Elizabeth de Portzamparc: “Não sou arquiteta. Sou um ser humano, mulher, que pratica arquitetura, urbanismo, fotografia, design, desenho”

Elizabeth de Portzamparc: “Se eu sofri? O que você acha? Aqui, brasileira, mulher, com um marido conhecido. Mas nunca perdi a fé na minha capacidade de fazer uma obra, como uma convicção profunda, que não sei de onde vem. E sempre soube me defender, sofri golpes e respondi. Às vezes, as pessoas tinham medo de mim, porque eu falo, existo. © Steve Murez

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – Em sua infância no Rio de Janeiro, a pequena Elizabeth costumava desenhar em detalhes as mechas dos cabelos do imperador Napoleão, copiadas de um livro de histórias. Já em sua pré-adolescência, passava noites em claro empolgada em fazer desenhos livres, de escassos traços. Sua mãe enxergou na filha um talento promissor, mostrou suas criações para o pintor Iberê Camargo, vizinho e amigo da família, e a jovem precoce entrou para a escola de artes de Frank Schaeffer. Suas obras da idade adulta, no entanto, não são exibidas em exposições e museus. Hoje, é ela própria quem projeta museus e tantas outras edificações de formas inovadoras pelos quatro cantos do mundo. Elizabeth de Portzamparc se tornou uma arquiteta de renome internacional, uma das poucas mulheres a se destacar em um meio ainda predominantemente masculino.

Os desenhos dos cabelos de Napoleão, hoje, restam como lembranças de um distante passado:

– Naquela época, um belo dia me levaram para ver uma exposição de gravuras do Roman Cieślewicz, artista polonês. Ele desenhava com muitos poucos gestos, o contrário das mechas de Napoleão. Com apenas alguns traços, transmitia uma emoção de cena muito forte. Para mim, foi uma revelação. No fundo sou muito nervosa, ativa, e passar horas e horas desenhando mechinhas não correspondia muito a minha personalidade. Comecei a fazer desenhos com poucos traços, e não conseguia mais dormir à noite, empolgadíssima. Devia ter uns 12-13 anos, acordei com minha mãe dizendo “Você é uma artista!” – conta, rindo, assentada em seu amplo escritório em Paris, cidade em que reside há mais de quatro décadas

Hoje, ela faz questão de especificar sua condição existencial:

A vida não é ser. Não sou arquiteta. Sou um ser humano que pratica arquitetura, urbanismo, fotografia, design, desenho. Viajo, experimento várias emoções. Sou uma boa mãe, tento ser boa esposa, e agora tentarei ser uma excelente avó.

A praticante de arquitetura tem vencido ao longo dos anos importantes concursos para realização de projetos franceses e internacionais. Sua mais recente criação, inaugurada em junho, é o Musée de la Romanité, na cidade francesa de Nîmes. Elizabeth criou um museu revestido de mosaicos de vidro, num diálogo de mais de vinte séculos de História com as antigas arenas romanas situadas no entorno.

– Esse é uma espécie de joia, é o menorzinho dos atuais projetos (9.100 m²), mas o mais impressionante. É o principal trunfo da candidatura de Nîmes ao patrimônio histórico mundial da Unesco. Exibe os tesouros da cidade, não só os vestígios romanos de templos e arenas, mas também seu acervo de coleções. Todo prefeito adora o “efeito Bilbao” (provocado pelo Museu Guggenheim, de Frank Gehry), e eles estão felicíssimos, pois previa-se 300 visitantes por dia, e está recebendo quase 1 mil.

O museu de Nîmes, inaugurado em junho. © Nicolas Borel

A obra reúne a essência de seus conceitos de arquitetura contemporânea: a leveza e a urbanidade de um projeto público, flexível e aberto para cidade. Sua equipe conta com um “núcleo de sustentabilidade”, integrado por dois arquitetos, um sociólogo e uma cientista política. Quando discorre sobre sua filosofia de trabalho, seu discurso é quase militante:

Eu atuo a partir do conceito da obra aberta. Não estou fazendo uma escultura, mas uma obra perene que poderá ser transformada, apropriada, utilizada, vivida. A segunda principal ideia é das interações. Tudo é interligação, interior, exterior, cidade, não tem ruptura, barreiras, fronteiras. E sempre nesta ideia de duração e apropriação. Não estou fazendo um monumento fechado, hermético, para ser admirado e contemplado, mas edifícios para serem vividos. E com material sustentável, numa arquitetura que possa ser adaptada, ser integrada ao lugar, ao clima e à medida da transformação da vida ao longo dos anos, séculos. Isso que considero importante na arquitetura.

Terraço do Musée de la Romanitée. © Nicolas Borel

Em seu projeto de Nîmes, a arquiteta criou uma via interior, como um convite para a visita ao museu, ao jardim arqueológico e ao percurso ascendente até o terraço, um mirante sobre a cidade de Nîmes, em uma homenagem ao colega Oscar Niemeyer (1907-2012).

– A fachada do museu foi trabalhada para acentuar a ideia de levitação, como se fosse um véu. Reflete muito a cidade, e muda completamente em função das horas do dia e da noite. Por vezes, fica metalizado, e em outras, completamente transparente ou meio rosado. É muito comovente de ver.

Fachada do museu reflete as mudanças de luminosidade durante o dia. © Serge Urvoy.

No dia seguinte à entrevista, Elizabeth embarcaria cedo pela manhã rumo à Taiwan, em mais uma reunião do projeto de construção do Taichung Intelligence Operation Center, um centro cultural digital de 44 andares. Segundo ela, o prefeito de Taichung queria um símbolo da tecnologia digital para a cidade, mas sua ideia foi a de “glorificar a inteligência humana”.

– A perda da inteligência humana vem do excesso de tecnologia. Antes, o tempo era dilatado, e o presente era um dia, horas, talvez uma semana. Era um presente confortável. Hoje, é uma fração de segundos. E, com isso, a inteligência humana não tem a capacidade de seguir a inteligência artificial. Nós temos nossos limites. Penso que só reunindo os homens e promovendo encontros, estimulando a inteligência coletiva, que vamos ser capazes de acharmos juntos as soluções que nos permitam superar esta falta de controle, esta loucura que vivemos atualmente. Na Europa, fala-se muito da cidade e da inteligência artificial. Lógico que é importante para gerenciar trânsito, tudo que é fluxo. Mas inteligência humana dá conta perfeitamente do gerenciamento de água, da luz em edifícios. É importante pensar como gerenciar este básico que está sendo completamente ignorado.

A Taichung Intelligence Operation Center, com entrega prevista para 2021. © Elizabeth Portzamparc

Seu projeto é autodefinido como um “hino a um projeto humanista”, com lugares de encontros e de passeios a pé. A cada quatro andares, existirão praças, em espaços em permanente comunicação, sem barreiras, no conceito de uma cidade vertical, com bairros e sub-bairros. Como elementos fixos, a torre só terá os elevadores, as escadas e os jardins, o restante da estrutura será maleável, podendo sofrer modificações.

Na sua visão, a cidade vertical, a flexibilidade e a sustentabilidade dos materiais podem ser consideradas como “soluções universais” para o problema de superpopulação das cidades, alertando que nas próximas décadas 70% da população mundial será urbana. No entanto, para as cidades da Ásia e da América Latina, segundo ela as mais afetadas pela migração urbana e que não possuem as mesmas condições de rede sanitária e viária das aglomerações europeias, as respostas diferem:

– O sistema de autoconstrução, por exemplo, é vital para a América Latina e a Índia, com arquitetos que possam dirigir um grupo de pessoas que desejam conceber um espaço para viver de modo adequado a sua vida. No Rio, a maioria das pessoas que mora em comunidades prefere continuar onde está, porque existem vínculos sociais. Várias moradias sociais estão abandonadas porque não foram concebidas em modo participativo. O poder público pensa a arquitetura social como um produto. Não se trata de Minha Casa Minha Vida, nem de alinhar ou empilhar as pessoas assim ou assado. Em todas as escalas temos de pensar na vida, e em como acolher essa vida, como ligá-la à cidade, em função de cada lugar – defende.

Oscar Niemeyer, para ela o “criador da arquitetura contemporânea”, é uma referência em seu trabalho, sem, no entanto, permanecer estancada no passado. A cidade de Brasília, projetada pelo arquiteto carioca, é, na sua opinião, uma “bela escultura”:

É uma obra feita para ser contemplada, não para ser vivida. É o contrário do que penso e também das obras de Sérgio Bernardes (1919-2002) e Lina Bo Bardi (1914-1992). É uma outra dimensão. E eles eram também mais jovens do que Niemeyer, de uma outra geração. O objetivo dele era produzir emoção, e não espaços para serem habitados. Não existe uma reflexão sustentável, como em Lúcio Costa, sobretudo no Parque Lage, com todo um pensamento sobre o clima, materiais locais e detalhes da arquitetura vernacular do Rio. Neste ponto, ele vai mais adiante do que Niemeyer. Já o Sérgio Bernardes entra no campo visionário, de integrar a realidade econômica e social em sua reflexão.

Vista aérea do projeto do novo complexo de bibliotecas do Campus Condorcet. © Elizabeth Portzamparc

Para relaxar em meio a sua intensa agenda, Elizabeth costuma ouvir “Introdução e Rondo Capriccioso”, de Camille Saint-Saëns (1835-1921), ou jogar uma partida de damas. Na maior parte do tempo, está em atividade em Paris ou em um trem ou avião rumo a algum destino para supervisionar seus novos projetos. Recentemente, saíram da prancheta a Grande Biblioteca de Documentação do Campus Condorcet, em Aubervilliers (Seine-Saint-Denis), que reunirá 45 bibliotecas especializadas em Ciências Humanas e Sociais (o dobro do tamanho do museu Nîmes, com previsão de entrega no início de 2020); a estação de Le Bourget, uma das cinco inicialmente previstas no projeto da Grande Paris, com conexões de transportes locais, regionais, nacionais e internacionais, ou o Science Hall of Zhangjiang Science City, a Cidade das Ciências, em Xangai, na China.

Projeção noturna do Science Hall of Zhangjiang Science City. © Elizabeth de Portzamparc

No ano passado, Elizabeth participou do projeto de criação de um novo bairro em Massy, no sudoeste da capital francesa, uma prefiguração do que serão os  subúrbios do ambicioso plano público denominado Grande Paris.

– Paris é uma cidade minúscula em termos de uma metrópole europeia. Os novos projetos de ligações com a Grande Paris não estarão todos concluídos antes de dez anos, mas se está avançando. Estão sendo construídos polos urbanos bem equipados, com bastante comércio, escritórios, moradias. É preciso quebrar a centralidade de Paris. O objetivo é que até 2028 todos os moradores da Grande Paris morem a menos de dois quilômetros de uma estação da nova rede de transporte Grand Paris Express, que em 2024 já contará com um importante número de linhas. O desejo de morar em Paris aos poucos vai ser disseminado, sobretudo se estes novos bairros forem concebidos de um modo atrativo e agradável – explica.

Prédio do complexo de Massy, no subúrbio de Paris. © Elizabeth de Portzamparc

Morar e estudar na França era um antigo desejo de juventude, que foi precipitado por sua militância contra a ditadura militar no Brasil. Em 1969, abandonou o curso de Sociologia na PUC-RJ e se inscreveu na Universidade Sorbonne, em Paris.

– Com o AI-5, o ambiente não estava propício aos intelectuais. Eu militava com um amigo, Paulo Müller, um dos líderes estudantis da UNE (União Nacional dos Estudantes), distribuía panfletos em comícios relâmpagos. Ele acabou sendo preso, e fui sua testemunha principal. Mas os advogados dele me aconselharam a sair do Brasil, pois a barra estava mesmo pesada e meu testemunho poderia ser considerado falso. Ele ficou preso bastante tempo e perdeu seus direitos cívicos. Com isso, foi uma evidência vir estudar aqui. Me inscrevi rapidinho na Sorbonne, e acabei construindo toda minha vida aqui.

Seu sobrenome é herdado do marido, o reputado arquiteto francês Christian de Portzamparc, uma dificuldade a mais em seu percurso para construir seu próprio prenome.

– Se eu sofri? O que você acha? Aqui, brasileira, mulher, com um marido conhecido. Hoje mesmo, a Margareth Pereira, historiadora da arquitetura brasileira, me perguntou onde conseguia tanta força para enfrentar este meio todo masculino. O que realmente me ajudou foi nunca perder a fé na minha capacidade de fazer uma obra, como uma convicção profunda, que não sei de onde vem. E sempre soube me defender, sofri golpes e respondi. Às vezes, as pessoas tinham medo de mim, porque eu falo, existo – diz.

Projeto da estação Le Bourget, da Grande Paris. © Elizabeth de Portzamparc

Entre as poucas mulheres que conseguiram existir na profissão, além de Lina Bo Bardi cita Zaha Hadid, Gae Aulenti e Kazuyo Sejima. De Portzamparc lança estre ano um livro sobre sua própria trajetória, e prepara um outro, teórico, sobre sua visão da arquitetura.

– Volto ao movimento moderno, ao pós-modernismo, para chegar no que acho que está acontecendo agora, pois há um questionamento geral sobre a loucura em que estamos vivendo, e em como trazer soluções adequadas a estas crises atuais, sejam energéticas, humanas ou sociais. Isso não é algo gratuito. É um novo movimento, que estou chamando por enquanto de “Nova arquitetura”, que reúne diferentes horizontes de pessoas preocupadas com isso. Estou tentando ver quais são as constantes em tudo o que está acontecendo. Já dá para notar que é uma preocupação, mas se é um movimento arquitetural deve-se analisar melhor.

No momento em que o leitor estiver percorrendo estas palavras, Elizabeth De Portzamparc já deve ter retornado de seus dias de férias na Córsega, de uma rápida viagem ao Rio para supervisionar as obras de sua nova casa na Urca ou quem sabe mais uma vez rumo à Ásia, para reuniões de trabalho sobre o andamento de suas criações.  Poderá estar também em seu escritório parisiense ouvindo Saint-Saëns e jogando damas, na busca de novas inspirações arquietônicas.