Guga e antigos rivais relembram os 20 anos do título mais improvável do torneio de Roland Garros

Guga na avenida de Champs-Elysées, em Paris para celebrar os 20 anos de sua maior conquista. Fotos © Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – O espanhol Sergi Bruguera simula uma repentina amnésia quando requisitado a recordar o dia 8 de junho de 1997, data em que sucumbiu em três sets na final do torneio de Roland Garros ao até então desconhecido Gustavo Kuerten, um jovem brasileiro de 20 anos com jeito de surfista, de farta cabeleira e uniforme de colorido extravagante, classificado na época no modesto 66° lugar do ranking do tênis mundial. “Prefiro pensar em 1993 e 1994 – diz espertamente o espanhol, exibindo um malicioso sorriso, referindo-se aos anos em que se sagrou campeão no Grand Slam do saibro francês”.

Ao recuperar a memória, no entanto, Bruguera se mostra fair play em relação ao seu algoz brasileiro: “Foi algo raro e anormal um tenista que ninguém conhecia de repente aparecer na final de Roland Garros. Enfrentei alguém que nunca havia visto jogar, não sabia o que esperar. E o impressionante foi que tudo que deveria se passar com um tenista que disputa pela primeira vez a final de um Grand Slam, como ficar nervoso, não ocorreu com ele, e por isso também jogou daquela maneira. Ele me ganhou bem, mereceu vencer, e não vou odiá-lo por isso (risos). Tenho boas relações com ele. Guga tem boas relações com todo mundo, é uma excelente pessoa”.

Há 20 anos, Guga contradisse todas as lógicas do esporte ao erguer a taça no charmoso e prestigiado torneio parisiense, após ter despachado pelo caminho feras e ex-campeões do tênis mundial como o sueco Jonas Bjorkman, o ucraniano Andrei Medvedev, o austríaco Thomas Muster ou o russo Yevgeny Kafelnikov. Seria o primeiro e mais surpreendente de seus três títulos conquistados no Aberto da França (venceria depois em 2000 e 2001).

Em Paris para celebrar a efeméride de duas décadas de seu maior triunfo, o catarinense, hoje aos 40 anos e aposentado das quadras desde 2008, confirma as palavras do rival espanhol de 1997: “Ganhei brincando aquele torneio. Devia dar uma raiva danada nos caras: ‘Esse cara aí sorrindo, com um lenço na cabeça, com aquele jeito todo extrovertido na quadra’. Hoje tenho noção do que é Roland Garros. Mas foi não saber na época o que era que me ajudou, o não conhecer evitou o susto, a angústia e a ansiedade em excesso, e o cagaço de entrar naquela quadra central”.

Guga revela que recentemente assistiu às imagens dos momentos vividos logo após a vitória contra Bruguera e se disse impressionado, ainda mais tratando-se de um tenista que desembarcou em Roland Garros na ideia de que alcançar a segunda rodada do torneio já seria uma vitória, e chegar à terceira justificaria estourar a champanha. “Nunca tinha parado para ver o pós-jogo, e olhando hoje é algo assustador, porque seria impossível tentar replanejar aquilo. Havia uma felicidade brutal, e parecia tudo sob controle, era natural. Parecia que estava em casa. Há o fervor do momento, você abraça todo mundo, levanta o troféu, mas o que de fato aconteceu? O que aquele título representa para as pessoas e no universo do tênis?”, se pergunta.

A resposta, ainda que incompleta, ele mesmo tem, graças à sabedoria do tempo: “Passados 20 anos, há um distanciamento suficiente para você ter um maior entendimento do que ocorreu. Foi um absurdo, chega a emocionar o cara, eu era um garoto, jogava fliperama. Se parar para pensar, trouxemos uma nova proposta para o saibro. Era tudo muito improvável, fora de coerência. Hoje mais do que nunca este título fica escancarado como a maior façanha da minha carreira, algo inexplicável. Eu estava engatinhando no circuito, e na porta de entrada quase já conheci as últimas páginas do tênis”.

Três vezes campeão em Roland Garros (1982, 1985 e 1988), o sueco Mats Wilander reforça o inesperado da vitória de Guga em 1997: “Para nós, jogadores, foi uma enorme surpresa o fato de que Gustavo Kuerten pudesse de repente vencer um Grand Slam sem ter feito muito antes disso. Mas logo nos demos conta de que se passava algo completamente diferente com ele jogando na quadra central Philippe Chartrier. Porque não há muitos tenistas e estádios que possuem esta intimidade, e Guga e Roland Garros têm uma relação muito especial, desde seu início. Ele veio e caiu em amores aqui”.

Para Wilander, a emersão da magia de Guga está além da técnica: “Tudo é possível no tênis em termos de jogo, mas se trata da mente e do coração. Sempre é um espanto ver um jogador de ranking mediano se ativar mentalmente e emocionalmente, porque isso é o que a maioria dos jogadores não tem e é o mais difícil de conseguir. E quando você observa isso, diz: ‘Ok, este cara é pra valer'”.

O espanhol Alex Corretja foi outra vítima do brasileiro no saibro de Paris, derrotado em quatro sets na final de 2001. “É um pouco inexplicável o que ele fez em 1997, mas lembro que treinei com ele antes de começar o torneio, e já o vi jogando muito bem. Guga tinha um ritmo muito bom, boa intensidade, grande saque, uma boa direita, uma tremenda esquerda, e jogava com muita alegria, de forma intensa. E aproveitou para ganhar aqui de forma espetacular. Hoje seria quase impossível ocorrer algo assim, que alguém ranqueado em torno de 70° do mundo vença um Grand Slam. É muito complicado, porque quem está no topo tem um nível muito melhor do que os detrás”.

O francês Guy Forget, diretor do torneio de Roland Garros, anunciou o fim de sua carreira de tenista em 1997, o emblemático ano de Guga. Ele conta que é constantemente solicitado para dar conselhos sobre o que fazer para que um francês volte a vencer o Grand Slam de Paris (o único até hoje foi Yannick Noah, em 1983). Na sua opinião, um tenista como Guga ou Rafael Nadal não se fabrica com um método, esquecendo-se de toda a complexidade do ser humano, de seu percurso, de sua sensibilidade, de seus genes. Para Forget, Guga faz parte da categoria de jogadores e pessoas excepcionais. “Acredito que o caracteriza sua trajetória é a unicidade do personagem. Acredito muito no DNA, no que está inscrito no interior do jogador, e que não se pode inventar ou fabricar. Mozart escreveu as mais belas melodias do mundo porque tinha esta diferença em relação aos outros. Não penso que ele compôs suas músicas porque teve um bom professor. Deve ter tido, mas o mesmo professor com outros alunos não fez o mesmo. Penso que o que Larri Passos fez com Guga não conseguiria com outros jogadores, porque Guga é único, e é alguém generoso, humilde e simples. E é rara esta empatia que teve com o público de Roland Garros”.

Forget não lembra outro jogador estrangeiro que tenha alcançado uma relação tão intensa e especial com o público francês, nem mesmo Rafael Nadal, que venceu nove vezes (e viria a vencer “La décima” este ano) no saibro de Roland Garros: “É sempre fascinante conviver com pessoas que são tão fortes em uma área, no esporte e no tênis, neste caso, e ao mesmo tempo tão simples, humanas e acessíveis. Humanamente Nadal é uma pessoa extraordinária como Guga, mas é muito mais tímido, mais secreto. Guga – e creio que é uma das características dos brasileiros -, é muito caloroso, aberto. Vemos em seu rosto, quando sorri, ele gosta das pessoas, e Nadal não é assim. Não é uma crítica, mas uma constatação. Nadal se protege, talvez tenha mais dúvidas do que tinha Guga. Mas são duas pessoas extraordinárias. E Guga não agia assim para que as pessoas o amassem, era simplesmente natural. É rara essa empatia que Guga teve com o público de Roland Garros. Na história do tênis, não lembro de alguém que tenha alcançado essa relação. Talvez Yannick Noah, ele tinha uma relação similar mesmo fora da França. Não é fácil ter isso”.

O espanhol Carlos Moya, ex-número um do mundo (em1999) e hoje técnico do campeão Rafael Nadal (junto com Tony Nadal), também recorda o surpreendente título brasileiro de 1997: “Isso é o bom do esporte, e estas surpresas e histórias bonitas perduram no tempo. É algo muito positivo para o tênis e para o esporte em geral. De qualquer maneira, é uma façanha muito difícil, e fico feliz porque aconteceu com um amigo meu. É algo difícil de explicar, sempre tentamos buscar explicações para as coisas, e muitas vezes não as temos. Ele jogou muito, foi uma agradável surpresa para todo mundo, e algo que sempre será lembrado”.

Neste domingo, antes da disputa da final em Paris, Guga receberá mais uma homenagem por seus feitos e também o carinho do público francês na quadra Philippe Chartrier, numa história de amor que ele credita em grande parte a singularidade de sua façanha de 1997. “Acho que surgi com uma proposta de jogador mais humano, com este lado da emoção, de sorrir, de brincar, e que abriu um novo canal, com uma alma e espírito diferente. O jogador era um pop star, mas eu nem sabia o que era ser uma estrela (risos). E quando levanto aquele troféu, é como se decolasse das minhas mãos e voasse para todo mundo. Naquela hora, vem a intenção de ser um título mais colaborativo. Em 1997, eu trouxe um brilho diferente, que é a vertente atual no tênis. E entre nós, nos emocionávamos. Tinha o Larri, a Diana (Gabanyi, assessora de imprensa), a mãe (Alice), o Rafa (irmão), a Oma (avó), o Carvalhinho (Paulo) e o Jorge (Salked, empresários). Não vínhamos aqui para ganhar Roland Garros, a gente ia agregando a turma, enroscando o pessoal, e trazendo todo mundo para saborear junto.