Euro celebra seus 20 anos neste 1° de janeiro em uma Europa sem liderança e abalada por incertezas políticas e econômicas

Manifestação dos “coletes amarelosé na França: “Sua Europa nos arruína”. © Simon Guillemin/Hans Lucas/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Lançado em clima de euforia em 1999, o euro celebra seus 20 anos neste 1° de janeiro em uma Europa claudicante, sem liderança e abalada por incertezas políticas e econômicas. A inédita insurreição dos coletes amarelos na França revelou a crescente desconfiança em relação às instituições e a fragilidade do contrato social vigente em democracias europeias, em mais uma manifestação de mal-estar num continente já sacudido pela escalada dos nacionalismos, as incógnitas do Brexit e a desaceleração econômica. Tanto o governo populista italiano como o europeanista francês desafiam, hoje, as rígidas regras orçamentárias da zona euro para satisfazer seus programas políticos e as demandas domésticas reclamadas pelas ruas. Na opinião de especialistas, a moeda única completa duas décadas com um balanço contraditório em meio à desordem social e política.

O economista Philippe Martin, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), acredita que a Europa se encontra, hoje, mais exposta do que estava na época da crise financeira mundial de 2008-2009.

– Somos mais vulneráveis porque nossa dívida pública é bem mais elevada, os partidos populistas são mais importantes e o contexto social é bem mais complicado. Estamos menos protegidos, inclusive, a um choque de menor intensidade, esse é o perigo. O euro não funciona perfeitamente, mas penso que deve ser melhorado e não abandonado.

Martin define as inquietudes dos coletes amarelos como legítimas, mas nota “aspecto populistas” nesta crise que ultrapassa as fronteiras da França, com consequências europeias:

– Dizer que se vai baixar os impostos, aumentar as despesas públicas e reduzir a dívida, chega uma hora não é mais coerente. É preciso um maior equilíbrio das políticas social e fiscal, mas isso deveria ter sido feito antes, não sob a pressão das ruas. Fazer agora, na precipitação, não é algo simples. A questão econômica e social é central, mas vai além disso, atinge a representatividade política, o funcionamento das instituições.

Para conter os violentos protestos dos coletes amarelos e aumentar o poder de compra das populações desfavorecidas, o presidente francês, Emmanuel Macron, requisitou € 10,3 bilhões dos cofres públicos e reduziu temporariamente a receita tributária. Por conta disso, em 2019 o país deverá registrar o pior desempenho em termos de déficit público entre os 19 países da zona euro, com uma previsão de 3,2% do Produto Interno Bruto (PIB), acima dos 2,8% anteriormente estimados e do limite de 3% estabelecido pelos critérios europeus. Macron “perdeu em autoridade”, declarou na semana passada o comissário europeu de Orçamento, o alemão Günther Oettinger, sem, no entanto, acenar com sanções.

Já a Itália, depois de uma acirrada queda de braço de várias semanas com a Comissão Europeia, finalmente concluiu, no último dia 19, um acordo em torno de seu programa de orçamento, com previsão de déficit de 2,04% e a promessa de adoção de medidas que evitem o aumento de sua dívida pública, hoje em cerca de 130% do PIB. O vice-premier italiano e líder da extrema-direita, Matteo Salvini, acusou Bruxelas de usar dois pesos e duas medidas em relação aos problemas de Roma e Paris.

Para Daniel Cohen, da Paris School of Economics (PSE), a situação é de “extraordinária confusão”:

– Não se sabe se a União Europeia (UE) está explodindo ou atravessando um período de estagnação, como outros que já teve em sua história. Há um mês, diria que os italianos estavam prestes a sair da Europa. Criaram todas as condições para isso, mas acabaram recuando. Já para Macron, a situação da França significa a perda de seu leadership natural europeu. É um dos poucos políticos que fez da UE sua bandeira, e o fato de ter sido privado de suas pretensões a essa liderança não é uma boa notícia nestes tempos de necessária reconstrução europeia.

O analista Yves Bertoncini, presidente do Movimento Europeu-França, credita uma parte de commedia dell’arte às provocações de Matteo Salvini:

– O psicodrama existia, mas não foi contido por pressão de Bruxelas, e sim porque tudo isso ocorre sob a vigilância dos mercados financeiros, que passaram a fazer a Itália pagar mais caro por sua dívida pública. Mas é verdade que, hoje, seria delicado pressionar ainda mais o governo italiano, uma vez que a França se colocou nesta situação embaraçosa de deixar escapar seu déficit. A zona euro tem muitos defeitos, provoca insatisfações: para certos países, é muita austeridade e rigor orçamentário e, para outros, excessiva solidariedade e tolerância. No entanto, festeja seus 20 anos com a adesão de 19 países. Mas trata-se de um casamento de interesses, não de amor.

Para Bertoncini, as disfunções no seio da UE vão além das disputas entre seus integrantes ou com as instituições de Bruxelas. São reflexos também de governos minoritários emergidos da erosão eleitoral dos partidos políticos tradicionais e pressionados pelas revoltas dos cidadãos.

– É verdade que países do Norte ou da Europa Central se portam de maneira satisfatória economicamente, mas poucos vão bem politicamente. Vê-se muitas instabilidades políticas e contestações, como na Alemanha e na França. O governo espanhol (do socialista Pedro Sanchez) é frágil. A Bélgica acaba de perder seu primeiro-ministro (o premier Charles Michel apresentou sua renúncia no último dia 21). Mesmo na Itália, o poder é singular (a coalizão dos ultraconservadores da Liga Norte, de Salvini, com os antissistemas do Movimento 5 Estrelas, de Luigi Di Maio). É difícil fazer funcionar a UE se os Estados membros são fracos politicamente e também economicamente.

As eleições europeias, em maio, vão animar os debates políticos nacionais. Embora sem condições de obter a maioria no Parlamento Europeu, as forças populistas podem, segundo pesquisas de opinião, alcançar vitórias políticas e ser capazes de influenciar os programas de partidos de governo.

– O Partido Popular Europeu (PPE, bloco das legendas conservadoras) se arranjou para manter sob sua sigla o partido do premier húngaro Viktor Órban (o ultranacionalista Fidesz), ao preço de uma certa hipocrisia – diz Daniel Cohen. – Não haverá uma lista populista, exceto a que será constituída na França pela Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen (França), e pela Liga italiana de Salvini. Sondagens indicam que se os coletes amarelos decidirem disputar o pleito, sua formação política obteria votos da extrema-direita e da esquerda radical na França, numa generalização do modelo italiano. Esse é o próximo movimento a ser acompanhado na Europa.

Em seu relatório de novembro, a Comissão Europeia revisou para baixo as previsões de crescimento da maioria das economias da UE em 2019. François Bourguignon, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, na sigla em francês) ressalta que não é apenas a Europa, mas o mundo que reavalia negativamente seus índices de PIB. As economias foram desaceleradas, segundo ele, em parte pela política americana e sua constante ameaça de guerra comercial com a China, e nesse contexto a Europa também está sujeita a inquietudes e fragilidades.

– Estamos numa situação particular. Não se sabe qual será o resultado final do Brexit. Não se sabe como ocorrerá a mudança de governo na maior economia do continente, a Alemanha (a chanceler Angela Merkel deixará o cargo em 2021). Há os acontecimentos na Itália, na França. Isso tudo não estimula um grande otimismo. Mas o que me torna mais pessimista é a ampla revolução tecnológica que está por vir, e que fará estragos bem mais graves do que se viu até agora com a globalização. Talvez estejamos a alguns anos de uma mudança de sociedade, e infelizmente os problemas de hoje nos impedem de mirar o futuro e de nos prepararmos para isso.

Olivier Damette, da Universidade de Lorraine, define as recentes turbulências francesas, deflagradas pelo imposto carbono, como a primeira de uma série de crises de transição energética e ecológica que deverá eclodir na Europa:

– As crises ligadas aos recursos naturais e ao clima atingem, em geral, os países em desenvolvimento. O dado novo é que passarão a chegar, de forma indireta, aos países desenvolvidos. Nos anos futuros, se terá cada vez mais crises sociais relacionadas ao clima, de conflitos e violências, inclusive entre países, se não forem rapidamente implantadas políticas adequadas para compensar as populações mais pobres.

Retornar às moedas nacionais, a guerras cambiais e altos riscos inflacionários não parece ser a melhor alternativa, mas, para Daniel Cohen, a zona euro permanece numa situação “muito delicada” nestes tempos rebeldes:

– Por enquanto, não se tem outra coisa a oferecer ao povo do que continuar na redução dos déficits públicos. Se não houver formas de permitir investimentos no futuro, para reencantar um pouco o projeto europeu, penso que as pessoas vão se cansar destas políticas de austeridade que lhes são impostas há cinco anos.

Se depender do crescente ruído das ruas e dos protestos nas urnas, o cansaço já chegou.