FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Na vez em que foi orar na prestigiosa Grande Mesquita de Paris, Kahina Bahldoul se viu relegada a uma desconfortável sala no subsolo, adjacente ao banheiro masculino, onde mal se ouvia o imã que pregava exclusivamente para os homens no recinto principal, um andar acima, ao qual o acesso das mulheres era proibido.
— Mas vivi uma experiência ainda pior — conta ela. — Fomos em um grupo, homens e mulheres, a uma mesquita nos arredores de Paris. Ao chegarmos, disseram para nós, mulheres: “Atravessem a rua e encontrarão uma garagem, lá é o lugar de vocês”. Ainda por cima, era uma data de festa religiosa. Na garagem, era péssima a transmissão do sermão pelo alto-falante. Foi algo extremamente desagradável, me senti insultada. A partir daquele dia, decidi não frequentar mais mesquitas e passei a fazer minhas orações em casa.Kahina Bahloul diz que a separação de homens e mulheres não tem sentido: “É um tipo de esquizofrenia. Hoje todos os dias homens e mulheres estão juntos no trabalho, na escola, na universidade” .
Fundadora e presidente da associação Fale-me do Islã e também doutoranda em Islamologia na Escola Prática de Altos Estudos (EPHE, na sigla em francês), Kahina, 39 anos, não se resignou às rezas caseiras e resolveu combater os ditames sexistas do Islã tradicional. Recentemente, anunciou o projeto de criação de uma mesquita mista na capital francesa, batizada Fátima, com homens e mulheres presentes na mesma sala e sermões feitos alternadamente por imãs dos dois gêneros. Se a iniciativa — de estatuto redigido, mas ainda em busca de financiamento e de um local — se concretizar, será a primeira mesquita do tipo na França, país que registra o maior número de muçulmanos na Europa (cerca de 5,7 milhões, segundo o Centro de Pesquisas Pew).
— Penso que essa separação, hoje, não tem mais sentido. É um tipo de esquizofrenia. Estamos no século XXI, todos os dias homens e mulheres estão juntos no trabalho, na escola, na universidade, por todo lado, e quando se trata da mesquita e da religião, a impressão é que se deve fazer marcha a ré. E ainda assim, no século VII, mulheres e homens estavam juntos na mesquita do profeta. Exceto que os homens ficavam à frente das mulheres.
Islã na história
Em seu projeto de mesquita, idealizado em conjunto com Faker Korchane, professor de Filosofia e fundador da Associação pelo Renascimento do Islã Mutazilita (ARIM), mulheres sem véu serão admitidas e os fiéis dos sexos masculino e feminino formarão dois grupos, dispostos lado a lado. A ideia inicial era misturar completamente a audiência, mas, em consultas realizadas, houve muitos relatos do incômodo em ter alguém do sexo oposto muito próximo em ato de prosternação religiosa.
— Apenas para evitar esse embaraço, decidimos que homens e mulheres estarão em lados opostos, mas todos na mesma linha, simbolicamente para dizer que somos iguais — explica Kahina. — Chegou a hora de as mulheres reocuparem os locais de espiritualidade. Se vê isso nos recentes protestos na Índia (contra a interdição de mulheres em idade de menstruar no templo de Sabarimala) ou na existência de mulheres imãs nos Estados Unidos, na Dinamarca, na Itália, na Inglaterra ou na Alemanha.
Seus argumentos não recorrem apenas ao feminismo contemporâneo, também opõem a historicidade do Islã à propagação atual das teologias fundamentalistas. Kahina critica a predominância dos ensinamentos e práticas de um Islã ultraconservador, e lembra que nem sempre foi assim.
— Os movimentos fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana, sejam wahabitas ou salafistas, tiveram os meios financeiros para promover e difundir sua ideologia de forma ampla. A escola de teologia mais conhecida no Magreb é maliquita, que tem as proposições mais duras, e com forte influência na França. Mas no século XII, Ibn Arabi, grande pensador da teosofia mística muçulmana, não via nenhuma restrição a mulheres imãs. E outros como ele pensavam assim.
O anúncio do projeto da mesquita Fátima recebeu adesões, mas também, como poderia se esperar, ofensas e ataques via redes sociais. Em Berlim, a alemã Seyran Ates, cofundadora da mesquita aberta a mulheres e membros da comunidade LGBT inaugurada em 2017, chegou a ter proteção policial após ter sido ameaçada de morte. Kahina afirma ter recebido comentários “duros e virulentos”, mas assegura não ter medo. Se disse surpresa, no entanto, com reações femininas:
— Há também mulheres que recusam isso. É extraordinário, mas existe. É uma mentalidade misógina e patriarcal profundamente enraizada e muito ligada à ignorância. Essas pessoas atuam como papagaios, repetem o discurso salafista, não vão ler nos livros outras opiniões e discursos. Não estou inventando nada de extraordinário, do ponto de vista teológico não faço nada de mal, tento apenas fazer com que se redescubra coisas que estão na própria religião — defende.
Luta pelo poder
Kahina e Faker não estão sozinhos em seu embate na França. Anne-Sophie Monsinay e Eva Janadin, fundadoras da associação Voz de um Islã Esclarecido (VIE) — movimento por um islã espiritual e progressista — também anunciaram um projeto de criação de um lugar de culto muçulmano “inclusivo”. “A rede de mesquitas francesas está dominada por um conservadorismo religioso que se deixa envenenar por lutas de poder entre diferentes facções nacionais estrangeiras, por interesses financeiros desmesurados e pela influência do extremismo religioso. É urgente, hoje, construir novos locais de culto para responder às necessidades de muçulmanas e muçulmanos ‘órfãos de mesquita’ que se sentem sós em sua prática do islã”, escrevem em sua justificativa do projeto.
Em sua mesquita, denominada Simorg, a vestimenta será livre, os sermões serão pronunciados em francês e também haverá alternância de imãs masculinos e femininos. Mas, diferentemente do projeto Fátima, os fiéis homens e mulheres estarão totalmente misturados na sala de sermão, sem a separação esquerda-direita. “Muitos muçulmanos e muçulmanas estão prontos a essa mistura e não suportam mais que se considere as mulheres como seres inferiores limitados a suas partes genitais”, sustentam Anne-Sophie e Eva.
Kahina se impôs como missão oferecer uma narrativa e uma prática religiosa alternativas às correntes conservadoras do Islã:
— É tentar abrir o debate para que as pessoas possam ter consciência de que não existe apenas o discurso que estão habituadas a ouvir. É preciso acabar com a ignorância e mostrar às novas gerações que há uma outra forma de viver o islã — desabafa.