O bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte neste ano de 2021 deflagrou uma disputa entre franceses que defendem festejar seu legado e outros que não veem nenhum motivo para celebrar a histórica data.
FERNANDO EICHENBERG / REVISTA ÉPOCA
PARIS – Em suas Memórias do além-túmulo, o escritor francês François-René de Chateaubriand (1768-1848) escreveu a propósito de seu desafeto Napoleão Bonaparte: “O mundo pertence a Bonaparte; o que o devastador não conseguiu terminar de conquistar, sua fama usurpa. Vivo ele perdeu o mundo, morto ele o possui. (…) Depois de termos sofrido o despotismo de sua pessoa, devemos nos submeter ao despotismo de sua memória”. Suas palavras ecoam neste ano de 2021, marco do bicentenário da morte de Napoleão Bonaparte, um dos mais emblemáticos personagens da História, falecido em 5 de maio de 1821, aos 51 anos, em seu exílio forçado na Ilha de Santa-Helena.
A efeméride deflagrou uma acalorada polêmica na França entre políticos, intelectuais e historiadores. De um lado, os que defendem uma homenagem digna das proezas do “estadista e líder militar”. De outro, os que consideram uma ofensa comemorar o “tirano e ditador”. O primeiro grupo destaca a organização do Estado promovida por Napoleão, pela criação dos códigos civil e penal, de instituições administrativas e do sistema educacional – com reflexos até hoje na França -, e seu status de celebridade histórica mundial. O segundo condena o restabelecimento, sob seu reinado, da escravidão nas colônias francesas – prática que havia sido abolida pela Revolução de 1789 -, a regressão dos direitos das mulheres, suas guerras expansionistas europeias e seus métodos de governança antidemocráticos.
Para o deputado Julien Aubert, do partido de direita Os Republicanos, Napoleão encarna “a vontade política e o gênio francês”, e ignorar o bicentenário de sua morte seria uma “falta contra a nação” e uma negação da “identidade francesa”. “Há hoje um movimento de desconstrução que politiza a história da França e que gostaria de apagar o que não lhe agrada. É insuportável”, denunciou, ao assinar um manifesto com mais de 30 parlamentares de seu campo político. O também deputado e ex-professor de História Aléxis Corbière, da esquerda radical França Insubmissa, replicou em outro texto, alegando que não se trata de “suprimir” Napoleão, mas de alertar para uma certa “‘Napoleãomania’ em torno desta visão autoritária em voga nos tempos atuais”: “A República não pode homenagear oficialmente aquele que foi seu coveiro, pondo fim à primeira experiência republicana de nossa história para criar um regime autoritário”.
A cientista política Françoise Vergès, autora do ensaio A memória acorrentada – questões sobre a escravidão, é uma das vozes mais combativas contra a celebração do bicentenário, definindo Napoleão de “racista, misógino e autoritário”: “Por um lado, a França pode se orgulhar de ter sido o primeiro país europeu a abolir a escravidão em todas as suas colônias, em 1794. Por outro, se tornou o único país em que ocorreram duas abolições, e a segunda vez em 1848, bastante tardia. Em 1802, Napoleão restabeleceu o tráfico de escravos e a escravidão. Enviou tropas a Guadalupe ou ao Haiti para reprimir as revoltas e insurreições”.
“NAPOLEÃO FOI RESPONSÁVEL PELA ORGANIZAÇÃO DO ESTADO, PELA CRIAÇÃO DOS CÓDIGOS CIVIL E PENAL, E DE INSTITUIÇÕES ADMINISTRATIVAS E DO SISTEMA EDUCACIONAL. MAS OS CRÍTICOS LEMBRAM DO RESTABELECIMENTO DA ESCRAVIDÃO, DAS GUERRAS E DO AUTORITARISMO”
Suas reprimendas não se limitam à reintrodução do trabalho escravo. Vergès acusa o Código Civil napoleônico de “instalar a inferioridade feminina e reforçar o patriarcado familiar”, ao colocar as mulheres solteiras e casadas em uma condição jurídica subalterna aos homens, e também ao anular a medida da Revolução Francesa que introduziu o divórcio por consentimento mútuo.
“Napoleão é um contrarrevolucionário que se autoproclama imperador em 1804. Levou a guerra por todo o lado na Europa. Na Espanha, o conflito é terrível, basta ver os quadros de (Francsico de) Goya. Pilhou os museus da Itália e trouxe as obras de arte para a França. Provocou a morte de milhares de jovens franceses na campanha da Rússia. Instalou um regime autoritário e não teve a mínima preocupação republicana. É uma lenda mundial, com um storytelling bem feito, mas é um personagem problemático. Fico estupefata, não há o que celebrar”, desabafa.
A controvérsia não é de hoje, e se insere em uma tradição francesa de difícil enfrentamento de seu passado, vide o atraso em ter reconhecido o colaboracionismo da República de Vichy na Segunda Guerra. Os bicentenários do nascimento de Napoleão, em 1969, e da Revolução Francesa, em 1989, já haviam suscitado acirrados debates. Em 2014, mesmo o ex-primeiro-ministro Lionel Jospin se imiscuiu na discussão ao publicar o ensaio O mal napoleônico, com a tese de que nos 15 anos do Consulado e do Império (1799-1814) Napoleão não serviu aos interesses da França e levou o país à derrocada.
Neste ano, o presidente Emmanuel Macron recebeu relatórios oficiais sobre o papel da França na Guerra da Argélia (1954-1962) e no genocídio tutsi em Ruanda (1994), dois temas tabus da História do país. Já os 150 anos da Comuna de Paris, rebelião popular de 1871 contra o poder conservador emergido da derrota da França para a Prússia, lembrados desde o último dia 18, têm animado sessões do conselho municipal da capital francesa, com troca de farpas entre vereadores da direita e da esquerda.
A cidade de Rouen, de pouco mais de 100 mil habitantes, não escapou da contenda. Em julho de 2020, a estátua equestre de Napoleão erigida desde 1865 na praça em frente à prefeitura foi removida para ser restaurada. O prefeito Nicolas Mayer-Rossignol, no entanto, propôs que o bronze do imperador seja reinstalado em outro local e substituído por uma estátua de Gisèle Halimi (1927-2020), reputada advogada defensora dos direitos das mulheres. Desde então, duas petições, uma a favor e outra contra o retorno da estátua à praça, disputam na internet.
“NA ACADEMIA FRANCESA, HÁ AQUELES QUE CRITICAM O QUE ENXERGAM COMO UMA CAMPANHA DE ‘CANCELAMENTO’ DE NAPOLEÃO, BASEADA NA IMPORTAÇÃO DE PRÁTICAS DE CENSURA COMUNS NAS UNIVERSIDADES AMERICANAS”
Para o historiador Jean Garrigues, autor de Os homens providenciais: história de uma fascinação francesa, as polêmicas contemporâneas são acentuadas por um incremento das “guerras memoriais”. No caso de Napoleão, há, segundo ele, uma “pulsão profunda da sociedade francesa pela figura do homem providencial”. Mas a mentalidade e o inconsciente coletivo dos franceses é “paradoxal e binário”, acrescenta: “Existe também uma ligação muito forte com a democracia horizontal. Nossa história narra este perpétuo equilíbrio entre esta forma de idolatria e de submissão ao homem de exceção e a vontade de uma governança coletiva e democrática. O personagem de Napoleão está na encruzilhada de todas estas tensões”.
A agenda do bicentenário inclui inúmeros eventos, entre colóquios, lançamentos de livros e duas grandes exposições parisienses, na Grande Halle de La Villette e no Museu do Exército do monumento dos Invalides, onde repousam os restos de Napoleão. Em meio à pressão, os curadores da mostra em La Villette esclareceram que a “herança sombria” de Napoleão será também abordada, inclusive com a apresentação pela primeira vez ao público dos documentos originais que restabeleceram a escravidão nas colônias. Restava uma dúvida: o que fará Emmanuel Macron? No início de março, o porta-voz do Palácio do Eliseu anunciou que “haverá uma comemoração por parte do presidente da República”, sem precisar, por enquanto, a forma e o conteúdo. Especula-se que o líder francês poderia usar a proximidade do 10 de maio, Dia Nacional das Memórias do Tráfico, da Escravidão e de suas Abolições, para reconciliar as diferentes memórias.
Para o historiador Thierry Lentz, diretor da Fundação Napoleão, trata-se de uma “boa decisão” do chefe da nação: “O papel dos nossos dirigentes é também o de tentar ao máximo estancar o fermento da divisão. E, ao mesmo tempo, precisamos que tudo isso acabe. É preciso olhar para a História com calma e serenidade, tudo isso aconteceu há 200 anos. Poderíamos discutir sem brigar”.
O historiador teve um convite para fazer uma conferência sobre Napoleão na Escola de Comércio de Nantes anulado de última hora. O motivo que lhe deram foi que “não era bom falar de Napoleão neste momento”. Uma atitude, segundo ele, “triste e covarde”. “É a chegada no ensino superior francês dos métodos americanos de impedir as pessoas de se expressarem, de promover a cultura do cancelamento. É uma especialidade francesa, quase um esporte nacional, querer sempre questionar a História, não para se tentar uma união em torno de uma visão nuançada, mas sobretudo para dividir. No caso da escravidão, se vê que é um tema utilizado pelos grupos tipo Black Lives Matter à francesa simplesmente para censurar”, critica.
Lentz diz que necessitará de “paciência e sangue frio” para enfrentar a “agitação” do bicentenário, compara Napoleão ao imperador Carlos Magno (742-814) e defende que nenhum outro personagem marcou tanto a História da França, da Europa e do mundo: “Ele influiu inclusive no Brasil, pois a independência do país é também consequência da invasão de suas tropas a Portugal”, alega.
Professor de História da Revolução e do Império na Universidade Sorbonne e presidente do Instituto Napoleão, Jacques-Olivier Boudon reivindica “comemorar” e não “celebrar” o bicentenário. “Celebrar é uma espécie de glorificação, o que não sou a favor. Comemorar significa fazer um balanço de suas ações, incluindo todos os aspectos negativos, como as questões do retorno da escravidão, da supressão dos direitos das mulheres e de sua megalomania nas guerras expansionistas e no culto a sua pessoa, na ideia de sobreviver no tempo após sua morte. Não defendo Napoleão, mas o estudo em todas as suas facetas. É um personagem complexo. O que me interessa é aproveitar estes períodos de polêmicas para poder explicar o que se passava na França e no mundo no início do século XIX”.
À parte as querelas entre os grupos pró e contra, Boudon ressalta uma outro legado: a influência cultural de Napoleão ao inspirar os escritores do século XIX. “Sem Napoleão não haveria a Comédia Humana, de Honoré de Balzac, obra na qual é onipresente. Nem A cartuxa de Parma e O vermelho e o negro, de Stendhal, poemas de Victor Hugo ou Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski. Sem falar de Liev Tolstói. Ele está por tudo, mesmo quando os autores não buscavam valorizá-lo. Toda uma parte importante da cultura mundial se nutriu do mito e da lenda de Napoleão. Chateaubriand, seu adversário, o incluiu em suas memórias. Napoleão sabia que o importante era que se falasse dele, mal ou bem. A polêmica de hoje lhe serve. Ele continua a criar problemas”.