Itália e França travam embate às vésperas das eleições europeias

O duelo entre o presiente francês, Emmanuel Macron, e o vice-premier italiano Matteo Salvini, na ilustração da revista britânica “The Spectator”. ©Reprodução

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A menos de quatro meses das eleições para o Parlamento Europeu, nunca foram tão afrontosas as relações entre Roma e Paris. As virulentas provocações dos líderes nacionalistas italianos contra o governo pró-europeu francês refletem o lado incendiário de um embate maior entre as às vésperas da disputa nas urnas em maio, em um pleito que adquiriu uma inusitada importância provocada pela nova realidade política e ideológica no continente.

O vice-premier italiano e líder dos ultraconservadores da Liga do Norte, Matteo Salvini, seu colega de governo Luigi Di Maio, do Movimento 5 Estrelas, e mais recentemente o primeiro-ministro, Giuseppe Conte, têm multiplicado ataques contra o presidente francês, Emmanuel Macron. “Espero que os franceses possam se libertar de um péssimo presidente, e a ocasião será em 26 de maio (data das eleições europeias)”, disparou Salvini em um vídeo publicado em seu perfil no Facebook, desejando que o país vizinho retome “seu destino e seu orgulho mal representados por um personagem como Macron”.

A ministra das Relações Europeias francesa, Nathalie Loiseau, qualificou de “inaceitáveis” as recorrentes agressões verbais italianas, ao mesmo tempo procurando minimizá-las: “Na França, temos a expressão ‘o que é excessivo é insignificante’, então, quando esses propósitos são excessivos por seu tom e seu número, eles se tornam insignificantes”, filosofou, recusando-se a participar de um “concurso do mais estúpido “.

Para o analista Nicolas Leron, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po) o bate-boca franco-italiano é inédito por sua intensidade e grau de aspereza, e uma consequência atípica das atuais crispações no seio da União Europeia (UE) entre governos populistas e pró-europeus. Segundo ele, os embates visam o eleitor nacional em um pleito europeu alçado a um novo patamar:

– As eleições europeias serão cruciais em termos de equilíbrio político nacional dos Estados membros da UE. Sempre foram consideradas como sufrágios de segunda categoria, e hoje se tornam muito importantes. Movimentos no poder na Itália criticam o governo na França e, além disso, apoiam um contramovimento político (os coletes amarelos). É uma dimensão transnacional. Se está em algo muito mais integrado, e o resultado das eleições francesas terão um impacto político direto sobre a Itália e a Europa. Há, hoje, uma forma de interdependência entre os sistemas políticos nacionais europeus.

Na sua opinião, não é ilógico que a esquerda francesa critique a direita alemã ou que os populistas e nacionalistas italianos, húngaros ou poloneses ataquem os progressistas franceses, mas o que decepciona, por vezes, é o nível político dos debates. Luigi Di Maio, que já havia encorajado os coletes amarelos a prosseguirem suas manifestações contra Macron, acusou a “França colonialista” de agravar a crise migratória ao causar o empobrecimento da África e de financiar sua própria dívida pública pela exploração dos países do continente. Suas declarações levaram a uma convocação da embaixadora da Itália em Paris pelo Ministério das Relações Exteriores francês. Já Giuseppe Conte, que até então vinha atuando como moderador, decidiu entrar no ringue ao criticar o tratado de cooperação franco-alemão assinado no último dia 22: “A verdade é que pegamos a França e a Alemanha com as mãos na botija. Eles só pensam em seus interesses nacionais. Estão zombando de nós”, alfinetou.

Para Piero Ignazi, analista político da Universidade de Bologna, a troca de farpas entre os dois lados dos Alpes transcende as campanhas para as eleições europeias:

– Não se trata apenas do que se vai fazer, por razões conjunturais, para se preparar para o pleito europeu. Há uma alteração radical da política externa italiana. Giuseppe Conte era bem mais suave, disposto a abafar as críticas, mas ele abraçou as posições mais radicais. No Fórum de Davos, mostrou uma mudança de referências da tradição favorável ao contexto multilateral e de boas relações com todos os parceiros europeus e de fora do continente. Hoje, a tendência é dividir os países entre amigos e inimigos, mesmo no interior da UE. É algo mais profundo e bem mais perigoso. Há muitas pessoas que apreciam tudo isso, porque a tendência nacionalista está enraizada na Itália e deve crescer ainda mais.

Líderes francês e italiano acirram o tom em meio à campanha eleitoral europeia.

Nessa atitude de ruptura, a Itália deve, segundo ele, ganhar apoio da opinião pública no âmbito doméstico, mas corre o risco de se ver isolada e excluída de acordos no nível da comunidade europeia ou bilateral. Ignazi admite, no entanto, a mudança de status das eleições para o Parlamento Europeu.

Os pró-europeus devem agradecer aos populistas, porque é a primeira vez que as eleições europeias assumem tal importância. Penso que haverá um número bem maior de votantes em relação a pleitos anteriores. Serão eleições bastante animadas. É bom que este debate se torne, de uma certa forma, o centro de preocupações e de receios dos eleitores. Se a Europa se tornar uma verdadeira questão política, haverá tomada de posições, o que não ocorre quando algo não nos interessa.

Christophe Bouillaud, do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble, vê o recrudescimento das tensões como eleitoralmente benéfico para os governantes franceses e italianos: Macron se apresenta como o guardião dos valores europeus contra uma Itália nacionalista dominada por forças obscuras, e Savini-Di Maio como a dupla que poderá fundar uma nova Europa e resolver os problemas da UE que se arrastam há mais de duas décadas.

Interessante é que, dos dois lados, pessoas do segundo escalão têm palavras cada vez mais duras. No ano passado, um deputado francês (Gabriel Attal, porta-voz do partido de governo República em Marcha) disse que a posição italiana (sobre o barco humanitário Aquarius) era “de vomitar”. Do lado italiano, o subsecretário do Ministério das Relações Exteriores (Manolo Di Stefano) disse que Macron sofria de “síndrome do pênis pequeno”. Isso mostra a que nível de insultos se chegou. Do ponto de vista histórico, desde os anos 1920-30 não se tinha uma oposição franco-italiana deste nível. É uma disputa verbal, simbólica, destinada ao público interno, que serve aos dois campos

Bouillaud nota uma “europeização” das campanhas tanto pelo lado francês como pelo italiano: mesmo que os discursos eleitorais se mantenham essencialmente nacionais nos dois países, existe a ideia de que a relação de forças na UE poderá ser alterada no pleito de maio.

– A questão sobre sair ou não da UE é cada vez menos evocada por aqueles que são hostis à Europa. Líderes como Salvini querem mudar a UE de seu interior. Deste ponto de vista, a Europa se reforça, pois seus opositores, inclusive os extremistas mais ruidosos, almejam conquistar o poder no seio da UE ou ao menos assumir um papel cada vez mais importante. Isso vale também para o governo polonês, que hoje atua nas instituições europeias, tentando direcioná-las a seu favor.

Em recente visita à Polônia, Salvini convocou Varsóvia a formar uma “frente soberanista” para deflagrar  uma “primavera europeia” no continente e acabar com o eixo de dominação franco-alemão. Para Bouillaud, os três partidos tradicionais, Partido Popular Europeu (PPE), Partido Socialista Europeu (PSE) e Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa (ALDE), manterão uma coalizão de maioria no Parlamento. Mas acrescenta:

– Como se prevê um crescimento da direita, haverá uma composição da coalizão mais aberta a seus representantes, com políticas que correspondem melhor a essa tendência. As sondagens apontam um melhor desempenho para os nomes à direita dentro do PPE. O cursor vai mudar para a direita – prediz.