Milos Forman e Milan Kundera na Primavera de Praga do ano de 1968

Milos Forman (à esq.) e Milan Kundera, em Belle-Île-en-Mer, na França, em novembro de 1976. ©Sveeva Vigeveno/Getty Images

FERNANDO EICHENBERG / PARIS – Para marcar os 40 anos de Maio de 1968, há uma década, o diretor de documentários Simon Brook realizou um filme sustentado no testemunho de pessoas que vivenciaram as mutações dos anos 1960, intitulado “Gerações 68”. Sua lista de personagens é bastante significativa e eclética: além do próprio pai, Peter Brook, foram ouvidos Milos Forman, Dennis Hopper, Vaclav Havel, William Klein, Mary Quant, Jean-Claude Carrière, Georges Wolinski, Ed Ruscha, Annie Nightingale, e Jean-François Bizot.

Todos eles estão no filme, mas não aparecem, pelo menos não como eram na época. Nas entrevistas que fez com cada um, não foi utilizada câmera, apenas um gravador. Os depoimentos todos são usados em voz off. “Eles ficavam muito intrigados, pois sabiam que eu estava fazendo um documentário, mas não os filmava”, me contou o diretor, quando o entrevistei para o lançamento do filme, em 2008. Em seus 52 minutos de duração, o filme funciona perfeitamente neste formato. No início, o espectador espera que, em algum momento, o rosto daquela voz aparecerá na tela, mas logo mergulha em sua dinâmica e na cuidadosa edição de imagens e vídeos.

A maior parte das longas entrevistas feitas com cada um dos personagens não pode ser aproveitada na edição final, privando o espectador de curiosidades e preciosidades. Na época, convenci o diretor a me disponibilizar a íntegra dos depoimentos, e, aproveitando neste 20 agosto a efeméride dos 50 anos da invasão soviética na então Tchecoslováquia, que enterrou a onda libertária da chamada Primavera de Praga e o sonho de um “socialismo de rosto humano”, partilho com o leitor partes do testemunho de Milos Forman, cineasta tcheco naturalizado americano, falecido em abril deste ano, autor de filmes como “Estranho no ninho”, “Hair” ou “Amadeus”.

Para Milos Forman, o ano de 1968 foi uma longa travessia. Em março de 1968, então com 36 anos, chamou para os Estados Unidos o roteirista Jean-Claude Carrière, para trabalhar com ele no projeto de seu primeiro filme americano (que se chamaria mais tarde “Taking off”, sobre o meio hippie de Nova York). As semanas seguintes foram bastante agitadas: houve os sangrentos motins no Harlem, e abril foi o mês do assassinato de Martin Luther King. Como tinha o filme “O Baile dos Bombeiros” (1967) selecionado no Festival de Cinema de Cannes, disse a Carrière: “Vamos para a França, lá é pacífico e continuaremos a trabalhar tranquilamente em Cannes”. Os dois satisfizeram um antigo desejo e atravessaram o Atlântico no que seria a derradeira viagem do navio Queen Elizabeth.

Mal chegaram em Cannes e as revoltas começaram em Paris. Jean-Luc Godard, François Truffaut e Claude Berri exigem a interrupção do Festival. Louis Malle, Roman Polanski e Monica Vitti se demitem do júri. Carlos Saura, Alain Resnais e Claude Lelouch retiram seus filmes da competição. “Bem, eu me lembro, foi realmente algo – conta Milos Forman. Eles me disseram que tinha de mostrar solidariedade, e também me pediram para retirar meu filme da competição, o que não fiz. Meu francês era pobre e não entendia muito o que diziam. Finalmente desisti e disse: ‘Olhem, mesmo se não entendo uma palavra do que meus colegas estão dizendo, mas porque eu gosto muito deles e admiro seus filmes, também estou retirando o meu filme’. Era tudo um absurdo!”.

O festival foi interrompido, e Forman e Carrière viajaram até Paris. “Milos estava na minha casa – diz Carrière. Estamos no 11, 12 de maio, e Paris está sublevada. Ia com amigos todas as noites para as barricadas. Milos tentou vir uma ou duas vezes, mas ele não conseguia de jeito nenhum entender o que estava acontecendo. Não parava de me dizer: ‘Mas por que vocês se esforçam tanto em hastear a bandeira vermelha, enquanto nós (na Tchecoslováquia comunista) temos tanta dificuldade em derrubá-la? O que vocês têm na cabeça? Não façam isso, nós fizemos, e sabemos onde isso nos levou!’“.

Passado um tempo, Forman disse a Carrière: “Jean-Claude, isso tudo não faz sentido, nós temos de trabalhar, vamos para a Tchecoslováquia, é um paraíso lá agora”. Mas a Primavera de Praga, que pretendia democratizar o país e instituir um “socialismo humano”, não durou muito. “Estávamos lá, mas ninguém acreditava que os russos fossem invadir. Jean-Claude era o único, e dizia: ‘Jesus Cristo, vamos embora daqui, quero voltar para a França, vocês são ingênuos, os russos vão chegar, os russos vão chegar!’. Nós voltamos para a França e, bang: em 20 de agosto os russos chegaram! Nós não conseguíamos trabalhar em lugar nenhum!”.

Milos Forman soube em Paris, por telefone, da invasão russa em seu país, mas, como ele mesmo diz, não foi engraçado como o que aconteceu com o escritor  Milan Kundera, que se tornaria o premiado autor de “A insustentável leveza do ser” (1984), entre tantas outras obras. Nas próprias palavras de Forman: “Milan Kundera morava em Brno com sua mulher, a maravilhosa Vera. Mas ele ensinava em Praga, então tinha um estúdio na cidade. Um dia por semana ele ia a Praga para dar aula. E ele, você sabe, gosta de mulheres, então a cada semana havia uma jovem com ele lá. O que aconteceu foi que ele estava com uma jovem e, de repente, ‘bang, bang, bang’ na porta. Ele tapou a boca da jovem, para que ela não fizesse nenhum som, e novamente ‘bang, bang, bang’. E, então, uma voz: ‘Milan, você está aí? Os russos estão ocupando a Tchecoslováquia!’. E Milan disse: ‘Oh, meu Deus, que alívio, pensei que era a minha mulher!'”.

Tanques soviéticos e das forças do Pacto de Varsóvia invadiram a Tchecoslováquia na noite de 20 de agosto de 1968 para acabar com a Primavera de Praga. © Libor Hajsky/ Reuters

Naquele momento, Milos Forman não podia mais retornar à Tchecoslováquia. Para resgatar sua mulher e seus dois filhos, que haviam permanecido por lá, foi organizada uma curiosa expedição. Os fiéis amigos Claude Berri (diretor e produtor de cinema) e Jean-Pierre Rassam (produtor de filmes de Jean-Luc Godard, Marco Ferreri e Roman Polanski) se dispuseram a fazer a viagem. Mas como o carro que possuíam estava danificado, pegaram emprestado o novo e belo automóvel de François Truffaut. Quando cruzaram a fronteira, encontraram o caos, com os russos transitando de lado a outro. Tentavam seguir as placas que indicavam a direção de Praga, mas acabaram se vendo no mesmo lugar em que estavam uma hora antes. Para confundir os russos e atrasar a invasão, os tchecos trocaram as sinalizações nas estradas. Desesperada, a dupla perdida pediu ajuda a um motorista, que, solícito, disse: “Estou indo para Praga, é só me seguir”.

No meio do caminho, Rassam falou: “Olha, eu tenho de mijar, temos de parar”. Claude Berri retrucou: “Não posso parar, senão vou perder o carro da frente e nunca chegaremos em Praga”. Mas o amigo estava realmente apertado: “O que você quer que eu faça? Devo mijar no carro?”. Berri teve uma ideia: “Não! Abra a janela e mije para fora”. Foi o que Rassam estava fazendo quando, de repente, viram um comboio de soldados russos vindo na direção oposta da estrada. Claude Berri gritou: “Jesus Cristo, eles vão pensar que é uma provocação, que você está mijando neles!”, e puxou o amigo, que, obviamente, terminou o que estava fazendo dentro no carro. Quando eles voltaram e devolveram o veículo, François Truffaut perguntou: ‘Mas que cheiro é esse?’, conta Milos Forman. “Você vê, havia mesmo situações engraçadas”, acrescenta.

Para Milos Forman, o comunismo era muito similar ao totalitarismo criado pelas grandes corporações no capitalismo, e o grande dilema do homem é o conflito entre o indivíduo e a instituição. Ele explica: “Nós criamos instituições para que nos ajudem a viver, para nos servir. Não podemos viver sem elas. Criamos governos, hospitais, escolas, tudo isso. Depois de um tempo, as instituições começam a agir como se fossem donas de você, pedem para você servi-las. Esse é o conflito básico desde o começo da humanidade, e penso que os tempos dos totalitarismos nazista, comunista e das grandes corporações no mundo livre estão provocando a mesma reação nos jovens: ‘Eu sou um indivíduo, por que deveria ser ditado por instituições, às quais estou pagando para me ajudarem?”

O diretor do musical pacifista “Hair” (1979) forneceu um exemplo bastante singular. Para fazer o filme, solicitou ajuda ao Pentágono para obter os tanques, barracas e soldados de que necessitava. Ajuda negada: o Ministério da Defesa enviou uma carta dizendo que o filme dava uma imagem negativa dos militares. Forman foi à luta e telefonou para o presidente da United Artists, Arthur Krim, que tinha trânsito político no primeiro escalão do governo: “Diga-me, o Exército americano é uma instituição privada ou do Estado? Eles não querem nos ajudar porque não concordam com a filosofia do filme. Mas eu pago impostos, por meio dos quais pago os militares, e não estou perguntando qual é a filosofia deles”. No dia seguinte, o Pentágono autorizou o pedido. “Não sei para quem ele (Krim) ligou. Mas a situação básica é a mesma: o Exército não queria nos ajudar porque não gostaram do que estávamos falando sobre eles no filme, mas em um país livre eles têm de aceitar, o que seria impossível no comunismo, no totalitarismo ou no nazismo”.

Em seu prefácio para a edição francesa de “Miracle en Bohême” (ed. Gallimard, 1978), do escritor tcheco Josef Skvorecky (1924-2012), Milan Kundera, ao analisar a Primavera de Praga, escreveu: “Dizíamos cinicamente em nosso país: o regime político ideal é uma ditadura em decomposição. Apesar da ideologia oficial, foram anos de extraordinário florescimento da cultura tcheca. Foi a época que viu nascer os filmes de Milos Forman, Jiri Mezel, Vera Chytilova, o teatro de Otomar Krejca e do genial Alfred Radok, a obra dramática do jovem Vaclav Havel, os romances de Josef Skvorecky e de Bohumil Hrabal. (…) A cultura europeia conheceu poucas décadas melhores e mais dinâmicas do que os anos 60 tchecos, e é somente à luz de sua importância que se pode mensurar toda a tragédia do 21 de agosto de 1968 que os massacra. (…) Maio de 68 foi uma revolta de jovens. A iniciativa da Primavera de Praga estava na mão de adultos, fundando sua ação em sua experiência e sua decepção históricas. (…) O Maio parisiense foi uma explosão do lirismo revolucionário. A Primavera de Praga foi a explosão de um ceticismo pós-revolucionário. É por isso que o estudante parisiense olhava para Praga com desconfiança (ou, sobretudo, com indiferença), e que o praguense não tinha mais do que um sorriso para as ilusões parisienses, que considerava (com ou sem razão) como desacreditadas, cômicas ou perigosas. (…) O Maio parisiense era radical. O que, durante longos anos, preparou a explosão da Primavera de Praga foi uma revolta popular dos moderados. (…) Se falo de moderação, não penso numa concepção política precisa, mas num reflexo humano profundamente enraizado: o radicalismo como tal, qual fosse, suscitava uma alergia, pois estava ligado, no subconsciente da maioria dos tchecos, às suas piores recordações. O Maio parisiense questionava o que chamamos de cultura europeia e seus valores tradicionais. A Primavera de Praga era uma defesa apaixonada da tradição cultural europeia no sentido mais amplo e mais tolerante do termo (defesa tanto do cristianismo como da arte moderna, os dois negados da mesma forma pelo poder). Nós todos lutamos para ter direito a essa tradição, ameaçada pelo messianismo antiocidental do totalitarismo russo. (…)”.

Histórias ainda haveria muitas a revelar do making of de “Gerações 68”. Quem sabe em uma outra hora conto quando Vaclav Havel comprou seu primeiro disco de Lou Reed; por que Wolinski achava que a França vivia um declínio artístico e intelectual, ou como, um certo dia, Elvis Presley bateu à porta de Dennis Hopper, para que ele lhe falasse de James Dean, e os dois acabaram discutindo.