustenta ele, mas num sentido bem mais amplo do que o espaço compreendido pela ecologia  defendida por ativistas e partidos políticos.

“O desenvolvimento da frente de modernização, como se fala de uma frente pioneira na Amazônia, sempre foi, ao contrário, uma extensão de uma quantidade de associações, da marca dos humanos, da intimidade de conexões entre as coisas e as pessoas. A modernidade nunca existiu”, dispara Latour. Na sua opinião, o Brasil, com todas suas contradições, é fundamental na possibilidade de um futuro de inovações que gerem uma novo tipo de “civilização ecológica”, numa nova “inteligência política e científica”.

Antropólogo, sociólogo e filósofo das ciências, Bruno Latour, que recebeu em maio passado o prestigiado prêmio Holberg de Ciências Humanas, é um dos intelectuais franceses contemporâneos mais traduzidos no exterior. Além de suas originais investigações teóricas, também se aventurou no terreno das artes – com as exposições “Iconoclash” e “Making things public” -, e em outubro estreou a peça “Gaïa Global Circus”, uma “tragicomédia climática”, que ele espera um dia poder encenar no Jardim Botânico, no Rio. Professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), lançou ainda este ano o ensaio “Enquête sur les modes d’existence – une anthropologie des Modernes” (Investigação sobre os modos de existência – uma antropologia dos Modernos, ed. La Découverte).

Qual a diferença entre “ecologizar” e “modernizar”, segundo seu pensamento?

Modernizar é o argumento que diz que mais nós separamos as questões de Natureza e de Política melhor será. Ecologizar é dizer “já que, de fato, não separamos tudo isso, já que a história recente dos humanos na Terra foi a intrincação cada vez mais importante das questões de Natureza e de Sociedade, se é isso que fazemos na prática, então que construamos a política que lhe corresponda em vez de fazer de conta que há uma história subterrânea, aquela das associações, e uma história oficial, que é a de emancipação dos limites da Natureza.” Ecologizar é um verbo como modernizar, exceto que se trata da prática e não somente da teoria. Mas pode-se dizer “modernidade reflexiva” ou utilizar outros termos. O importante é que haja uma alternativa a modernizar, que não seja arcaica, reacionária. Que seja progressista, mas de uma outra forma, não modernista. Um problema complicado hoje, sobretudo no Brasil. Mas é complicado por todo o lado, na França também. Qualquer dúvida sobre a modernização, se diz que é preciso estancar a frente pioneira, decrescer, voltar ao passado. Isso é impossível. É preciso inovar, descobrir novas formas, e isso se parece com a modernização. Mas é uma modernização que aceita seu passado. E o passado foi uma intrincação cada vez mais intensa entre os produtos químicos, as florestas, os peixes, etc. Isso é “ecologizar”. É a instituição da prática e não da teoria.

Qual é a situação e o papel do Brasil neste contexto?

Penso que se deve haver uma verdadeira revolução ecológica, não somente no sentido de Natureza, o Brasil é um ator importante. A esperança do mundo repousa muito sobre o Brasil, país com uma enormidade de reservas e de recursos. Se fala muito do movimento da civilização na direção da Ásia, o que não faz muito sentido do ponto de vista ecológico, pois quando se vai nestes países se vê a devastação. Não se pode imaginar uma civilização ecológica vindo da Ásia. No Brasil –  e também na Índia – há um pensamento, não simplesmente a força nua, num país em que os problemas ecológicos são colocados em grande escala. Há um verdadeiro pensamento e uma verdadeira arte, o que é muito importante. Se fosse me aposentar, pensaria no Brasil. Brasil e Índia são os dois países nos quais podemos imaginar verdadeiras inovações de civilização, e não simplesmente fazer desenvolvimento sustentável ou reciclagem de lixo. Podem mostrar ao resto do mundo o que a Europa acreditou por muito tempo poder fazer. A Europa ainda poderá colaborar com seu grão de areia, mas não poderá mais inovar muito em termos de construir um quadro de vida, porque em parte já o fez, com cidades ligadas por autoestradas, com belas paisagens e belos museus. Já está feito. Mas  numa perspectiva de inventar novas modas e novas formas de existência que nada têm a ver com a Economia e a modernização, com a conservação, será preciso muita inteligência política e científica. Não há muitos países que possuem esses recursos. Os Estados Unidos poderiam, mas os perderam há muito tempo, saíram da história quando o presidente George W. Bush disse que o modo de vida dos americanos não era negociável. Brasil e Índia ainda têm essa chance. Mas este é o cenário otimista. O cenário pessimista talvez seja o mais provável.

Qual a hipótese pessimista?

Há os chineses que entram com força no Brasil, por exemplo. Meu amigo Clive Hamilton (pensador australiano) diz que, infelizmente, nada vai acontecer, que se vai fazer uma reengenharia, se vai modernizar numa outra escala e numa outra versão catastrófica. Provavelmente, é o que vai ocorrer, já que não conseguimos nada decidir, e que será preciso ainda assim tomar medidas. Uma hipótese é a de que se vai delegar a Estados ainda mais modernizadores no sentido tradicional e hegemônico a tarefa de reparar a situação por meio de medidas drásticas, sem nada mudar, portanto agravando-a. Mas meu dever é o de ser otimista. Em todo caso, é preciso inventar novas formas para pensar essas questões.

O senhor acompanhou as manifestações de rua no Brasil neste ano que passou?

É uma das razões pelas quais no Brasil é interessante, porque há ao mesmo tempo um dinamismo de invenção política, ligado a outros dinamismos relacionados às ciências, às artes. Há um potencial no Brasil. E há, hoje, uma riqueza. Não são temas que se pode abordar em uma situação de miséria. É preciso algo que se pareça ao bem-estar. Na Índia, se você tem um milhão de pessoas morrendo de fome não pode fazer muito. O Brasil é hoje muito importante para a civilização mundial.

Os partidos ecologistas, na sua opinião, não souberam assimilar estas questões?

Nenhum partido ecologista conseguiu manter uma prática. A ecologia se tornou um domínio, enquanto é uma outra forma de tudo fazer. A ecologia se viu encerrada em um tema, e não é vista como uma outra forma de fazer política. É uma posição bastante difícil. Pois é preciso ao mesmo tempo uma posição revolucionária, pois significa modificar o conjunto dos elementos do sistema de produção. Mas é modificar no nível do detalhe de interconexão de redes técnico-sociais, para as quais não há tradição política. Sabemos o que é imaginar a revolução sem fazê-la, administrar situações estabelecidas melhorando-as, modernizar livrado-se de coisas do passado, mas não sabemos o que é criar um novo sistema de produção inovador, que obriga a tudo mudar, como numa revolução, mas assimilando cada vez mais elementos que estão interconectados. Não há uma tradição política para isso. Não é o socialismo, o liberalismo. E é preciso reconhecer que os partidos verdes, seja na Alemanha, na França, nos EUA não fizeram o trabalho de reflexão intelectual necessária. Como os socialistas, no século 19, refizeram toda a filosofia, seja marxista ou socialista tradicional, libertária, nas relações com a Ciência, na reinvenção da Economia. Há uma espécie de ideia de que a questão ecológica era local, e que se podia servir do que chamamos de filosofia da ecologia, que é uma filosofia da Natureza, muito impregnada do passado, da conservação, o que é completamente inadaptado a uma revolução desta grandeza. Não podemos criticá-los. Eles tentaram, mas não investiram intelectualmente na escala do problema. Não se deram conta do que quer dizer “ecologizar” em vez de “modernizar”. Imagine o pobre do infeliz responsável pelo transporte público de São Paulo ou de Los Angeles.

A França receberá em 2015 a Conferência Internacional sobre o Clima. Como o senhor avalia esses encontros?

Estamos muito mobilizados aqui na Sciences-Po, porque em 2015 ocorrerá em Paris, e trabalhamos bastante sobre o fracasso da conferência de Copenhague, em 2009. Estamos muito ativos, tanto aqui como no Palácio do Eliseu. Na minha interpretação, o sistema de agregação por nação é demasiado convencional para identificar as verdadeiras linhas de clivagens sobre os combates e as oposições. Cada país é atravessado em seu interior por múltiplas facções, e os sistema de negociação pertence à geopolítica tradicional. E também ainda não admitimos de que se tratam de conflitos políticos importantes. A França aceitou a conferência sem perceber realmente do que se tratava, como um tema político maior. Por quê? Porque ainda não estamos habituados a considerar – e aqui outra diferença entre “ecologizar” e “modernizar” – que as questões de meio ambiente e da Natureza são questões de conflito, e não questões que vão nos colocar em acordo. Vocês têm isso no Brasil em relação à floresta amazônica. Não é porque se diz “vamos salvar a floresta amazônica” que todo mundo vai estar de acordo. Há muita discordância. E isso é muito complicado de entender na mentalidade do que é uma negociação.

Poderá haver avanços em 2015?

Uma das hipóteses que faço para 2015 é a de que é preciso acentuar o caráter conflituoso antes de entrar em negociações. Não começar pela repartição das tarefas, mas admitindo que se está em conflito nas questões da Natureza. Os ecologistas têm um pouco a ideia de que no momento em que se fala de Natureza e de fatos científicos as pessoas vão se alinhar. Acha, que se fala-se que o atum está desaparecendo, os pescadores vão começar a parar de matá-los. Sabe-se há muito tempo que é exatamente o contrário, eles vão rapidamente em busca do último atum. A minha hipótese para 2015 é que se deve tornar visíveis estes conflitos. O que coloca vários problemas de teoria política, de ecologia, de representação, de geografia, etc. Talvez 2015 já seja um fracasso como foi 2009.  Mas é interessante tentar, talvez seja nossa última chance. Tenho muitas ideias. Faremos um colóquio no Rio de Janeiro em setembro de 2014, organizado por Eduardo Viveiros de Castro, sobe isso. Depois faremos um outro, em Toulouse, para testar os modelos de negociação. Em 2015 faremos um outro aqui na Sciences-Po. A ideia é encontrar alternativas no debate sobre conflitos de mundo. Não é uma questão das pessoas que são a favor do carvão, os que são contra os “climacéticos”, etc. Não é a mesma conexão, não é a mesma Ciência, não é a mesma confiança na política. São conflitos antropocêntricos. Interessante que as pessoas que assistiram a minha peça de teatro ficaram contentes em ver os conflitos. Na ecologia se faz muita pedagogia, se diz como se deve fazer para salvar a floresta Amazônica. Mas não se fala muito de conflitos.

Um comentário em “RIP: BRUNO LATOUR (1947-2022)”

  1. Interessante conhecer, desse grande pensador, graças a essa oportuna entrevista do Eichenberg, sua esperança no futuro que o Brasil representava, aos seus olhos, em termos de possibilidades de preservação ecológica – chega a dizer que aqui poderia ser um lugar que viveria, aposentado -, quando a realidade que hoje vivenciamos, derruba esses sonhos, da forma mais dramática e violenta possível. Em pouco mais de três anos do governo atual, essa possibilidade desvaneceu-se. Hoje, o que se vê, no Brasil, é o incentivo oficial, sem pudor, à invasão e incêndio das florestas, vistas grossas às doenças e à eliminação de índios, estímulo à proliferação de garimpos ilegais, desestruturação de todos órgãos ambientais regulares, porta escancarada para a introdução de centenas de agrotóxicos proibidos, na Europa e nos Estados Unidos, abandono à própria sorte das populações rurais e eliminação sistemática de muitas de suas lideranças regionais, negacionismo explícito quanto aos dados ambientais oficiais fornecidos pelas mais reputadas instituições do planeta, etc. Sintetizando esse filme de horror, basta evocar os recentes assassinatos, com negativa e preocupante repercussão mundial, do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista brasileiro Bruno Pereira, que aqui bravamente atuavam, lutando pela preservação da vida, dos índios e das florestas. Parafraseando Claude Lévi-Strauss, só nos resta baixar a cabeça e constatar: “Tristes Tropiques”…

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