Sabine Melchior-Bonnet: “Se há tantos divórcios e separações hoje, é porque se acredita no amor e se pensa que é possível ter algo melhor do que se está vivendo”

Historiadora francesa Sabine Melchior-Bonnet destrincha em livro a ruptura amorosa através dos tempos a partir de exemplos célebres. ©Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Separa-se, hoje, da mesma forma que em épocas passadas? Para a historiadora francesa Sabine Melchior-Bonnet, do reputado Collège de France, tudo parecia já ter sido dito sobre o amor, mas não sobre a ruptura amorosa. Foi o que a levou a mergulhar no tema e publicar o ensaio “Os revezes do amor – uma história da ruptura” (ed. PUF), recentemente lançado na França. As separações refletem os códigos culturais, religiosos, sociais e jurídicos de cada período, em uma história inevitavelmente ligada ao patriarcado, pois por séculos o divórcio foi um monopólio masculino: “Cada época constrói seus valores e suas normas afetivas, e fornece sua própria interpretação do amor”, diz a historiadora, em entrevista em seu apartamento parisiense. Para entender as rupturas ao longo da História, Melchior-Bonnet estudou o fim das relações de personagens conhecidos, de Heloísa e Abelardo a Lady Di e o Príncipe Charles, passando por Josefina e Napoleão, Marie d’Agoult e Franz Liszt, Georges Sand e Alfred Musset, Simone de Beauvoir e Nelson Algreen ou Maria Callas e Aristóteles Onassis. E se interroga: hoje, que não há mais empecilhos jurídicos ou sociais para se separar, seria o fim do amor menos trágico?

Como a senhora analisa a ruptura através dos séculos?

Cada época tem uma visão do amor. No século XVII, é a “galanteria”, mais a arte de amar do que propriamente amar. No século XVIII, é a libertinagem. Na França do século XX, é Maio de 68, “gozar sem impedimento”. Quando se tem expressões de amor tão diversas, a ruptura não pode ser a mesma. Passou-se de uma época em que o indivíduo contava pouco, pois pelas leis da Igreja Católica não podia se separar, até hoje, que se pode iniciar uma relação pela Internet. A ruptura mudou com a individualização crescente da sociedade. Por muito tempo, a família era ofendida em sua honra na separação. Depois, não é tanto a honra, mas o sentimento, a intimidade, a autoestima, o narcisismo, e por isso a ruptura se torna cada vez mais dolorosa.

Segundo a senhora, na Idade Média, período patriarcal, desigual e rígido, casava-se em nome da transmissão patrimonial e por questões de glória. O sentimento amoroso era considerado como um « luxo supérfluo”, e a separação era mais uma afronta social do que um sofrimento íntimo…

Na literatura e códigos culturais, na Idade Média não há diferença entre os casamentos profanos e sagrado. São as mesmas regras aplicadas para o amor cristão, de Deus, e o amor do outro. No concreto, o casamento é essencialmente uma transmissão de patrimônio organizado pelas famílias. Antes do século XVII, não se vê separações. Depois, são sobretudo as mulheres da burguesia que solicitam a ruptura, mas sem o direito de se casarem novamente. Elas obtêm, geralmente, a permissão de viver em separado, mas têm problemas econômicos. Seu destino é bem mais difícil do que o dos homens.

E no século XXI?

É como uma sociedade de consumo. Mas penso que a ideia do amor resiste. Se há tantos divórcios e separações hoje, é porque se acredita no amor e se pensa que é possível ter algo melhor do que se está vivendo. Acredito muito no amor, e para que ele exista, deve-se superar constantemente. Penso que isso não está perdido.

A senhora demonstra uma dedicação especial pela marquesa de Courcelles (1650-1685), descrita como “uma das mais audaciosas francesas a se revoltar contra uma ordem feita pelos homens”, que se viu obrigada a se casar por determinação monárquica e acabou como uma libertina processada por adultério.

É uma mulher extraordinária, que me emociona. Ela foi criada em um convento. O rei decidiu com quem ela deveria se casar, como de costume, a opinião dela não valia. É uma personalidade impressionante, todos os homens queriam seu dinheiro. No caso dela, quis mostrar como era um processo de adultério. Era uma técnica masculina para se apoderar da fortuna dessa pobre jovem. Em nove de cada 10 processos de adultério, o marido vencia e podia pegar o dote.

O século XVIII, segundo diz, é a onda sentimental…

Isso está ligado às mulheres que começam a escrever com bastante frequência romances de autoficção, um pouco autobiográficos, e que têm influência nos salões, na vida social e cultural. Jean de La Bruyère diz que as mulheres escrevem melhor do que os homens. Nas correspondências, elas têm uma facilidade quase inata para escrever. Há coisas que compreendem melhor intuitivamente do que os homens. A ideia do amor flexionou. Mas nesta época ainda, mesmo que as mulheres comecem uma relação amorosa, são elas que são abandonadas. Não se encontram mulheres que deixem os homens. E há também razões econômicas para isso.

Como a senhora vê a relação de Marie d’Agoult e Franz Liszt?

A cada vez que começava a escrever sobre um casal, ficava maravilhada, me dizia o quanto se amavam e não conseguia acreditar que iriam se separar no final. Marie d’Agoult teve a coragem de abandonar a aristocracia e uma família rica para seguir um jovem músico que ainda não era o grande Liszt que se conheceria. Ela assumiu riscos enormes. No final, se tratavam por “monsieur” e “madame” e disputavam a guarda dos filhos.

E Georges Sand e Alfred Musset?

É uma mulher que tem iniciativas e que assume um comportamento praticamente moderno para sua época, um pouco na vanguarda. Apesar de tudo, sua história com Musset não dura muito, ele é muito instável. Penso que ele foi muito infeliz após a ruptura, pois não escreveu mais nada.

O século XIX vê o apogeu do casamento burguês, e no século XX emerge o individualismo: o sentimento amoroso se torna a razão do casal. É quando a mulher toma a iniciativa da separação. A senhora cita a frase da filósofa, poeta e psicanalista Lou Andréas-Salomé, em 1901, quando rompeu com o escritor Rainer Maria Rilke: “Tua silhueta se perdeu como um pequeno detalhe na paisagem”.

Lou Andréas-Salomé era excepcional. Mas, perante a lei, as mulheres ainda são juridicamente menores, devem mostrar seu correio ao marido, não têm conta em banco. A separação ocorre ainda em seu detrimento. E é uma ruptura mais dolorosa, porque a autoestima é atingida, se vive por meio do olhar dos outros. No século XIX, o adultério está em todos os romances, com Balzac, Stendhal. Flaubert é o antirromântico com Madame de Bovary. Há a ideia de um valor na infelicidade. Os seres sofrem. Não sei se os homens podem dizê-lo, mas as mulheres, com certeza, sim.

Catherine Pozzi, amante de Paul Valéry, ocupa um lugar especial também em suas pesquisas. Ele escreveu que “deve-se entrar no amor como se entra em religião”.

É uma história comovente. Catherine Pozzi era uma mulher inteira. Paul Valéry amava o mundo, queria entrar para a Academia Francesa. E penso que Valéry deve sua poesia, a qual admiro, a Catherine Pozzi. Foi ela que o inspirou. Ela mesmo escreveu poemas magníficos, e contribuiu muito para a obra dele. E em suas cartas, diz coisas terríveis sobre Valéry e suas promessas não cumpridas. Ele tem uma mulher gentil, três filhos, uma vida instalada. Ela esperava mais dele e decidiu romper. É tocante. O diário de Catherine Pozzi é formidável.

A filósofa Simone Beauvoir tinha uma relação aberta com Jean-Paul Sartre, mas sua grande paixão com o escritor Nelson Algreen não terminou bem. Segundo a senhora, ao rejeitar os limites do casal tradicional, ela quis permanecer livre, dona de seu destino, e recusou o “caos da paixão”.

Simone de Beauvoir abriu o caminho para as mulheres, “O segundo sexo” é um grande livro. Ela fez um pacto de boa fé com Sartre. Creio que descobriu uma paixão forte com Nelson Algreen. E, ao mesmo tempo, o sacrificou. Escolhia sua vida em função das disponibilidades de Sartre em relação às namoradas dele. Algreen ficou extremamente devastado por ela contar a vida privada dos dois em suas memórias e romances. A ruptura para Algreen foi muito dura. E creio que ela se protegeu bastante, não se deixou levar até o fim por seus sentimentos, colocou sempre à frente seu trabalho.

E Maria Callas e Aristóteles Onassis?

Para mim, Callas retorna à noção do grande amor, da paixão. É uma mulher que vive sob o registro do romantismo, da grande paixão romântica. E, ao mesmo tempo, foi muito infeliz. Onassis tinha um caráter odioso. Sua relação com Jackie Kennedy se deu por interesse, para resolver seus problemas com o fisco americano. Era bom para sua imagem se casar com a ex-primeira-dama dos Estados Unidos. Mas penso que nunca cessou de amar o grande talento e figura de Maria Callas. Ele a abandonou, e ela sofreu. Ela se confrontou a muitas pessoas interessadas em seu sucesso. Seu ex-marido a roubou. Eu a admiro muito.

A senhora define Lady Di como uma “mulher moderna” e “filha de sua época”, na qual o amor é um componente crucial da autoestima.

Era uma mulher que, antes de tudo, tinha consciência de ser um indivíduo e que tinha o direito de viver e de amar como todo mundo. Diferentemente da rainha Elizabeth, Diana nunca esteve disposta a nenhum sacrifício pela missão do cargo. Ela queria ser ela mesma. Creio que isso caracteriza toda a jovem geração, esse sentimento de ser único e de guardar sua liberdade. Meghan Markle escolheu a vida com o príncipe Harry em vez de se submeter ao cargo.

A senhora denuncia a desigualdade entre o homem e a mulher ainda hoje.

Em uma recente entrevista em uma rádio, recebi muitas perguntas de ouvintes, homens e mulheres. As mulheres mostravam que esperavam muito de um casal, se sentiam engajadas em uma relação. É estatisticamente provado que as mulheres pedem o divórcio bastante cedo, nos três primeiros anos de casamento, portanto, quando ainda são jovens. A partir dos 50 anos, são os maridos que vão embora, eles refazem mais facilmente suas vidas. Existe o relógio biológico. Os homens podem fundar uma família com 60 anos, as mulheres, não. O feminismo fez muitas coisas para a independência das mulheres, mas a desigualdade persiste hoje em vários setores.

Para a senhora, as gerações do século XXI não parecem mais querer o risco de uma forte paixão, mas aspiram a um amor estável e sincero capaz de lutar contra o vazio de um mundo efêmero…

Mesmo que a mulher tenha uma independência econômica, penso que a ruptura ainda é, hoje, mais dolorosa para ela. Se é julgada também pelo sucesso de sua vida de casal. A separação pode deixar traços violentos. O escritor Marcel Cohen conta sobre maridos nos EUA que, quando querem romper, o fazem no caminho de retorno das férias, dentro do carro, na autoestrada. Estão dirigindo, andam rápido, não se pode discutir. Quando os homens se separam, geralmente já têm uma solução de troca. As mulheres romperiam porque a vida lhes parece pouco satisfatória. Hoje, as rupturas são mais fáceis. A idade média de vida fazia com que durante o Antigo Regime se permanecesse casado cerca de 15 anos. Hoje, se vive até 90 anos, se rompe de outra forma. Mas creio que isso não coloca em causa os fundamentos do amor, pelo menos no Ocidente. Se acredita que há algo de infinito no amor.

Como se rompe hoje?

Uma amiga minha magistrada, que por muito tempo atuou em casos de divórcios, diz que se fez muitos progressos na França para facilitar as separações por consentimento mútuo, para que não ocorram acerto de contas. Mas, hoje, ela diz que é quase o inverso, se vai rápido demais. Conta que viu tantas mulheres aceitarem o consentimento mútuo para acelerar o processo, para não provocar drama nos filhos, mas sem realmente consentir, se deixavam influenciar. Se tornou fácil. Li em um artigo que 10% das uniões se fazem por meio da Internet, mas, geralmente, se tratam de um segundo casamento. Mas por que não? Pode ser uma escolha. Vi casais bem sucedidos que se encontraram via Internet. É talvez uma possibilidade a mais.

É preciso se liberar do amor como grande mito do Ocidente, que estaria naufragando, segundo diz o filósofo François Julien, citado em seu livro. Para ele, este novo século inventa um novo humanismo: a intimidade voluptuosa e cúmplice se torna o abrigo que permite viver a dois.

No amor há uma invariante, que será a mesma de uma época a outra. Todos temos uma visão do amor que é um tipo de superação de si mesmo, mas que permanece como uma perspectiva um pouco idealizada. Mas creio que o amor permanece. Se há tantos divórcios e separações, é porque se acredita no amor e se quer algo melhor. É ainda um valor essencial, embora a vida moderna dificulte sua realização. François Julien mostra bem que para que o amor físico possa se desenvolver e ser feliz tem a ver com o outro, e o outro não pode sempre ser o mesmo. Deixa entender que é preciso uma liberdade, necessária ao casal. É preciso uma intimidade total, que implica uma liberdade. É algo possível.