França revê memória da Guerra da Argélia, buscando reconciliação com ex-colônia

30 de julho de 1957 – Argelinos presos sob ordens do coronel francês Bigeard, na antiga Praça do Governo, na capital Argel. o local atualmente é chamado de Praça dos Mártires . ©AFP

FERNANDO EICHENBERG/ O GLOBO

PARIS – A Guerra da Argélia (1954-1962), que culminou na independência do país africano após 132 anos de dominação colonial da França, deixou marcas até hoje indeléveis em ambos os lados, com visões divergentes do passado. Sessenta anos depois, a guerra de liberação se mantém como fonte permanente de conflito entre Paris e Argel, instrumentalizada tanto pela extrema direita e o islamismo político franceses como pelos regimes autoritários argelinos. O presidente Emmanuel Macron, face aos repetidos fracassos de seus predecessores, lançou seu próprio plano para apaziguar a tensão memorial entre os dois países. Especialistas ouvidos pelo GLOBO, porém, apontam inúmeros obstáculos em sua ambição de normalizar a relação histórica entre a ex-potência colonial e seu antigo território.

Macron solicitou ao historiador Benjamin Stora um relatório, entregue no dia 20, com proposições de ações concretas e simbólicas para promover a reconciliação com a Argélia em torno do conflito colonial, considerado como o último grande tabu da História da França após o país ter enfrentado, a partir dos anos 1970, o passado colaboracionista da República de Vichy na Segunda Guerra. Entre as sugestões de Stora, conhecido por suas pesquisas sobre o império colonial, a imigração e o Magrebe contemporâneo, está a criação de uma comissão “Memória e Verdade”, encarregada de formular “iniciativas comuns entre a França e a Argélia sobre as questões de memória”.

Para Luis Martinez, do Centro de Pesquisas Internacionais do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), Macron possui uma “margem de manobra” maior que seus antecessores no Palácio do Eliseu por duas razões. Em 2017, em visita à Argel como candidato à eleição presidencial, definiu o colonialismo como “crime contra a humanidade” e uma “verdadeira barbárie” – o que provocou indignação de políticos franceses. Além disso, como um jovem dirigente de 43 anos, não possui uma relação direta com a Guerra da Argélia. O governo francês, no entanto, descarta um pedido oficial de desculpas pelas violências cometidas durante o período colonial, uma antiga e sempre atual reivindicação das autoridades argelinas.

– Nenhum chefe de Estado foi até o arrependimento e as desculpas por crimes cometidos sob a colonização, simplesmente porque abriria portas extremamente difíceis de gerir no plano da História, da memória e, sem dúvida, das indenizações – diz Martinez. – A França quer resolver o período da liberação, e a Argélia o da colonização. É muito diferente. O que interessa aos argelinos é que a França se manifeste sobre o que fez de 1830 a 1870, por exemplo, em 40 anos de uma colonização violenta, com expropriação de terras, transformação de mesquitas em igrejas e interdição do ensino da língua árabe.

Stora denuncia uma exploração política e social de memórias antagônicas, defende que os dois países criem “novas passarelas” para avançarem juntos, e alega que o pedido de perdão do Japão pelos crimes cometidos na China e na Coreia não aplacaram os ressentimentos entre os países. Para a França, se trata de uma guerra traumática que selou o fim de seu império colonial, e o debate memorial afeta diretamente cerca de 7 milhões de residentes no país: os “pieds noirs” (franceses repatriados da Argélia), os harkis (muçulmanos que lutaram pelo Exército francês) e os imigrantes magrebinos de diferentes gerações.

Para o historiador Nicolas Bancel, especialista em colonialismo da Universidade de Lausanne, são memórias díspares, o que torna a discussão “extremamente sensível”.

– É preciso acrescentar ainda todos os franceses que de alguma forma tiveram uma relação com a guerra, militares, políticos. É um tema bastante inflamável, o que faz com que o trabalho histórico de pacificação de memórias e de superação da Guerra da Argélia seja um pouco similar ao que foi feito com a França colaboracionista do regime de Vichy. É algo inacabado. Macron parece querer sair deste impasse. Se vai conseguir ir até o fim, ignoro. Há muitos riscos.

06 de junho de 19858: o general francês Charles De Gaulle (direita) aperta a mão do general Jacques Massu na sua chegada a Argel, na Argélia. ©AFP

O historiador Pierre Vermeren, da Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne, acredita que a questão memorial franco-argelina “jamais será resolvida”. Em 2005, o artigo de uma lei aprovada no Parlamento francês que evocava o “papel positivo” da colonização suscitou enorme polêmica no país e acabou suprimido pelo então presidente Jacques Chirac. Dois anos antes, o mesmo Chirac havia tentado em vão uma reconciliação ao propor um tratado de amizade entre os dois países, nunca assinado.

– Hoje se está no mesmo lugar – diz Vermeren. – Compara-se com a África do Sul, mas é uma situação muito diferente. Nelson Mandela e Frederik de Klerk promoveram a reconciliação como atores do período do apartheid. O próximo ano marca o 60° aniversário da Guerra da Argélia, e seus principais atores já desapareceram. Estamos na História, não mais na atualidade. São duas nações e duas memórias não compatíveis. Os harkis já disseram que não concordam com o relatório de Stora. É uma utopia pensar que isso será solucionado. A herança infeliz desta história é que há rancores e discursos agressivos. A educação na Argélia é muito nacionalista, religiosa, militarista, heroica e hostil à França. E na França se ensina muito pouco esse período da história.

Na França, a extrema direita, representada pelo partido Reunião Nacional (ex-Frente Nacional), e parte do campo da direita não tardaram a criticar a iniciativa do governo. O prefeito de Perpignan, Louis Alliot (RN), definiu o relatório como “vergonhoso”. Já o deputado independente Joachim Son-Forge disse que “a França não colonizou a Argélia, ela a fundou”.

– É normal – diz Bancel -, pois a extrema direita foi criada sobre os escombros da Guerra da Argélia. A Frente Nacional foi fundada em 1972 com antigos membros da Argélia francesa. Seu lema sempre foi “não perderemos uma segunda vez a Guerra da Argélia”. Pedir desculpas ou mesmo incentivar reaproximações significam capitulações, e nisso a extrema direita não mudou desde 1972.

Já na Argélia, a guerra da independência serviu para legitimar o poder da Frente de Libertação Nacional (FNL), que deflagrou a revolução anticolonial, e é instrumentalizada até hoje, lembra o historiador:

– Os jovens do Hirak (movimento de rebelião pacífica) querem acabar com o monopólio da história da Guerra da Argélia. É muito difícil para um historiador argelino explicar coisas que questionam a FLN, pois a violência não ocorreu apenas por parte do Exército francês. Era legítimo que o povo argelino se livrasse da colonização, mas o preço a pagar foi bastante alto. Além de uma luta pela independência, houve uma guerra civil. E essa herança da violência pesou na forma de governar a Argélia após a liberação, sob uma forma de ditadura, com repressão sistemática da oposição, um serviço secreto ativo e uma sociedade muito militarizada. Há um trabalho memorial histórico a ser feito também pelo lado argelino.

O islamismo político, alvo de Macron com seu projeto de lei contra os separatismos na França, igualmente se nutre do conflito de memórias franco-argelino. “Os islamistas entenderam bem isso, assim como os comunitaristas e os identitários: enquanto se consolidar o vínculo, agora artificial, entre a confissão e a memória da colonização, o islã francês não será francês”, analisou o escritor argelino Kamel Daoud. Para Martinez, esta é a “verdadeira ameaça” no longo prazo, com consequências para os dois lados:

– Acredita-se que que os nacionalistas argelinos sejam os únicos a instrumentalizar a História ligada à colonização, mas há também correntes importantes dos islamismo político na Argélia, entre as quais a Irmandade Muçulmana. Basta ver como o presidente da Turquia, (Recep Tayyip) Erdogan, sempre lembra que a França não tem nenhuma lição a dar em relação ao que fez na Argélia. E a influência do Islã político é hoje bem mais importante na Argélia do que o nacionalismo. Quanto mais se tardar em reconhecer este período colonial, a denunciá-lo e a condená-lo, mais será difícil administrar esta relação no plano diplomático e político.

PRINCIPAIS PONTOS DO RELATÓRIO STORA

– Criação de uma comissão “Memória e Verdade” entre França e Argélia.

– Retorno à Argélia da espada do Emir Abdelkader, herói da resistência à colonização francesa no século 19.

– Reconhecimento pela França do assassinato do advogado e ativista político Ali Boumendjel durante a batalha de Argel, em 1957.

– Publicação de um “guia dos desaparecidos” argelinos e europeus durante o conflito.

– Entrada no Panteão da advogada franco-tunisina Gisèle Halimi, reconhecida por sua oposição à Guerra da Argélia.

– Estudos sobre os testes nucleares franceses no Sul da Argélia (1960-1966) e suas consequências.

– Facilitar a circulação de harkis (argelinos que serviram nas forças paramilitares francesas) e seus filhos entre a França e a Argélia.

– Permitir o acesso dos pesquisadores dos dois países aos arquivos franceses e argelinos; processo mais rápido de desclassificação de documentos secretos.

– Dar maior espaço à História da França na Argélia nos currículos escolares e facilitar o trabalho acadêmico sobre temas memoriais entre os dois países.

– Reativar o projeto Museu da História da França e Argélia, previsto para Montpellier e abandonado em 2014.

Um comentário em “França revê memória da Guerra da Argélia, buscando reconciliação com ex-colônia”

Deixe um comentário