Olivier Roy: “A Europa não vive, hoje, uma crise religiosa, mas cultural e de identidade”

Olivier Roy, cientista político do Instituto Universitário Europeu, de Florença, afirma que a Europa  não vive uma crise religiosa, mas antes uma crise cultural da qual movimentos fundamentalistas e populistas se apropriam. ©Internaz/Flickr

FERNANDO EICHENBERG/ REVISTA ÉPOCA

PARIS – Apesar das aparências, a Europa não vive, hoje, uma crise religiosa, mas sim cultural e de identidade. Dela, se aproveitam movimentos neofundamentalistas como o salafismo e o evangelismo, mas também os populismos políticos, que em seu embate contra o islã ou a imigração promovem uma “folclorização do cristianismo”, favorecendo, paradoxalmente, a crescente secularização das sociedades. As referências cristãs, base da formação europeia, perderam seu caráter religioso e se tornaram uma mera herança cultural, estranha à doutrina da Igreja. O islã não é o problema, mas sim as indecisas relações dos Estados secularizados com a religião em geral. Estas são algumas das teses defendidas pelo cientista político francês Olivier Roy, do Instituto Universitário Europeu, de Florença, em seu ensaio “L’Europe est-elle chrétienne?” (A Europa é cristã?, ed. Seuil).

Para Roy, a separação moral entre o Estado e Igreja não ocorreu sob as inovadoras ideias do Iluminismo do século XVIII, mas a partir da “revolução antropológica” deflagrada pelas revoltas libertárias de Maio de 68. Segundo ele, a Igreja não tem como, hoje, se opor às novas normas sociais – como a liberdade sexual, o direito ao aborto ou a igualdade entre homens e mulheres -, e se perdeu ao negligenciar o debate sobre valores e a espiritualidade. Na sua opinião, qualquer tentativa da “reconquista religiosa” está fadada ao fracasso, assim como a ideia de que a ascensão populista poderia influenciar uma “recristianização”. Hoje, a religião é percebida como uma ameaça. A fé provoca medo. É preciso que os Estados secularizados reafirmem a liberdade religiosa, como um direito de não se estar de acordo. Tudo isso não será feito por decisões de Estado. Há um problema de reconstrução do elo social, de recriar solidariedades”, diz Roy em entrevista à Época.

O senhor sustenta que a Europa, hoje dominada por uma cultura profana e pagã, não seria mais cristã, e de que o cristianismo não é mais uma religião, mas uma cultura. Por quê?

O cristianismo é uma religião que forjou a cultura europeia. A cultura cristã vai além da religião cristã, porque não supõe a fé. Pode-se ser de cultura cristã sem ser crente. Mas isso supõe que se compartilhe uma certa visão do mundo e concepção da moral. Minha tese é a de que até os anos 1960, a cultura dominante na Europa era cristã secularizada. A concepção da família, do gênero, do sexo, da diferença entre homens e mulheres era partilhada. Por isso que as questões do aborto ou da repressão da homossexualidade não eram conflituosas. Mas a partir dos anos 1960, aparecem novos valores, uma nova antropologia, com a liberdade sexual, a teoria do gênero, o direito dos homossexuais, o direito ao aborto etc. A concepção da família muda. Neste momento, há um divórcio entre o cristianismo como religião e a cultura europeia, profana e mesmo pagã. A Igreja é coerente, para ela a religião é tudo, uma fé, uma identidade, uma cultura. Mas para aqueles que não pertencem à Igreja, ou se rejeita o cristianismo ou se trata-o como identidade. Ou seja, como um marco que não supõe a adesão a valores, um indicador de uma coletividade histórica, mas sem nenhuma referência à fé ou à moral cristã. Hoje, os populistas são, em sua maioria, identitários e não cristãos. É possível ter populistas cristãos, como na Polônia. Mas se olharmos para o resto da Europa, se percebe que os populistas partilham os novos valores pagãos, sobre a liberdade sexual ou a família, por exemplo. Quando eles falam de cristianismo, não se referem a valores cristãos, mas a uma identidade cristã que não corresponde a uma verdadeira cultura cristã. É apenas um marco para fazer a diferença com o outro, que é, evidentemente, o muçulmano e o imigrante.

O senhor diz que a verdadeira separação entre o Estado e a Igreja, na Europa, não teria se dado sob o Iluminismo, mas a partir das revoltas de Maio de 68.

A separação moral se vez, efetivamente, nos anos 1960. E não se trata de um questão de direita ou esquerda. Na França, é a direita de Valéry Giscard d’Estaing que implantou novos valores no Código Civil, a liberdade sexual o direito de abortar, a igualdade entre homens e mulheres. O fim da família patriarcal tradicional se dá na França dos anos 1970, promovida pela direita. Em nenhum país europeu a direita questionou o casamento homossexual quando foi defendido pela esquerda, como na Espanha, por exemplo. Os Estados europeus estão, hoje, em uma cultura pagã assumida, mesmo que sejam conservadores e de direita.

O problema do islã é, na sua opinião, a “árvore que esconde a floresta”. Qual é a floresta?

A floresta é a religião em geral. Não é a oposição entre cristianismo, islã ou judaísmo. Somos sociedades cada vez mais secularizadas. No século XVII, quando havia conflito entre laicos e religiosos, eles partilhavam a mesma moral. E os laicos tinham um conhecimento do religioso e da teologia. Havia o catecismo na escola, muitos laicos eram antigos católicos e partilhavam este saber profano da religião. Hoje, isso não ocorre mais. Se está em busca de espiritualidade individual, da felicidade, da descoberta de si mesmo, da plenitude. Não se está mais nas religiões. O yoga substituiu a missa. Não se está mais no coletivo e na comunidade religiosa. Isso faz com que nossas sociedades não compreendam mais o religioso e o vejam como uma ameaça.

Para o senhor, a ideia de que se não houvesse o islã e a imigração os problemas desapareceriam é uma ilusão.

Basta escutar os católicos, a Igreja, e os evangélicos protestantes. Eles dizem que a sociedade é pagã, não falam que se tornou muçulmana. Há hoje, tanto no catolicismo como no protestantismo, movimentos neofundamentalistas que portam a religião. São movimentos de reconquista, missionários, e vocês têm isso no Brasil com os evangélicos. Eles consideram que o cristianismo não está mais na sociedade e que é preciso pregar a religião como se fazia outrora na África ou na China.

O senhor diz que os populistas estão muitos distantes dos valores cristão, e promovem uma “folclorização” da religião. Como é isso?

Na Europa, sim, porque eles não são praticantes. Eles folclorizam a religião. No Brasil ou nos Estados Unidos, muitos populistas são cristãos, creem em Deus, rezam. Na Europa, não. Ninguém vê Matteo Salvini (líder populista italiano) na igreja. Ele vem de um partido neopagão, a Liga do Norte. Beija o crucifixo, mas faz de conta que reza para as câmeras de TV. Essa é a conclusão do meu livro: o populismo que pretende defender o cristianismo é um elemento de secularização do cristianismo. O populismo é a continuidade da onda de secularização de nossas sociedades, não uma reação.

A facção da Igreja que apoia os populistas, esperando que apliquem leis que possam trazer de volta a religião e suas normas, faz uma cálculo estratégico equivocado, segundo o senhor.

É um cálculo ruim, porque eles trarão de volta, talvez, a norma na lei, mas não levarão as pessoas novamente para as igrejas. Esta defasagem entre a norma cristã e a cultura dominante vai se acentuar.

Para o senhor, a queda de frequência constatada nas igrejas evangélicas americanas é provocada por uma “hiperpolitização”.

Os evangélicos constituem 25% do eleitorado americano, nada a ver com o que se passa na Europa. Mas creio que a politização está matando o espírito. Parece que os jovens americanos são cada vez menos interessados por estas formas militantes de religião. Haveria um começo de desinteresse, como se vê na Polônia, onde diminui o número de jovens inscritos em seminários para se tornarem padres. E se vê isso nos EUA de Donald Trump. Os evangélicos se dizem que não elegeram um cristão, mas o homem que Deus enviou para trazer de volta a norma na Constituição. É uma confissão de fraqueza. Eles escolheram como combatente alguém que não tem a fé, ou, pelo menos, não se vê que a possui. É sempre a contradição entre a norma e o valor.

O senhor assinala também uma diminuição da prática religiosa em países muçulmanos…

Isso é menos visível. Mas na Tunísia, há um movimento social laico bastante ativo. Há pessoas que se dizem ateias. No Marrocos, há um movimento de jovens que rompem publicamente seu ramadã. Na Argélia, no movimento Hirak, de manifestações pela democracia, não há uma só referência religiosa. Há dez anos, a religião estava no centro dos movimentos políticos, e hoje isso desapareceu. Se no Egito o marechal Abdel Fatah Al-Sisi fez uma lei para criminalizar o ateísmo, é porque o ateísmo tem sua importância. E se vê também na Arábia Saudita o próprio governo limitando obrigações de práticas religiosas, porque as pessoas já estavam fartas. Penso que há uma secularização crescente também no mundo muçulmano.

Vive-se hoje, na Europa, mais uma crise cultural do que religiosa, segundo o senhor, e na qual surfam o salafismo e o evangelismo.

Esses movimentos neofundamentalistas desconfiam da cultura, não apreciam o cinema, os romances, a poesia, a música. Oferecem às pessoas uma maneira de viver a religião fora da cultura. Isso contribui para acentuar o divórcio entre cultura e religião.

Não há um retorno, mas um reformatação do religioso, diz o senhor, e uma incapacidade dos Estados seculares a conceberem uma relação com a religião. Como vê as recentes medidas do presidente francês, Emmanuel Macron, contra o “separatismo islâmico” no país?

O problema é que todo mundo, hoje, coloca sob o nome de islamismo fenômenos que são muito diferentes. Não há uma estratégia do salafismo. É uma religião neofundamentalista, como os evangélicos americanos, que tem por objetivo a salvação – querem ir ao Paraíso – e que estão na normatividade, querem leis proibindo ou tornando obrigatório isso e aquilo. A Irmandade Muçulmana é muito diferente. Eles não estão na norma, mas tentam construir na Europa uma minoria muçulmana, que seria reconhecida, com seus direitos e deveres, e neste sentido têm uma iniciativa política. Eles querem que a República reconheça os direitos da minoria, mas não a contestam.

O senhor alerta que essa “inflação de normas”, em meio a uma ausência de debate sobre os valores, pode ameaçar a existência das sociedades liberais e construir uma Europa sem alma.

No compromisso liberal, o contrato social consiste em concordar sobre um mínimo de regras de vida em sociedade, e cada um guarda suas ideias religiosas. Hoje, nos explicam que devemos todos partilhar os mesmos valores: os valores laicos e da República. Mas qual é o conteúdo destes valores? Não se sabe. Se dissermos que os valores da República são a igualdade entre homem e mulher, muito bem, mas o que se faz com a Igreja Católica? Obriga-se a Igreja a entronizar padres mulheres? A liberdade religiosa, que é fundamental em nosso sistema, supõe que há grupos que não possuem os mesmos valores. Exige-se a todos os mesmo valores, não se está mais na liberdade religiosa. E como não se pode fazer isso, se impõem normas. Este é o problema. O problema é que este jogo de normas funciona nos dois sentidos. Os laicos impõem normas aos religiosos, e os religiosos querem obrigar os laicos a aceitarem normas, como a interdição do aborto. E neste pequeno jogo se destrói as bases de uma sociedade e todo o debate sobre os valores.

O papa Francisco, na sua opinião, procura alterar as regras do jogo ao reafirmar a “reconquista espiritual”. Como?

O papa Francisco é muito claro, diz reconquista a partir de valores e não de normas. Contrariamente a Bento XVI, que falava de princípios não negociáveis. A cada vez que ele encontrava um chefe de Estado europeu, era para defender que o direito à vida não era negociável, nem o casamento tradicional ou a procriação assistida. Francisco, que é igualmente ortodoxo – não é um liberal no plano da teologia -, fala de amor, de valores. É um pregador, não um legislador.

As duas grandes tendências atuais na Europa são, na sua análise, a exclusão do religioso do espaço público pela evolução do secularismo para uma laicidade ideológica, e a “folclorização do cristianismo” sob o nome de “identidade cristã”. Como sair deste impasse?

Penso que os diferentes atores devem cessar de se referir unicamente à norma, e recolocar a questão dos valores. Há uma responsabilidade das comunidades religiosas, que há 50 anos se sustentam na norma. E é preciso que a laicidade aceite fundamentalmente a liberdade religiosa. O problema é que, hoje, a religião é percebida como uma ameaça. A fé provoca medo. É preciso que os Estados secularizados reafirmem a liberdade religiosa, como um direito de não se estar de acordo. Tudo isso não será feito por decisões de Estado. Há um problema de reconstrução do elo social, de recriar solidariedades. Na Itália, há comunidades religiosas como Santo Egidio, Comunhão e Liberação, que são muito ativas na base da sociedade. Na França, as comunidades religiosas só se preocupam com elas mesmas.

A Europa tem condições de insuflar este espírito?

Não estou seguro. Creio que é um desafio para Europa, que está em crise de identidade. O Estados-nação estão em crise, a União Europeia é uma construção burocrática. Há um problema de imaginário, e também espiritual. Ninguém quer morrer pela bandeira de Bruxelas. Trata-se da reconstrução de um imaginário europeu, e mesmo de uma literatura europeia. A Europa começou com uma ideia espiritual e terminou em burocracia. Isso não faz as pessoas sonharem. É interessante que este debate sobre a relação entre a cultura e a religião é paralelo a uma discussão sobre o humanismo. É algo profundamente relacionado. Todo humanismo é ligado à questão da cultura. Hoje, temos uma cultura em crise, e, automaticamente, é a definição mesmo do humano que está em crise. Por isso que vemos aparecer, nos dias de hoje, perspectivas apocalípticas.