Atração da Flip, Leïla Slimani lança no Brasil seu premiado romance

“Quando mulheres, em Paris, defendem o direito de serem importunadas, elas não se dão conta de o que é viver em cidades como Casablanca ou Cairo”. Fotos ©Fernando Eichenberg

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARISLeïla Slimani recebe a reportagem em seu apartamento parisiense, às 9h da manhã, com seu bebê no colo e logo se desculpa, avisando que a babá está para chegar. A imagem não poderia ser mais emblemática. Seu romance “Canção de ninar”, lançado este mês no Brasil (Ed. Planeta) e vencedor há dois anos do prestigiado prêmio literário Goncourt, o mais importante da França, gira em torno do assassinato de duas crianças por sua babá, numa história inspirada de um fato real ocorrido em Nova York, em 2012.

Com cerca de 600 mil exemplares vendidos na França e traduzido em 40 idiomas (best-seller nos Estados Unidos e na Inglaterra), o livro catapultou a jovem autora de 36 anos (nascida em Rabat, no Marrocos, e parisiense desde os 17 anos de idade) a um posto de destaque na biblioteca contemporânea francesa. Antes de “Canção de ninar”, Slimani havia publicado “No jardim do ogro” (Ed. Gallimard), em que narra as desventuras de Adèle, uma mulher viciada em sexo. E depois, lançou “Sexo e mentiras – a vida sexual no Marrocos” (Ed. Les Arènes), acompanhado de uma HQ baseada no mesmo livro, com depoimentos sem tabus de jovens sobre a opressão sexual no país magrebino.

Escritora plebiscitada pelo público e elogiada pela crítica, 12ª mulher a vencer o Goncourt em 114 anos de existência do prêmio, e atração da próxima Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Leïla Slimani, que recusou o cargo de ministra da Cultura do governo Emmanuel Macron, é também uma feminista assumida e ativa, não hesitando em intervir nos debates e polêmicas contemporâneas sobre a questão da mulher. As páginas de seu próximo romance deverão começar a ser preenchidas em meados deste ano. Enquanto isso, escreve uma peça de teatro, que terá um consultório médico como cenário e o aborto como tema.

“Canção de ninar” trata das ambiguidades da complexa relação entre pais e babás, mas também da luta de classes, a partir de um casal moderno que é confrontado à diversidade social. Poderia explicar?

Sempre pensei que a babá era um personagem muito interessante para um romance. É alguém que tem um lugar à parte, vive na casa, faz parte da intimidade sem ser um membro da família, e que tem uma outra vida fora dali. É alguém que, às vezes, ensina as crianças a caminhar, as ouve falar pela primeira vez. Fui criada por uma babá no Marrocos, e penso que deve se assemelhar um pouco ao Brasil, na forma das relações, onde as babás em geral vêm de um meio desfavorecido, há uma grande diferença social. O estranho nesta relação é que não há verdadeiramente regras. Tenta-se fazer o melhor. Há uma intimidade, mas ao mesmo tempo se é um empregador e um empregado. É uma relação de dominação, mas não é sempre o mesmo que domina. O patrão domina porque tem o dinheiro, mas a babá tem poder sobre as crianças. E este poder é imenso.  Quando fiz minhas pesquisas para o livro, seguido ouvi amigas dizerem: “Não ouso dizer para a babá que não fiquei contente ontem, porque não quero que ela se vingue nas crianças”. É uma relação rica para um romance, porque tudo perpassa, o econômico, o social, o cultural, a maternidade, a questão de gênero – a relação entre mulheres. Isso que me motivou.

Você se disse “fascinada” pela descoberta da organização econômica e sociológica desta relação.

É uma relação fascinante, que existe desde a Antiguidade. Nas peças do teatro grego, já haviam babás para cuidar das crianças. As mulheres sempre partilharam a educação dos filhos, não é uma invenção moderna. As burguesas o faziam para levar sua vida burguesa, e as operárias e camponesas deixavam seus filhos com uma outra mulher para irem trabalhar. E nesta relação, há algo de muito ambíguo, porque a mãe quer que seus filhos amem a babá, mas não demais. E é a única relação salarial no mundo baseada no amor. A babá é paga para amar e ser amada. A prostituição é baseada no sexo, não nos sentimentos.

As mulheres são protagonistas em seus romances ou ensaios. Você se define como uma feminista “visceral”. Que feminismo você defende?

Um feminismo universalista. Procuro combater, em primeiro lugar, essa espécie de relativismo cultural, de pessoas que defendem o feminismo adaptado a cada cultura. Feminismo com o véu, com a excisão, para mim isso é inaceitável. Acredito num universalismo de direito. A barbárie, o estupro, a violência não são culturas. Não somos nossa cultura, mas somos nós que a fazemos. O feminismo deve ser construído. E penso que deve ser inclusivo, ou seja, incluir os homens. Ao lado da revolução feminina, deve haver uma revolução masculina. É preciso que o homem redefina seu lugar no mundo. E redefina o que é ser um homem, um pai, a virilidade. Passa por aí o sucesso da igualdade entre homens e mulheres. Meu feminismo é também o da solidariedade. Não é porque vivo em Paris, que esqueço que numa grande parte do mundo as mulheres são bem mais vítimas.

“Para mim, há duas literaturas: a boa e a ruim. Não penso que exista uma literatura feminina”.

Sua mãe definiu Adèle, protagonista de “No jardim do ogro”, como uma «Madame Bovary X». Por quê?

Porque é um romance sobre um tema bastante clássico, a ociosidade feminina, ou seja, a mulher casada que se entedia. É o tema de “Ana Kariênina” (Liev Tolstói), de “Madame Bovary” (Gustave Flaubert), de “Thérèse Desqueyroux” (François Mauriac). E “X” porque é uma mulher que não vai buscar o amor e a paixão, como Madame Bovary ou Anna Kariênina, mas vai procurar se satisfazer pelo sexo, numa relação que pode ser definida como pornográfica, na medida em que é bastante crua, excluída de sentimentos, um pouco absurda no sentido existencial.

Quando você fez a promoção do livro no Marrocos e ouviu desabafos de jovens, surgiu a ideia do ensaio sobre a miséria sexual em seu país natal.

Quando se é uma jovem no Marrocos, se tem apenas duas escolhas: virgem ou puta. Como não há nuances, uma vez que a virgindade foi perdida, não importa o que se faça, já se passou para o outro lado. Isso incita as pessoas a terem uma sexualidade desordenada, demasiado apaixonada, para compensar essa frustração e esse interdito. E é uma sexualidade que está sempre na mentira, pois se diz “faça o que quiser, mas escondido”. O fato de ter sempre que mentir leva com que se tenha no interior o sentimento de que não se faz algo bom, mas vergonhoso. Adèle tem esse tipo de sentimento, ela tem vergonha, é atrapalhada, está mal. E nisso se assemelha a muitas jovens marroquinas.

Para você, quando se é uma mulher no Marrocos, se é obrigada a viver numa perpétua mentira. Há sinais de mudança?

O surpreendente é que evolui no discurso. Hoje, temos, inclusive, dirigentes que dizem que não vão mais interpelar as pessoas em suas casas. Ou seja, de uma certa forma dizem que se os homossexuais fizerem o que quiserem em casa, nada têm a temer. Por um lado, podemos dizer que é algo bom, pois se vai proibir a polícia de arrombar uma porta. Mas por outro lado, é considerar que a mentira está no centro da lei e do modo de vida das pessoas. É como dizer: “Façam o que quiserem, mas o que vocês fazem não é bom”. Filosoficamente é algo bastante grave. E não penso que se pode formar verdadeiros cidadãos e uma verdadeira democracia quando se coloca isso na cabeças das pessoas, em particular, de adolescentes. Se constrói uma dicotomia entre o corpo e o espírito. Não se valoriza o prazer, o amor, não se fala nunca de sexualidade de maneira positiva. Na primeira vez em que fui ao Brasil, foi um imenso choque positivo ao ver a relação ao corpo, ao amor, à sexualidade, à sedução, à dança. Está por tudo, se vê, se sente. E nós, é exatamente o inverso, tudo é escondido e vergonhoso.

Você critica um desconhecimento de que a misoginia e o patriarcado são partilhados por outras sociedades além do mundo árabe-muçulmano.

Isso é engraçado. Quando meu livro foi publicado, dizia a todo mundo: “É preciso liberar a palavra das mulheres”. Se fiz o livro em forma de depoimentos, é porque elas precisam se reapropriar da palavra, e que digam “eu”. Quando se diz “eu”, nos reapropriamos de nosso destino, de nossa dignidade e de nossa história. E quatro meses depois, com o caso Harvey Weinstein e o hashtag #metoo, se começou a dizer na Europa: “As mulheres devem liberar a palavra. Talvez os homens ocidentais não sejam tão gentis e perfeitos assim”. Quando houveram as agressões em Colônia (Alemanha), se disse que era devido ao fato de que se tratavam de muçulmanos. Sim, há um problema entre o mundo muçulmano e o sexo, mas isso não explica tudo. Há, antes, o problema do patriarcado, que é universal. E fico contente que as pessoas começam a se dar conta disso.

Para você, o manifesto de 100 mulheres, co-assinado por Catherine Deneuve, que aponta um exagero nas denúncias de agressões sexuais e reclama o direito de as mulheres serem importunadas pelos homens, foi totalmente inoportuno. Você reivindica o direito de não ser importunada.

Sim, porque a questão do espaço público é muito importante. Eu cresci no Marrocos, um país em que você, como mulher, se questiona quando decide caminhar sozinha na rua, porque nem sempre é simples. Você pode ser insultada, assediada, apalpada. Quando mulheres, em Paris, defendem o direito de serem importunadas, elas não se dão conta do que é viver em cidades como Casablanca, Kinshasa ou no Cairo, em que não pode atravessar seu bairro sem o véu. O direito de não ser importunada é o direito de não ser considerado como um intruso no espaço público. É o direito de ter um corpo que é seu e de mais ninguém. Penso que houve uma forma de leviandade e de desenvoltura da parte dessas mulheres, e uma falta gritante de solidariedade em relação à todas as demais para quem é muito difícil de existir na rua.

Você acredita que o movimento nascido a partir do #metoo terá resultados?

Sim, estou convencida. Porque há uma tomada de consciência maciça. E também de homens. Penso que o medo está trocando de lado. Há homens estão bem mais atentos ao que dizem e ao que fazem, porque simplesmente têm medo das consequências. E mesmo em países onde isso não ocorreu de forma tão intensa como nos Estados Unidos e na França, apesar de tudo as pessoas ouvem falar e se dão conta de que há algo acontecendo. Penso que é algo importante que vai provocar mudanças, e também para nossos filhos. A próxima geração é que vai realmente mudar as coisas.

Segundo você, muitas mulheres interiorizaram um certo número de normas do sistema patriarcal…

Certamente. Nós interiorizamos todas essas normas. Em “Canção de ninar”, interiorizamos a culpabilidade, o fato de que a mãe é a pessoa indispensável na família, a necessidade de ser perfeita.

Você defende uma literatura feminina ou acredita que existe apenas literatura?

Para mim, há duas literaturas: a boa e a ruim. É tudo. Não penso que haja uma literatura feminina. Mas é verdade que a literatura sofreu a falta de vozes femininas que pudessem testemunhar o que é ser uma mulher, no olhar do mundo através da condição de uma mulher. Nos séculos XVII, XVIII e XIX, houve algumas mulheres, mas eram muito poucas comparadas ao grande número de homens. Hoje, felizmente, estamos recuperando isso. Mas não se trata de literatura feminina.

Por que, para você, a literatura é um ato subversivo, não importa o que se escreva?

Porque é a coisa mais livre do mundo. Pode-se tudo fazer. Na literatura não há nenhum limite. Pode-se falar de tudo, do mal, da pedofilia, do estupro, da violência. Pode-se escolher como personagem principal um personagem sanguinário e fazer o leitor se apegar a ele. É um espaço de liberdade absoluta, e amoral, não se está ali para julgar as pessoas, não é um tribunal, e é por isso que é muito subversivo.

Você sempre teve um espírito rebelde?

Sempre fui assim, desde pequena. Quando tinha quatro anos, um dia meu pai gritou comigo, e respondi de maneira muito insolente. Ele me disse: “Não se contesta o pai”. Eu repliquei: “A boca é minha, digo o que eu quero”. E meu apelido na infância virou “A boca é minha”. Sempre fui assim. Nunca tive medo da autoridade. Sempre pensei que se podia discutir, debater, e que minha opinião não valia menos do que a dos outros. Sempre fui muito apegada à liberdade.

Por que, como mencionou certa vez, seus convidados ideais para um jantar seriam as escritoras Virginia Woolf, Toni Morrison e Joumana Haddad.

Porque são mulheres que me surpreendem. São mulheres livres, e adiante de seu tempo. São também mulheres melancólicas. Toni Morrison me marcou enormemente. Ela faz algo que adoro: obriga o leitor a ser ativo. Seus romances mexem com a gente, nos perturbam. Ela joga muito com a indeterminação da cor, por vezes não se sabe se seus personagens são negros, brancos. Isso me inspirou também em meus jogos sobre as identidades. Virginia Woolf é uma mulher extraordinária. Li muito seus diários. Ela é ao mesmo tempo muito profunda, torturada, egoísta, generosa, narcísica. E Joumana é muito engraçada, rebelde e corajosa, num país em que não é fácil sê-lo. Acho que nos divertiríamos muito as quatro juntas (risos).

Você é também melancólica?

Sou muito melancólica. Mas como todas as pessoas muito melancólicas, gosto muito de rir.

E você também se define como solitária…

Muito solitária. Acho que o que mais gosto na vida é estar só. Adoro estar com meus filhos, obviamente, mas mais envelheço, mais aprecio a solidão. Acho que é Marcel Proust que dizia: “Só sou verdadeiro só”. Penso que é totalmente verdade. Só, para mim, é perfeito.

Como se sente sendo “100% francesa e 100% marroquina”?

Para mim, é algo natural. Não é complicado, e penso, inclusive, que poderia ser muitas outras coisas. Há muitos lugares em que me sinto do país. Quando estive em férias no Brasil, muitas vezes pensaram que era brasileira. E poderia muito bem me sentir brasileira. Ou italiana na Itália. Cresci desta forma, na ideia de que temos uma identidade nacional, escrita em nosso passaporte, mas penso que é muito importante para cada ser humano acrescentar a isso um componente essencial: o pertencimento à grande família humana. Sinto essa proximidade com os outros. Estive na Índia há um mês, passeava em Nova Déli, e me sentia pertencer aquele mundo, mesmo que não compreendesse nada do que faziam, de sua religião. A identidade étnica não é algo que me interessa.

Conhece a literatura brasileira?

Um pouco. Um dos autores que me marcou bastante foi Jorge Amado. Gosto muito na literatura brasileira em geral a relação ao corpo, à natureza. Aprecio muito também Clarice Lispector.

Você não aceitou o convite do presidente Macron para ser ministra da Cultura, imagino, em parte, porque teria de suspender sua carreira de escritora…

E porque não poderia mais ser livre nem estar só. Então, não era possível (risos).

Mas aceitou ser representante do governo para a Francofonia, hoje ainda percebida como um instrumento dos tempos do colonialismo.

Penso, justamente, que é preciso mudar isso. No fundo, a francofonia é uma grande chance para se defender uma nova visão de mundo. E uma nova visão da cultura da língua francesa. É um idioma que vive nos cinco continentes, no Caribe, no Magrebe, no Congo, no Camboja, no Canadá, na Suíça. É uma língua que não pertence mais à França. É importante para alguém como eu, que é universalista, dizer o quanto é possível partilhar por meio de uma língua, e que através de uma sonoridade, de um humor, se pode criar um espaço comum de diálogo, mantendo nossas diferenças e diversidade.

O que você pensa do governo Macron?

Após dez anos que não foram fáceis, em que não podia me reconhecer em nossos dirigentes, hoje temos o sentimento de uma mudança, de que alguma coisa se passa, e de que a França é um país que pode se reformar, ser jovem e nos surpreender. É um novo fôlego, e faz bem a todo mundo. Vamos ver…