França trata como ameaça a crescente atividade de grupos da ultradireita no país

Manifestação do grupo Geração Identitária contra sua dissolução decretada pelo governo. ©AFP

FERNANDO EICHENBERG / O GLOBO

PARIS – A profusão de grupos da ultradireita, oficialmente declarados ou imersos na clandestinidade, se tornou alvo de maior vigilância por parte do governo e dos serviços de inteligência franceses. Empunhando bandeiras contra a imigração, o islã ou o “globalismo”, uma miríade de facções integradas por identitários, ultranacionalistas, soberanistas, racistas, antissemitas, neonazistas ou neofascistas agem de forma crescente, principalmente na rede da internet, impulsionando a radicalização e representando uma potencial ameaça terrorista.

Em janeiro, o coordenador nacional de Inteligência, Laurent Nuñez, ao manifestar sua preocupação com a “rápida progressão dos supremacistas” no país, revelou que desde 2017 foram desbaratados cinco atentados projetados pela ultradireita em território francês. Já no último dia 3, em reunião do Conselho de Ministros no Palácio do Eliseu, foi oficializada a dissolução do grupo da direita radical Geração Identitária, acusado de propagar “um discurso de ódio incitando a discriminação ou a violência contra indivíduos com base em sua origem, raça e religião”. Para o ministro do Interior, Gérald Darmanin, o movimento, “por sua forma e organização militares”, se assemelhava a uma “milícia privada”.

Coautor do livro “La Poudrière” (barril de pólvora, ed. Grasset), Jean-Michel Décugis acompanhou durante um ano as atividades na internet de grupos da extrema direita e ultradireita francesas, e manteve encontros com integrantes das diferentes organizações. Segundo ele, existe hoje uma “verdadeira ameaça” da ultradireita sobre a sociedade francesa. Em primeiro, por causa de sua “capacidade exponencial de mobilização na internet”, amplificando a ressonância e a visibilidade de suas mensagens, muitas vezes manipulando e criando informações.

– O segundo fator é a constante criação de novas facções na clandestinidade, formadas por membros que não pertencem mais ao perfil de skinheads e tatuados. São pessoas inseridas na sociedade, entre 40 e 50 anos, também ex-policiais ou militares, e que se organizam de forma clandestina para pegar em armas. Os serviços de inteligência temem que emerja destes grupos um “lobo solitário” que passe à ação, a exemplo de um Brenton Tarrant, autor do atentado que fez 51 vítimas em Christchurch, na Nova Zelândia, em 2019.

O decreto oficial de dissolução do Geração Identitária menciona, inclusive, que o grupo ultradireitista “recebeu doações” de parte de Brenton Tarrant. Em dois dos atentados abortados desde 2017, as autoridades encontraram o explosivo TATP (triperóxido de triacetona), comumente utilizado em ataques terroristas.

– Não é um explosivo de fácil manipulação, e o fato de que estes grupos possam tê-lo fabricado é algo inquietante – alerta Décugis. – Na ultraesquerda não se está neste nível, a estratégia de desestabilização é feita em manifestações, vide as ações dos black blocs, mas não se chega na violência via atentados. Na ultradireita, há chefes identificáveis, existe uma verticalidade, e na ultraesquerda é algo mais difuso.

Em 2019, o presidente Emmanuel Macron ordenou a dissolução de três grupos da direita extremista: Bastion Social, Blood and Honour e Combat 18.  Para Décugis, os instrumentos legais de que o Estado dispõe para combater estas facções nem sempre são eficazes:

– Quando são dissolvidos, estes grupos conseguem, apesar da lei, se recompor criando uma página com um novo URL. O Bastion Social ressurgiu por meio do Zouaves, um conhecido movimento parisiense. O líder do Democracia Participativa, Boris Le Lay, foi condenado sete vezes pelos tribunais franceses. Mas vive no Japão – é casado com uma japonesa -, e continua de lá a gerir um site. Agora mesmo encontrei na web uma nova página do Democracia Participativa.

Elo Político

A pouco mais um ano das próximas eleições presidenciais na França, estas organizações também constituem um viveiro para o partido de extrema direita Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen, hoje principal adversária à reeleição de Emmanuel Macron. As pesquisas mais recentes apontam os dois nomes empatados na margem de erro no segundo turno. Apesar de não haver um vínculo oficial destes grupos com a RN, existe uma “porosidade importante”, diz Décugis.

– Geração Identitária era a parte visível da ultradireita política, e ealguns de seus membros foram eleitos pela RN. Segundo os serviços de inteligência, a base militante da direita extremista gira em torno de 3 mil membros, com cerca de algumas centenas de indivíduos vigiados de perto. Penso que este número é subestimado. Mas além disso o movimento alcançou um impacto importante na sociedade, infiltrou as ideias e se impôs no debate. Hoje, há políticos e personalidades que retomam as ideias da ultradireita em seus discursos, como a teoria da “grande substituição” de populações europeias por imigrantes.

Segundo ele, as manifestações de 17 de novembro e 1° de dezembro de 2018 em Paris, quando coletes amarelos “apoiados por integrantes da ultradireita” ameaçaram invadir o Palácio do Eliseu e saquearam o Arco do Triunfo, podem ser comparadas ao recente ataque ao Capitólio por extremistas da direita nos Estados Unidos.

– O contexto americano é particular, mas também temos nossos militantes com gorro de pele de urso e chifres. Aqui, vemos manifestantes com tatuagem de javali, símbolo da ultradireita. Um javali foi pichado no Arco do Triunfo no dia dos vandalismos. Hoje, não somente há uma banalização das ideias da ultradireita na nossa sociedade, como também uma ameaça de ato terrorista.

Feminismo identitário

Alice Cordier, presidente do grupo feminista Nêmesis, identificado com a denúncia de violências contra as mulheres praticadas por homens originados da imigração, diz nunca ter visto problema em agradecer o apoio público recebido de Geração Identitária e de partidários da RN à sua causa, embora ressalte que, apesar de objetivos comuns, a raiz de seu combate é diversa.

– Tememos essa dissolução do Geração Identitária, pois poderemos ser os próximos. São dissoluções sob argumentos políticos. E é perigoso quando o político assume o lugar do jurídico, porque leva a desvios e a fazer calar as pessoas. O Geração Identitária não agrada a todos, mas é essencial para alertar para o problema da imigração.

Criado em outubro de 2019, o Nêmesis, que reivindica cerca de 200 aderentes na França, reclama o pioneirismo no “feminismo identitário”, critica as feministas mainstream e defende a aplicação de estatísticas étnicas para as violências contra as mulheres. Para Alice, o feminismo em geral é demasiado anti-homem e ideologicamente vinculado à esquerda:

–  E a esquerda não questiona a imigração, a promove. Os códigos dos imigrantes em relação às mulheres são diferentes, isso provoca um choque cultural e os dramas que vivemos no nosso cotidiano. Foi divulgado agora um estudo da Universidade de Lund mostrando que 59,3% dos casos de agressões sexuais na Suécia são cometidos por imigrantes ou filhos de imigrantes. Não falar disso é o efeito de uma bomba-relógio. O movimento #MeToo surgiu porque durante anos se escondeu que no mundo do cinema havia abusos, e o mesmo pode ocorrer com a imigração.

Para a pesquisadora Florence Rochefort, especialista nos combates das mulheres pela igualdade ao longo da História, o Nêmesis, via a luta feminista, ataca a imigração e o islã, “os dois temas mais importantes da extrema direita na França e na Europa”.

– Já havia um feminismo de extrema direita nos anos 1920. Eram feministas cristãs bastante direitizadas e fortemente antissemitas. Impressiona é que a opção política é absolutamente dominante em relação à proposição feminista. Mas se apropriar deste terreno é, ainda assim, algo novo, diz a historiadora, que lançou recentemente o ensaio “Ne nous libérez pas, on s’en charge – une histoire des féminismes de 1789 à nos jours” (Não nos liberem, nós nos encarregaremos – uma história do feminismo de 1789 até hoje, ed. La Découverte)

Segundo ela, trata-se de uma política desenvolvida principalmente pela direita americana e jovens especialistas em comunicação, que não possuem um enraizamento histórico com a extrema direita tradicional.

– Há um estratégia de entrar no jogo midiático, desestabilizar, provocar escândalo. É algo preocupante, porque estamos em um momento em que estas correntes ultra se tornam bastante ativas. E como vivemos um período de crise econômica e sanitária no mundo, e com grandes ondas de movimentos populistas, isso provoca medo e inquieta em relação ao que revela.

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