“ítaca”, a nova odisseia de Christiane Jatahy em Paris

Cena de “Ítaca – Nossa Odisseia 1”, de Christiane Jatahy. Fotos: © Elizabeth Carecchio 

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A história de Ulisses e de Penélope, narrada em versos no clássico da literatura grega “Odisseia”, de Homero, acaba de ganhar uma versão brasileira nos palcos da França. A célebre epopeia é a fonte de inspiração do mais novo espetáculo da diretora carioca Christiane Jatahy, “Ítaca – Nossa Odisseia 1”, que estreou sexta-feira no espaço Ateliers Berthier do Odéon-Théâtre de l’Europe, em Paris. A montagem mantém o DNA da criadora, constituído do permanente diálogo entre dramaturgia e cinema, realidade e ficção, num teatro político que explora os limites fronteiriços entre a cena e o público.

Nos cantos de Homero, Ulisses parte combater na Guerra de Troia, e num périplo repleto de desventuras leva quase duas décadas para retornar à ilha de Ítaca, onde deixou sua mulher, Penélope. Nesta longa espera, Penélope é cortejada por vários pretendentes, mas, esperançosa na volta do marido, resiste ao assédio por meio de diferentes artimanhas. Já em sua obra, Jatahy transporta a odisseia grega para os dias de hoje, em reflexões sobre a guerra, a violência, as migrações, os refugiados, o exílio, a questão feminina ou o amor, sem ignorar seu país natal.

– Não tem como ler a “Odisseia”, hoje, sem pensar em tudo o que está acontecendo no mundo, nas disputas de poder, no estado de guerra permanente. E “Ítaca”, para mim, é completamente inspirado no Brasil, mesmo que o país não seja citado. A voracidade, a ganância, o comer e beber tudo, a destruição são imagens muito fortes na “Odisseia”. São ratos devorando um país. É o que vivemos hoje: muitas ratazanas devorando nosso país – diz a diretora, num intervalo dos ensaios do espetáculo.

“‘Ítaca’, para mim, é completamente inspirado no Brasil”. © Estelle Valente

Sem cortar raízes com o Brasil, Jatahy tem multiplicado suas temporadas europeias. Atualmente, é “artista associada” do Odéon-Théâtre de l’Europe, mas também do centro cultural parisiense Centquatre, do Teatro Nacional Wallonie-Bruxelas e do Teatro Nacional de Genebra. Este ano, foi escolhida como o talento convidado da bienal Artista na Cidade, de Lisboa: entre maio e novembro, seu repertório será apresentado em diferentes espaços culturais da capital portuguesa.

– É o artista ocupando uma cidade, e a cidade vendo o trabalho deste artista. A cada dois anos, um nome é selecionado, e antes de mim houve Anne Teresa De Keersmaeker (Bélgica), Tim Etchells (Inglaterra) e Faustin Linyekula (Congo)- diz.

No ano passado, Jatahy se tornou o primeiro nome brasileiro a dirigir uma criação na Comédie Française, onde apresentou “A regra do jogo”, baseada no filme homônimo de Jean Renoir. Na Alemanha, no Thalia Teater, encenou “Na solidão dos campos de algodão”, de Bernard-Marie Koltès. E sua trilogia “Julia” (2011) – adaptação de “Senhorita Julia”, de August Strindberg -, “E se elas fossem para Moscou?” (2014) – criada a partir da obra “As três irmãs”, de Anton Tchékhov – e “A floresta que anda” (2015) – inspirada em “Macbeth”, de William Shakespeare – continua em turnês por festivais internacionais.

Já em 2019, criará no Brasil, numa produção do Sesc-SP, “Nova Ítaca”, sequência do atual espetáculo, que será apresentada depois no Festival de Avignon, na França.

– Há esta sensação de que também estou numa certa odisseia, numa constante travessia. Você começou esta entrevista me perguntando onde era, hoje, minha casa, e de alguma forma tem a ver com isso. Quando penso em casa, penso no Brasil, no Rio de Janeiro, e neste momento em que estou longe, me sinto muito perto. É paradoxal falar isso enquanto estou fazendo tantas coisas fora. Mas é uma maneira de eu falar aqui do que está acontecendo lá. Minha Ítaca está no Brasil, para o bem e para o mal.

“Ítaca” contém todos os elementos de seu processo criativo: um palco central, dividido em três espaços, uma plateia bifrontal, e a interação de dramaturgia e cinema. Mas diferentemente de espetáculos precedentes, desta vez são os próprios atores que filmam em cena.

– Numa parte, os atores atuam na água, que vai surgindo do chão e invadindo o palco. Misturo o artesanal com a tecnologia, sempre inventando dispositivos. Não trabalho com a espetacularização, mas com símbolos. E, no fim, tudo é direcionado na relação com os atores – explica.

O diretor do Odéon-Théâtre de l’Europe, Stéphane Braunschweig, conta ter sido seduzido ao descobrir o trabalho de Christiane Jatahy, e justifica seu convite para que a brasileira tenha se tornado um dos quatro artistas associados do teatro:

– Ela propõe uma verdadeira experiência, que convoca o imaginário, os sentidos, e também a inteligência, porque seu trabalho é sempre muito refletido e nos coloca em relação com o mundo real. Não se é um espectador passivo. Em “Ítaca”, estão presentes as guerras, que produzem migrações, e o que isso toca no íntimo, pois há também histórias de amor. Ela vem do Brasil, se inspira em grandes textos e mitos europeus, mas faz um teatro aberto para o mundo. E gosto muito do trabalho que ela faz com seus atores, principalmente com estas três artistas brasileiras, de uma vitalidade incrível e uma grande capacidade de improvisação.

No elenco, está o trio feminino brasileiro que vem atuando em criações de Jatahy: Julia Bernat, Stella Rabello e Isabel Teixeira. Elas contracenam com mais três atores francófonos: Karim Bel Kacem, Cedric Eeckhout e Matthieu Sampeur. Os seis atores interpretam diferentes facetas de quatro personagens da “Odisseia”: Ulisses, Penélope, os pretendentes e a ninfa Calipso.

Há 11 anos trabalhando com a diretora, Stella Rabello acredita que esta é a mais ousada criação de Jatahy:

O trabalho dela lida com o risco, mas este é realmente o mais arriscado, e onde sua escrita é muito forte. O espetáculo é grandioso, visual, visceral. Há os temas da relação física da guerra e da opressão homem-mulher. O espaço é mais árido e perigoso. E tecnicamente, fazemos tudo, operamos o som, mexemos no cenário, filmamos – resume.

Para Julia Bernat, há sete anos nos palcos de Jatahy e única atriz a participar de todas as criações da última trilogia, “Ítaca” trata de odisseias “homéricas, pessoais e imaginárias”.

– É um espetáculo superaberto para cada espectador encontrar o que lhe tocar pessoalmente. E acho que tem a ver com este momento que estamos vivendo, no mundo inteiro. Nos outros projetos da Chris havia este lado político, mas acho que, hoje, na vida pessoal é impossível não estar sendo atravessado politicamente, mesmo para quem é alienado. Existe um lado muito trágico, mas também um lado positivo que está surgindo disso tudo.

Isabel Teixeira, 30 anos de carreira, quatro anos de colaborações com a diretora carioca, define o espetáculo como “violentíssimo” e, neste sentido, muito atual:

– É uma tentativa de um retrato do que vivemos hoje, que é cruel. Mas por mais pesada que seja, a peça traz uma esperança amorosa, que eu, atuando, sinto. “Ítaca” trata do não ouvir, da guerra, mas tem também uma coisa muito forte da magia do encontro e da relação humana.

Christiane Jatahy assume abordar em seu novo espetáculo o amor “em seu sentido mais amplo”: o amor familiar, entre um homem e uma mulher, como memória, refúgio ou porto.

– Existe a Penélope que espera, que se revela, que luta e que sofre a ponto de não querer mais. Existe o Ulisses amante, apaixonado, mentiroso. Eu multiplico e esfacelo estas figuras nos atores. E a casa é um aspecto do amor, da tentativa de reconstrução amorosa. “Nova Ítaca” vai estrear no Brasil, e isso é muito importante para mim.

“Ítaca” permanecerá em cartaz até 21 de abril em Paris, e depois segue em turnê por Lisboa, Bruxelas, Atenas e no festival Ruhrtriennale, na cidade alemã de Bochum.