Intelectuais avaliam possíveis mudanças e novos cenários para o mundo no pós-crise do coronavírus

Cenário da ponte Alexandre III, em Paris sob confinamento. Pensadores apontam que emergência de saúde levanta questionamentos sobre as relações interpessoais e as formas de organização política e econômica. ©Bertrand Guay/AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A crise de saúde global ainda está longe de alcançar seu término, mas já pairam no ar projeções sobre o poder da epidemia – um fenômeno biológico, sem moral ou mensagem – em suscitar profundas interrogações sobre a forma do viver em sociedade e de os indivíduos pensarem o mundo deste início de século XXI. Intelectuais ouvidos pelo GLOBO não têm dúvidas de que a experiência provocada pelo coronavírus deflagrará em seu rastro novos questionamentos existenciais e humanistas, bem como mudanças de governança política e de modelos econômicos.

Para o sociólogo Michel Wieviorka, diretor de pesquisas na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, na sigla em francês), esta pandemia revelou de forma importante a dimensão do poder de controle da China sobre o mundo.

– É um fenômeno importante que emerge desta crise: não a já sabida potência da China, mas a dependência do mundo inteiro em relação ao país. Os medicamentos que utilizamos são produzidos com substâncias originadas da China. Os automóveis que conduzimos dependem em 40% da indústria chinesa – diz. – Muitos países começam a se questionar sobre seu estado de desindustrialização e sua dependência de Pequim. A crise sanitária se mistura a outras, do petróleo, financeira, dos mercados. Vamos entrar em um período muito complicado, e é possível que saiamos com outras concepções de vida econômica. Há também um retorno da confiança na ciência e na medicina, é um retorno da razão. Esta crise vai suscitar novas reflexões e tomadas de consciência.

A recente virada de rumo do presidente francês, Emmanuel Macron, em anúncios de política econômica, é invocada por ele como um embrião de mudanças futuras:

– Macron teve uma política, sobretudo, neoliberal, e agora diz que é preciso confiar no Estado e que o mercado não pode regular tudo. Queria aprovar a toda velocidade uma reforma da aposentadoria, e agora diz que não há pressa. Impôs uma reforma do seguro-desemprego, socialmente brutal, e toma medidas que a anulam. Haverá muita reflexão sobre nosso humanismo, nossas relações interpessoais, mas também um intenso debate em torno de nossa organização econômica, do que se espera dos sistemas de saúde, de educação. Hoje, espera-se muito do Estado, de ajuda econômica, e certas receitas neoliberais serão esquecidas. Isso não quer dizer que se vai retomar métodos do passado, mas que se irá na direção de outras fórmulas de redistribuição – prevê.

No campo político, a crise, na sua opinião, provocará reflexões comparadas entre a democracia e o autoritarismo:

– Se olharmos apenas para a experiência chinesa, se vai dizer que o país tomou medidas brutais, mas que permitiram absorver o mais rapidamente possível a epidemia, então, viva o autoritarismo. Mas basta olhar o que se passa no Irã para perceber que o autoritarismo também pode ser totalmente ineficaz. Simetricamente, a Coreia do Sul e a Itália tomaram medidas enérgicas – melhores, talvez, do que a França -, e nem todos os regimes democráticos se igualam. Vai-se refletir sobre a complementaridade da democracia e do Estado de Direito, e da capacidade do Estado de agir.

Nesta crise, que define como um “acontecimento de importância histórica”, avalia ainda que as mudanças dependerão da emergência de novos agentes políticos e sociais. E cita o exemplo francês no pós-Segunda Guerra Mundial, em que o país viveu três décadas de crescimento e de pleno emprego, conhecido como os Trinta Gloriosos. Segundo ele, isso foi possível graças a três elementos: as propostas do Conselho Nacional da Resistência (CNR), em torno de valores de solidariedade e do Estado-Providência; a existência de duas forças políticas legítimas, o gaullismo e o comunismo, e a ajuda americana via o Plano Marshall.

– Na situação atual da França, não há reflexões inovadoras comparáveis com as do CNR. As forças políticas são as extremistas, de direita e de esquerda, e um poder estabelecido que mostrou seus limites. Quais serão os atores políticos, intelectuais, culturais de uma renovação? Hoje, não saberia dizer. Mas se não houver, rumaremos para catástrofes autoritárias e nacionalistas.

Wieviorka aponta a ameaça do recrudescimento da xenofobia e da nostalgia das fronteiras nacionalistas como possíveis consequências dos efeitos do coronavírus:

– Em crises deste tipo, fenômenos como a xenofobia podem se desenvolver muito rapidamente, é algo com o que devemos nos preocupar. E na França, a extrema-direita foi a primeira a pedir que o país fechasse as fronteiras, mas não com argumentos médicos ou científicos, e sim políticos e ideológicos. E já vemos um racismo antichinês, antiasiático, porque a epidemia começou na China. É um fenômeno clássico, sempre se procura um bode expiatório nas epidemias. Ao lado disso, há comportamentos também de inconsequência ligados ao egoísmo, de pessoas que continuam a se agrupar, dizendo que tudo isso não é sério, enquanto se lhes é explicado de forma racional que é grave.

O filósofo Luc Ferry também sinaliza com um possível fortalecimento dos nacionalismos e da xenofobia como resultado da crise sanitária:

– É a evidência. Junto com os ecologistas e os altermundialistas, são os nacionalistas que ganham a partida. Eles têm, hoje, sua revanche contra as sociedades abertas, e zombam no estilo “eu bem que avisei”. Todos os governos, incluídos os mais democráticos, fecham as fronteiras, o que só pode reforçar os soberanistas de extrema esquerda e de extrema direita. Os nacionalistas se deleitam da situação atual, convencidos de que lhes dá razão. Aproveitam para nos vender seus discursos habituais contra a globalização e pelo fechamento das fronteiras. O isolamento se torna o grito universal de guerra. E o presidente Donald Trump (EUA) fala de um “vírus chinês”, o que não prenuncia nada de bom e se revela de uma rara tolice – denuncia.

Ferry acusa os governantes em reagir tardiamente à crise de saúde, o que não seria devido a um acaso e nem despido de causas e de significações. Os dirigentes políticos de hoje não possuem nenhuma cultura científica, assinala, e têm muitas dificuldades em compreender os dados medicais do problema, sendo totalmente dependentes de especialistas. Para ele, o político do futuro não poderá mais ser um ignorante científico:

– Nosso políticos, não entendendo nada do que se passava no plano científico, tiveram semanas de atraso em relação à realidade da epidemia, o que se traduzirá, infelizmente, por centenas ou mesmo milhares de mortos. A incultura científica não é mais admissível no mundo de hoje. Um político deveria ter, sem ser um especialista, um mínimo de conhecimento para não ser totalmente pego de surpresa em uma situação como a que vivemos. Infelizmente, a principal -senão a única – bagagem de nossos governantes é a comunicação e a sociologia eleitoral.

Para o filósofo, o confinamento decretado pela crise do coronavírus destacará a importância da sociabilidade do ser humano:

– Assim como a internacional revolucionária de Maio de 68 era de uma incrível miopia em relação aos efeitos  desastrosos do comunismo sob todas suas formas, o isolamento forçado na esfera privada é deletério. Amo a família, espaço de uma admirável sacralização do humano, e ligada à história do casamento pelo amor. Mas nós somos seres sociais, e o confinamento nos mostra de forma brutal o quanto a dimensão social de nossas existências é essencial.

Para o pensador Michel Maffesoli, esta crise marca o fim do “mito do progressismo” e a “saturação da prevalência da economia e do materialismo”. Sua tese é a de que, neste momento, a crise da modernidade se manifesta de forma violenta.

– Hoje, há o retorno do trágico, que na filosofia grega quer dizer “sem solução” – o contrário do mito progressivista teorizado no século XIX -, e em que há esta noção de que é preciso se acordar com a natureza. A fórmula correta é: “Só se comanda bem a natureza obedecendo-a”. Na minha opinião, a manifestação deste epidemia indica que não podemos mais dominar a natureza, mas sim viver com ela. Tudo o que desejamos dominar, se revolta.

Outra consequência, segundo ele, está relacionada a outro grande valor da modernidade: o economicismo e o materialismo. Esta crise, segundo ele, promoverá o retorno do “localismo”:

– O filósofo Jean Baudrillard fez belas análises sobre o fato de que nossa vida individual e coletiva era dominada pelo consumo. Para mim, o economismo da globalização está na raiz da difusão da epidemia. Quando esta crise passar, haverá uma volta da “proxemia” – a proximidade -, das solidariedades locais, e o surgimento de novas formas de generosidade. O que não é mais longínquo vai predominar: não mais uma sociedade globalizada, mas um reencontro com o ideal comunitário – vaticina, sem descartar os perigos da xenofobia e dos nacionalismos, embora não acredite que sejam valores que irão prevalecer.

A “grande ideia da modernidade” é a filosofia universalista do Iluminismo, elaborada ao longo do século XVIII, diz. E este universalismo, segundo ele, teria, de uma certa forma, se desenraizado dos valores localistas, abrindo o caminho para a emergência dos nacionalismos-populistas, que pregam um discurso contra o sistema e as elites tradicionais.

– Ao se insistir neste universalismo, há um desligamento do povo. Não podemos mais funcionar nisso. Neste retorno dos valores localistas, há um lado caricatural, com elementos perigosos. Mas, na minha opinião, estes nacionalistas fazem parte apenas de um momento. Enxergo o copo em sua metade cheia. Acredito que há novos valores em gestação que podem ser interessantes.

Na governança política, Maffesoli prevê que a atual “falência das elites” favorecerá a emergência de novas formas de organização sustentadas na horizontalidade, não mais na verticalidade do poder.

– Uma época dura entre três e quatro séculos. Entre elas, há períodos, que se estendem por algumas décadas. Neste período que estamos vivendo, os valores modernos estão cessando. Uma outra escala de valores está nascendo. É um tempo de aprendizado, difícil, e, ao final, poderemos chegar a uma outra concepção de relações sociais e entre países.