FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO
PARIS – Certa vez, o prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa escreveu que se alguém lhe dissesse que um dia veria “viagens turísticas gastronômicas” ao Peru, seu país natal, jamais acreditaria. A gastronomia peruana desafiou os incrédulos e se tornou uma referência no planeta, num movimento que tem o hoje célebre chef Gastón Acurio, 50 anos, como um de seus principais precursores.
Em 1991, o jovem Acurio abandonou a carreira no Direito para se dedicar às panelas, e entrou para tradicional escola culinária Le Cordon Bleu, em Paris. Retornou para a cidade de Lima, em 1993, já casado com a alemã Astrid Gutsche, também chef, que havia conhecido na capital francesa. Um ano depois, surgia o Astrid & Gastón, hoje em 33° lugar na reputada lista do The World’s 50 Best Restaurants.
O Grupo Acurio contabiliza atualmente 50 estabelecimentos no mundo, e só neste ano serão abertas mais dez casas em diferentes países. Empresário de sucesso, o chef é um ardente defensor de uma política voltada à alimentação como fator deflagrador de mudanças fundamentais na sociedade, na indústria alimentar e no meio ambiente. Segundo ele, o restaurante do futuro será mais simples e de preço mais acessível, sem perder o foco na qualidade.
De passagem pela capital francesa, onde fez um almoço a quatro mãos com o chef francês Alain Ducasse, no Hotel Plaza Athénée, Acurio conversou com O Globo nas dependências do Manko, seu restaurante parisiense.
Quais são, hoje, seus desafios profissionais e pessoais?
Como cozinheiro, tenho, atualmente, duas tarefas importantíssimas. Uma delas é pagar uma dívida com as pessoas que me seguem há muito tempo e que se sentiam rejeitadas pelo estilo de meus restaurantes, que não eram acessíveis ao seu bolso. Decidi há um tempo que não faria mais restaurantes muito caros. Só haverá um Astrid & Gastón, que é quase uma representação teatral da cozinha. Nosso trabalho agora é tentar desenvolver restaurantes pequenos, ao preço mais módico possível, que tratem de estabelecer relações justas e de qualidade com pequenos produtores, formem cozinheiros no lugar para que possam desenvolver uma carreira, e respeitem os produtos das estações. Fizemos uma versão barata do nosso restaurante La Mar, chamado Barra Chalaca. Em Lima, há uma fila todos os dias, de pessoas de todas as classes sociais, e custa 8 euros. Não vai se comer lagosta, mas um peixe fresco de qualidade, num ambiente bonito e com um serviço simpático. Fizemos outro, El Bodegón, que é uma versão da cozinha popular caseira de Lima. É uma taberna de bairro, onde se encontram pratos que conectam com a cozinha de sua mãe, e a um preço acessível. Isso vai encerrar meu ciclo de cozinheiro profissional de restaurantes. É uma mensagem cada vez mais clara no mundo: os grandes restaurantes caros se tornarão cada vez mais raros, e os pequenos, com boa cozinha e bom preço, estarão em ascendência.
E qual é sua outra missão?
A outra, quando a explico, me dizem que estou louco. Todos os programas de tevê e de rádio que vou fazer agora são para tentar convencer que se cozinhe em casa. “Como que eu, cozinheiro, que têm restaurantes, está dizendo às pessoas para não irem a restaurantes?”, me questionam. A verdadeira importância da cozinha, para as lutas diárias em nível ambiental, cultural, social e nutricional, está em casa. Estou com um programa novo na tevê, e todos os dias, às 20h, apareço por cinco minutos para falar sobre isso, contar uma história e fazer uma receita. No rádio, faço isso pela manhã. Encontrei um novo sentido em meu trabalho.
Que sentido?
Se obtivermos sucesso nisso, poderemos influir na agenda pública. Nos custa muito convencer os políticos de que deve haver uma política alimentar. Se houvesse uma política que entenda que a alimentação é fonte de muitas coisas boas para o país, muito poderia ser mudado. Mas ainda não há uma consciência clara nos nossos políticos de que na alimentação equilibrada pode ser encontrado desenvolvimento econômico em zonas rurais, fortalecimento de identidade cultural em áreas empobrecidas, cadeias de valor econômico e cultural ligadas à programas nutricionais em escolas, programas de saúde pública vinculadas aos hábitos de consumo. Mas aí intervêm os poderes que sentem que perdem, e tento explicar que eles não perdem, mas ganham. Porque neste mundo em que os consumidores querem um equilíbrio justo e coerência, e não marketing, as marcas serão beneficiadas se participarem disso. Estou também entrando na indústria alimentar, e meu sonho é transformá-la. Sou muito otimista em relação às novas gerações. Mas, neste momento, estamos em plena batalha.
Os chefs se tornaram estrelas, como você vê isso?
Isso está muito ruim. O cozinheiro não é a estrela, mas um veículo, um artesão, uma ponte entre o campo e a cidade, o mar e a mesa, o meio ambiente e a alimentação, a economia e a sociedade. É um ator privilegiado nesta história que fazemos todos, que é se alimentar. Se temos a oportunidade de nos convertirmos em “estrelas”, deve ser para que a cozinha brilhe, e não cada um de nós. Devemos tratar de usar cada vez que pudermos as tribunas que nos dão para falar de onde vêm os produtos, a origem das receitas. Esta geração mais jovem, millenial, quer aprender e controlar tudo em um segundo. É nosso dever recordar-lhes que para chegar onde estamos se passaram vinte anos.
Você já foi assediado por partidos políticos e, frequentemente, é citado como um potencial candidato à Presidência da República no Peru. Como é isso para você?
Os peruanos, e em todos os demais países da América Latina, merecem um presidente que esteja preparado em múltiplos terrenos, que tenha um vida pessoal austera, uma história de honestidade impecável, um trajetória de político generoso, o valor de enfrentar qualquer poder, a sensibilidade de se comover diante de qualquer injustiça, a inteligência emocional e intelectual para resolver de forma pragmática os problemas que ocorrem no caminho – sempre pensando no bem comum -, e que tenha esta visão e espírito heróico de sonhar com o desenvolvimento da população e do país. Essas são virtudes que se devem encontrar em um político, e não em um cozinheiro que tenha a vaidade e arrogância de se acreditar num eleito para conduzir um país em um terreno tão distante como é o da política. A cozinha é uma ambiente de partilha, de paz, de amor. A política é a luta pelo poder, as ideologias por cima das realidades. Para mudar isso, deve-se buscar um político. Um cozinheiro chegaria desarmado neste território, e provavelmente fracassaria, e afetaria ainda mais a esperança das pessoas.
Há novos projetos para sua escola para jovens, o Instituto de Cozinha Pachacutec?
Vamos fazer uma segunda escola. A primeira, montamos no norte de Lima, e já temos 400 alunos por todo o mundo, como chefs de cozinha, proprietários de restaurantes, professores em institutos. São pessoas que não tinham muitas oportunidades antes e mudaram suas vidas. Vamos fazer uma outra no sul de Lima. É uma zona muito pobre. Vai ser algo maior. Vai ter um restaurante ao lado para os locais, a um custo de 1 euro, onde os alunos poderão treinar. Deveremos inaugurar no final do ano.
Quais seus projetos em relação ao Brasil?
Deveria ser inaceitável que dois países unidos por um território comum, estejam hoje distantes. E, lamentavelmente, o que os une hoje é o tema da corrupção. Nossos povos precisam se abraçar. E os cozinheiros podem fazer muito neste sentido, abrindo restaurantes peruanos no Brasil e vice-versa. No meu caso particular, não avançamos mais, porque nossos sócios preferiram ser mais conservadores e esperar. Mas o momento chegou, e provavelmente na metade deste ano já retomemos com força, ao menos para abrir um Barra Chalaca no Brasil, na ideia de levar a autêntica cultura popular peruana para o Brasil.
Que chefs brasileiros você aprecia?
Fui um dos primeiros a convidar chefs do Brasil ao Peru, para tentar criar uma irmandade com objetivos comuns. Hoje, me dá gosto ver pessoas como Jefferson Rueda com tanto êxito, é alguém sensível, humano, um artesão. Levou anos para ser reconhecido, com a esposa maravilhosa que tem, Janaína. Há também a batalha de Alex Atala na Amazônia, e às vezes, de longe, não entendemos bem as críticas que recebe em seu próprio país. Ele exerceu durante anos a liderança para fazer da alta cozinha brasileira uma janela para o país, e foi fundamental para os chefs brasileiros que, hoje, estão lutando para ter um espaço no mundo. Gosto muito da família Troisgros, são filhos adotados do Brasil. Me dá angústia quando começo a pensar na imensidão do Brasil e em tudo o que ainda há por descobrir, com mil produtos, receitas.O Brasil ainda tem muitas histórias novas a contar, e isso é fascinante.