ENTREVISTA COM O ESCRITOR MOHAMED MBOUGAR SARR

FERNANDO EICHENBERG/ QUATRO CINCO UM

PARIS – Ao encerrar em Lisboa, em junho, sua longa turnê de 65 shows em nove meses, Chico Buarque voou rumo a Paris para merecidos dias de descanso antes de retornar ao Brasil. Da estante de sua morada na capital francesa, retirou um livro adormecido, que havia ganhado de presente de aniversário no ano passado: La plus secrète mémoire des hommes, do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr. Aberta a primeira página, não conseguiu mais parar a leitura. “É simplesmente maravilhoso! Ele escreve maravilhosamente bem, e além do mais é engraçado, tem humor. Após ler esse livro, não sei como poderei voltar a escrever novamente”, exagerou o escritor laureado com o prestigioso prêmio literário Camões, sem esconder seu vivo entusiasmo.

Sarr não seduziu com sua escrita apenas o escritor brasileiro, mas também o exigente júri do Goncourt, o mais importante prêmio literário francês. A mais recôndita memória dos homens, assim traduzido e recém-lançado no Brasil pela editora Fósforo, foi apontado vencedor do Goncourt em 2021, por unanimidade, e desde então tem acumulado elogios da crítica e conquistado leitores pelo mundo.

Após três romances com temas da atualidade como pano de fundo — o terrorismo islamista em Terra silenciosa (Malê, no prelo), a migração em Silence du chœur (2017) e a homofobia na África em Homens de verdade (Malê, 2022) —, o jovem autor, hoje com 33 anos, produziu um texto de maior fôlego e complexidade. A mais recôndita memória dos homens é uma profunda meditação sobre a escrita, a literatura, a criação, a identidade, o exílio e as conflituosas relações entre a Europa e o continente africano e seu passado colonial, em uma narrativa existencial, política e detetivesca carregada de imaginação, humor e sensualidade, sem nunca abdicar de um estilo original.

A trama se desenvolve em torno de uma incessante busca do percurso do escritor senegalês T. C. Elimane, desaparecido de cena em 1940 após uma campanha de acusações de plágio literário por seu único romance, O labirinto do inumano, publicado em 1938 e tornado um livro cult, venerado e igualmente inencontrável. Em uma singular odisseia, o jovem escritor Diégane Latyr Faye se aventura pelo mundo em 2018 à procura dos passos do chamado “Rimbaud negro”, passando por Dakar, Paris, Amsterdam ou Buenos Aires, cruzando com os mais inventivos personagens fictícios ou invocando figuras literárias do século 20, como o polonês Witold Gombrowicz e os argentinos Ernesto Sábato e Jorge Luis Borges.

Para criar o personagem de Elimane, Sarr assume ter se inspirado na história real  do escritor malinês Yambo Ouologuem, primeiro autor negro a ganhar o prêmio francês Renaudot, em 1968, com apenas 28 anos, pelo então incensado romance Le devoir de violence. Em 1972, no entanto, no auge de sua popularidade, foi acusado de ter plagiado escritores como Guy de Maupassant, Graham Greene ou André Schwarz-Bart. Sem ouvidos aos seus argumentos de defesa, abandonado por seu editor francês — que retirou o livro de venda —, refugiou-se em seu país natal e viveu como um eremita até morrer no esquecimento, em 2017. Sarr não poupa elogios à obra do colega, ao defini-la como “escandalosa” pelo “vigor de sua linguagem” e o “virtuosismo deslumbrante de seu estilo”. Segundo ele, Ouologuem foi atacado, tanto na França como na África, por ter escrito “um grande livro”. Seu fascínio foi incrementado por interrogações sobre o destino maldito do autor: em que estado de espírito ele estava? O que fez depois? Por que permaneceu em silêncio?

Sarr é um esteta da linguagem, pela qual defende seu engajamento político como escritor. A construção de seu romance é labiríntica, alternando a voz do narrador com cartas, trechos de diários ou sobressaltos cronológicos. Para a escrita do premiado livro, assume a influência do escritor chileno Roberto Bolaño, descoberto na leitura de 2666,que o transformou em um “homem e escritor diferente” e um “novo leitor”. Segundo ele, Bolaño lhe permitiu brincar com os gêneros, seguindo um “princípio lúdico de hibridização e fragmentação da linearidade”, em sintonia com a realidade cada vez mais “caótica e preocupante em que vivemos”.

Na reta final de sua “turnê Miss França”, como apelidou com humor seu circuito internacional de promoção do livro, Sarr, que mora em Beauvais, ao norte de Paris, terá de ainda uma maratona pela frente, literalmente. Atualmente, treina para correr uma maratona em outubro de 2024, após as Olimpíadas de Paris, fruto de uma aposta perdida com seu editor, que afirmava que seu livro estaria nas listas dos principais prêmios literários franceses. Ele prefere, no entanto, o futebol, sua primeira grande paixão e um sonho de carreira profissional nos gramados interrompido pelo caminho das letras. Hoje, ainda joga como amador, e já se prontificou a vestir a camiseta do Paristheama, a filial parisiense do Politheama, equipe de Chico Buarque no Recreio dos Bandeirantes.

Sarr encerrou recentemente seu semestre como titular de um ateliê de Escrita Criativa para alunos do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po). “Não pude ir ao Brasil (para o lançamento do livro), é um país que quero muito visitar e também encontrar os leitores. Espero fazê-lo no ano que vem. Por enquanto, é muito repouso, e depois, talvez, recomeçar a escrever, o que já me faz falta”, confessou.

Em A mais recôndita memória dos homens você aborda a literatura e a escrita, e por meio disso o complexo relacionamento entre a Europa e a África. Como você analisa essa relação?

É uma relação muito complicada. Mas o que quis mostrar nesse livro, em resumo, é que a literatura em si mesma não escapa à relação de forças  políticas, e isso há muito tempo. É uma relação assimétrica, na medida em que há, de uma parte, um desconhecimento fundado no sentimento de que aqueles que são dominados não merecem necessariamente serem lidos ou conhecidos. E se assim for, que sejam lidos e conhecidos sob o regime da exotização ou de uma forma de pesquisa, de uma particularidade a todo preço. Mas tudo isso se funda no racismo, sob uma forma de hierarquização. E de outro lado, temos toda uma cultura que se desenvolveu conhecendo também os cânones dominantes. Isso acaba dando problema, pois em um dado momento, quando se é um escritor africano como Elimane ou Ouologuem, a jogar com cânones que não são os nossos, nos expomos a uma grande violência simbólica. Mas tudo isso vem do fato de que a hierarquia foi estabelecida por critérios pseudocientíficos e no plano literário, o que faz com que, hoje, os escritores africanos de expressão francesa sejam muito pouco conhecidos, enquanto escrevem em francês há mais de um século. A questão que me parece central é de como essa dominação política pesa e orienta os diálogos entre os cânones literários.

Nesse contexto, você sugere olhar mais para o continente sul-americano, e  identificar o que se pode construir juntos, para se afastar de uma relação exclusiva com a Europa, que estaria, na sua opinião, se tornando tóxica.

Seria preciso fazer mais isso, em todos os planos. Historicamente e culturalmente temos laços, ecos. Estuda-se isso em várias disciplinas, em história, sociologia, antropologia. Na filosofia é algo que começa, por meio da teoria decolonial, mas na literatura ainda se está devendo, enquanto que há laços evidentes. Parece-me interessante ver como há esteticamente uma circulação possível entre a América Latina e a África. Léopold Sédar Senghor conhecia muito bem a poesia de Octavio Paz, creio mesmo que eram amigos. Sony Labou Tansi, escritor congolês, admirava Gabriel García Márquez, que era um grande admirador de autores haitianos, particularmente de Jacques Stephen Alexis, a quem ele atribui, aliás, a paternidade do realismo mágico. E para falar do Brasil, Senghor era um grande amigo de Jorge Amado. Temos uma história que atravessa dois continentes e que retorna, fechando um ciclo. Seria preciso revelar mais laços, mais história, mais genealogia literária entre a África e a América Latina. Literariamente, as circulações não são ainda muito fortes, enquanto haveria muito a ser dito. É por isso também que aprecio Roberto Bolaño, alguém que não se interditava de falar do continente africano, como o fez um pouco em Os detetives selvagens.

Parte de seu romance se passa na América Latina não só por suas influências literárias, mas também porque é nesta região do mundo que você encontra, mais do que na América do Norte e na África, o legado mais vívido das questões colocadas pelos poetas da negritude. Por que isso?

A negritude sempre falou do mundo negro, não diz respeito somente à África. E quando vejo a maneira como no Brasil as comunidades negras se organizam, e também na Colômbia e em Cuba, e como tentam preservar o saber e os rituais, dos quais se encontram traços no Haiti ou no Benim, me parece que é uma herança de tudo o que a negritude tentou dizer. Há uma forma de unidade que foi rompida no mundo pela escravidão. E esse rompimento não pode nos fazer esquecer que há ecos possíveis. Os mais fortes e vivos, e também os mais políticos, encontramos na América do Sul. A preocupação de preservação de uma riqueza cultural vejo como bem mais forte na América do Sul, e principalmente no Brasil.

Você reivindica a influência da literatura caribenha e sul-americana, e cita  nomes como os de Bolaño, García Márquez, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Ernesto Sábato, Carlos Fuentes, Roberto Arlt, Augusto Roa Bastos, José Lezama Lima, Guillermo Cabrera Infante, Alejandra Pizarnik, Silvana e Victoria Ocampo, Marie Vieux-Chauvet, René Depestre, Jacques Roumain ou Guimarães Rosa. Há outros escritores brasileiros em sua estante além do autor de Grande sertão: veredas?

Conheço a literatura brasileira um pouco menos do que a literatura sul-americana escrita em espanhol. Do Brasil, é verdade que, à parte Guimarães Rosa, outro grande escritor que leio bastante é Clarice Lispector. Mais recentemente, conheci a obra de Jorge Amado. Fora esses, conheço Machado de Assis. Mas Guimarães Rosa é aquele que me toca um pouco mais. É a minha grande referência do Brasil. Diadorim foi um grande choque para mim. Também me perguntava como poderia continuar a escrever após ter lido um livro assim. Imagino que algo da riqueza da língua deve se perder na tradução, mas ainda assim é uma leitura extraordinária. E só conhecia Chico Buarque como músico, admito que não sabia que escrevia. Será um prazer descobri-lo como escritor.

De que modo faz sentido para você se falar de literatura africana, brasileira, francesa?

Para mim, a ideia de nação em literatura não é contraditória com a noção de diálogo internacional ou de uma república mundial das letras. As literaturas vêm sempre de algum lugar. Não é a nação no sentido de uma reivindicação nacional, mas em relação à cultura que se exprime. Sobretudo, é a maneira que, num dado espaço, os problemas eternos de nossa condição se exprimem. Isso é que dá sentido a uma literatura dita nacional. O interessante no fato de que Gombrowicz e Sábato eram amigos na Argentina, é que Gombrowicz era polonês, e permaneceu profundamente polonês mesmo que tenha deixado seu país e ficado em Buenos Aires por muito tempo. Ele estava lá como imigrante polonês, e o diálogo que inicia a partir daí com todos os escritores argentinos se torna também interessante.

Por outro lado, você defende uma “literatura aberta”, e critica aqueles que o definem como um “escritor senegalês”, e que como africano estaria autorizado a abordar certos temas e outros não.

Isso se torna problemático quando a pessoa em face já tem um preconceito sobre o que deveria ser a literatura senegalesa ou africana de modo geral. Cada um de nós tem preconceitos, mas quando eles são justificados por uma relação colonial, ou que por trás dos preconceitos sente-se que há resíduos dessa relação, um tipo de hierarquização, há um problema. Porque não se tem a curiosidade de descobrir o que significa “escritor senegalês”. Já foi preconcebido isso em seu espírito, e se reduz e se encerra aquele que escreve nessa identidade. O grande problema é que isso parece ter significação hierárquica apenas para alguns escritores, somente quando ele são originários do Sul, e mais particularmente da África, e ainda mais quando são negros. A literatura não escapa às grandes linhas de forças políticas que estruturaram o mundo durante séculos, e o fazem um pouco ainda hoje. Essas linhas colocam relações de força de dominação simbólica, e um tipo de hierarquia tácita, que vêm de todo o racismo que se exprimia nas artes, na linguagem ou na política por muitos séculos.

Em 2000, Robert Sabatier, então membro do júri do Goncourt, disse que o prêmio não havia sido concedido ao costa-marfinense Ahmadou Kourouma por causa de seus “maneirismos excessivamente africanos”.

Kourouma estava na lista final do Goncourt, e um membro do júri disse que alguém que usava o francês dessa maneira não merecia concorrer ao prêmio. Já havia uma exotização muito forte, ou de hierarquia do que deveria ser o uso do francês. Se ignora tudo o que Kourouma poderia acrescentar como escritor africano de expressão francesa. Perde-se isso. Não porque isso não nos agrada por razões estéticas ou subjetivas, mas porque já definimos o que é para nós o francês padrão. O que é uma pena.

Você diz sonhar com o dia em que se falará do laureado do Goncourt pelo aspecto literário e não pelo fato de ser um escritor negro ou africano, como ocorreu no seu caso.

Sim, mas no momento ainda é um sonho. Por vezes não é com má intenção que isso é destacado. Mas mesmo quando parte de uma boa intenção, assinala um problema que ainda existe, de um regime de excecionalidade, de que o que conta não é a língua que partilhamos. Se fosse a língua que contasse, não somente não haveria esse tipo de comentário, mas haveria outros aspectos em que isso não causaria problema. Por exemplo, o livro de um escritor africano, francófono, disposto numa biblioteca ao lado da obra de um escritor francês, porque partilham a mesma língua. Por vezes, encontramos nas livrarias ou bibliotecas certos problemas de classificação. Há estantes de literatura francófona e francesa. O que impede, por exemplo, que Léopold Sédar Senghor esteja na mesma prateleira que Victor Hugo? Um é senegalês, outro é francês, não pertencem ao mesmo século, mas partilham a poesia em uma mesma língua. A partir daí entramos nas sutilezas do uso da língua e do pertencimento a certas origens. Mas, no início, é a língua que os reúne, e é isso que deve ser o mais importante, na minha opinião.

Clichês subsistem entre Europa e África, formados há séculos. E o racismo  é uma realidade.

Isso ainda não acabou, infelizmente. É uma realidade diária. Na literatura talvez apareça menos, mas em outras áreas, como no esporte, no futebol, é todo o tempo. É uma grande tristeza. Mostra que talvez minoramos o peso que isso teve. O que se construiu e se legitimou durante séculos leva muito tempo para ser desconstruído. Penso que estamos no momento em que a ordem antiga resiste mais fortemente, porque sente que é atacada de forma mais forte também. É um sinal de que, pouco a pouco, avançamos. Acredito que, no final, conseguiremos fazer com que se compreenda essa verdade elementar.

Em seu livro, o personagem Tokô Ngor diz que a colonização é um espinho na carne do colonizado, e a questão é como continuar a viver com esse espinho.

Creio que é um pouco isso. O que faz com que a colonização seja trágica e perigosa é que certas heranças que ela deixou não desaparecem, e permanecerão para sempre. O grande desafio é fazer com que essas heranças não continuem a exercer a mesma violência, e para isso é preciso procurar compreender como se chegou a isso, e dizer que não é mais o que nos mutila, nos violenta e nos humilha. É o exemplo da língua francesa no Senegal, uma herança muito concreta da era colonial. Não penso que possamos suprimir o francês do Senegal, mas podemos explicar porque o francês é presente, e fazer dele uma língua entre outras, um instrumento, e não necessariamente o que nos domina, nos humilha. Deve-se valorizar as outras línguas e banalizar o francês, não mais dizer que é uma língua quase divina, originada dos mestres, mas apenas um idioma que apareceu por meio de uma infeliz aventura. Foi um espinho plantado na nossa carne, é preciso aprender a viver com ele, e simplesmente dizer que ele não nos mata mais, e não nos matará mais, porque conseguimos dominá-lo e domesticá-lo, colocá-lo no mesmo plano que as outras línguas, e não mais sobre um pedestal da dominação.

Seu primeiro contato a literatura se deu por meio de sua avó, que lia para você contos em sererê, um dos idiomas do Senegal. Você ainda tem contato com essa língua?

Ainda falo, é minha língua materna. Falo com meu pais, meus irmãos e outras pessoas no Senegal. Não escrevo ainda em sererê, mas tenho um projeto de fazê-lo. É a língua pela qual não somente descobri o mundo, mas também a ficção, por meio desses contos. É uma língua extremamente concreta e imagética, e também muito metafórica e espiritual, porque também é ligada a um certo uso da religião. Há todo um arsenal linguístico, um vocabulário, para o que é invisível. É uma língua bastante física, porque é muito ligada à terra e à agricultura. É muito concreta para nomear a natureza. Mas o fato de nomear a natureza é também um sinal quase religioso. No sererê, a religião tradicional é extremamente ligada aos cuidados com a natureza e ao fato de ver nos elementos naturais a manifestação de um poder superior. É muito concreta e ao mesmo tempo muito espiritual e poética como língua.

Embora more na França há quatorze anos e viva com uma francesa, você não cogita solicitar a nacionalidade, e diz viver um “relacionamento aberto” com o país que o adotou. Por que?

Gosto da ideia de ser um estrangeiro na França. É algo que me deixa muita liberdade, e que me permite simplesmente ter um olhar muito independente sobre esse país. Não é por nacionalismo ou patriotismo que me apego à nacionalidade senegalesa. Imagino que devo apreciar a angústia que me acomete quando devo passar o controle de passaportes nos aeroportos (risos). Na verdade, é algo bastante misterioso, porque não tenho uma razão forte e objetiva para isso, mas simplesmente me gosto como estrangeiro na França. Talvez também porque foi graças a essa condição que comecei a escrever quando cheguei aqui. No início, foi para mostrar um pouco o que significava ser um estrangeiro na França. Contava no meu blog minhas experiências de estrangeiro que descobre um novo país, e comecei a escrever mais regularmente.

Yambo Ouologuem foi uma inspiração e uma figura tutelar para a escrita de A mais recôndita memória dos homens. Você se interessou por sua literatura, mas ficou fascinado por sua história.

É isso. Seu destino e seu percurso, além de sua literatura, são fascinantes, e têm a ver com todas as questões de que falamos. As questões políticas entre a África e a Europa, e sobre a relação colonial. Pode-se fazer uma leitura literária do plágio, e isso não terá fim, porque é difícil definir o que é um plágio. Uma vez que se politiza a acusação de plágio, se torna interessante, pois entra em jogo a relação entre os diferentes cânones literários e a dominação que se exerce. Se Ouologuem fosse um escritor branco, teria tido o mesmo destino? Se fosse um escritor francês, teria sido acusado de plágio? Ouologuem é também simbólico das relações políticas complicadas entre a França e suas ex-colônias. É interessante que isso tenha emergido na escrita, na literatura, ou seja, no lugar em que a França sempre teve um tipo de orgulho, aliás justificado, pois é um dos pilares de sua constituição como nação. Mas esse orgulho também pode se manifestar por uma forma de dominação. É por isso que o caso Ouolouguem é interessante. Ele foi um vanguardista extraordinário, tanto para a literatura africana como para questões relacionadas à intertextualidade, à mistura de gêneros e de códigos, e ao diálogo entre os cânones. Ele estava muito à frente de seu tempo.

Por isso você diz quando somos tocados por um texto, ele nunca nos abandona, e que consciente ou inconscientemente essa influência pode ser vista em nossa escrita?

Borges tem o conto intitulado A aproximação a Almotásim, onde há essa frase que diz que todo livro tem a honra de resultar de um livro precedente. Borges radicaliza, diz praticamente que o fato de ser influenciado é um honra. Ele tem razão. Mas por vezes essa influência é totalmente inconsciente. Pode se originar de uma leitura muito antiga, da qual podemos reproduzir uma frase que pensamos ser o inventor, enquanto é algo que nos vem de muito longe. Ser um escritor e um leitor é se expor, quando escrevemos, a ter toda um biblioteca, consciente e inconsciente, em nossa memória. Não legitimo de nenhuma forma o plágio literário, mas tento ver como o que lemos permanece em nós e nos influencia quando escrevemos. A influência é uma honra, mas também é, como dizia Harold Bloom, uma angústia. A angústia da influência é dizer que podemos inclusive sermos influenciados por algo que esquecemos. É aterrador, mas é também a realidade, da literatura e da leitura. Se admitimos que escrever não é possível sem leitura, é também preciso admitir que as leituras têm uma certa influência sobre o que escrevemos. A questão é ver como podemos assumir uma influência sem que seja necessariamente plagiada. Essa é a grande dificuldade à qual todos os escritores são expostos. Cada um tenta, mais ou menos habilmente, de reivindicar uma influência sem que seja uma prisão para si mesmo.

Você afirma que se tornou um “outro homem”, um “novo leitor” e um “escritor mudado” após ter lido Roberto Bolaño. Por que?

2066 foi o primeiro livro de Bolaño que li. Realmente mudou minhas expectativas em relação à literatura e ao romance em particular. Fui muito marcado pela tradição muito francesa da língua, de um tipo de expectativa muito forte em relação ao estilo. E também de uma certa definição de estilo que vem do século 19. Não somente Bolaño criou um distância em relação a isso, mas conseguiu me mostrar de uma forma magistral que o estilo pode vir de um antiestilo. Pode vir de um tipo de insolência, de jogo, de desordem e de imperfeição erigidos em um estilo extremamente forte. E me mostrou essa busca de fazer da literatura o objeto do romance. Não foi ele que inventou isso, mas o fez de uma forma mais lúdica, sem deixar de interrogar em permanência o status e o poder da literatura no mundo face ao mal, à violência política ou à história. Tudo isso ele fez de forma magnífica. Meu encontro com Bolaño foi importante porque se deu no momento em que começava a pensar em Ouologuem, me perguntava o que deveria ser feito dessa história, como abordá-la. Ele começava a se tornar um mistério para mim. Nesse momento, encontrei Bolaño, e além disso havia Archimboldi em 2666, Cesárea Tinajero em Os detetives selvagens, figuras de escritores que desaparecem. Isso enquanto na minha vida havia uma figura de escritor que havia desaparecido, que era Ouologuem, e não sabia como contar sua história num romance. Encontrar Bolaño nesse momento me liberou. Eu me pus a ler romances como uma forma de busca, me dizendo que havia sempre no coração dos romances algo que havia desaparecido, e se criava um enigma. Bolãno teve essa influência sobre mim. Isso também me permitiu retornar à literatura latino-americana, a qual havia um pouco abandonado. Minhas primeiras experiências com a literatura latino-americana não foram tão poderosas assim. Quando li Jorge Luis Borges, não havia entendido muita coisa, e isso me desesperou. Depois de ter lido Bolaño, reli Borges, e me pareceu extraordinário. Foi uma porta de entrada para uma volta à literatura latino-americana, para Borges, Sábato, Cortázar e todos os outros.

Bolaño foi fundamental para você escrever A mais recôndita memória dos homens.

Foi fundamental, porque foi a reunião de uma preocupação que já tinha concretamente na minha vida, e agora um exemplo do que a busca pela literatura poderia tomar forma num romance, sem que isso seja tedioso ou desconectado da energia da vida. E em Bolaño é isso, a energia da busca, da vida que tenta revelar o que esconde. Isso é capital para mim.

Você se reivindica como um escritor engajado, mas, sobretudo, esteticamente. Na sua opinião, a linguagem e o estilo definem uma posição no mundo.

Para mim, o engajamento é realmente uma questão de prioridade da ordem do discurso. Em primeiro, será sempre de ordem literária, de ficção, da poética. Mas essa ordem poética produz sempre uma política. Não escapamos à questão política, mesmo quando pretendemos tomar a posição mais esteticamente pura que seja. Isso não existe. Todo engajamento estético, toda escolha de palavras, de estilo, de linguagem, de metáforas, de verbos e adjetivos têm também um efeito político. A linguagem descreve uma certa situação em um determinado contexto, e também um posicionamento político em relação ao que falamos. O simples fato de escrever sobre a homossexualidade no Senegal produz um romance que imediatamente produz uma política, pela escolha da linguagem. Quando escrevo, procuro sempre colocar em primeiro plano a ordem do discurso poético, sabendo que vai sempre gerar uma ordem de discurso político, isso é evidente. Isso não impede, fora do romance, da escrita e da ficção, assumir posições diretas, menos submetidas às exigências de complexidades e de nuanças do romance. Recentemente, escrevi, junto com dois outros escritores,  um artigo sobre a situação do Senegal, no qual a tomada de posição política é mais direta. É uma palavra política.

Você afirma que escreveu Homens de verdade, em que trata da homossexualidade no Senegal, para “se livrar” de um vídeo que se tornou viral. As imagens mostram pessoas desenterrando um homem à noite, alegando que ele era homossexual e não poderia ser enterrado em um cemitério muçulmano.
Foi um vídeo que vi há muito tempo, ainda vivia no Senegal, e que se tornou viral, e que nunca consegui verdadeiramente esquecer. Era um vídeo muito impactante por sua violência, a questão social que envolvia, e escrevi o romance também para me livrar dele. Depois, o vídeo despareceu da internet, mas de vez em quando volta na minha memória.

Você lamenta que este livro tenha provocado uma grande polêmica e não um verdadeiro debate no país.

Não é sempre a mesma coisa. A grande dificuldade é que cada vez mais são as polêmicas que vencem contra os debates, ou, sobretudo, o que começa em debate termina sempre em polêmica. É muito triste.

Um dos personagens de seu livro, Stanislas, dá um conselho: “Jamais tente dizer do que fala um grande livro. Ou, se você o fizer, eis a única resposta possível: não fala de nada. Um grande livro sempre fala de nada e, no entanto, tudo está lá́. Nunca mais caia na armadilha de querer dizer do que fala um livro que você̂ acha grande. Essa é a armadilha que a opinião pública prega. As pessoas querem que um livro fale necessariamente de alguma coisa. A verdade, Diégane, é que só́ um livro medíocre, ruim ou banal, fala de alguma coisa. Um grande livro não tem assunto e não fala de nada, procura apenas dizer ou descobrir alguma coisa, mas esse apenas já́ é tudo, assim como essa coisa também já́ é tudo”. É também a sua opinião?

O absoluto é aquilo que foi definitivamente perdido. É preciso aceitar essa ideia, mesmo que seja desesperadora, que mergulha num tipo de melancolia. Mas acredito que os livros nos marcam também por isso, porque temos a impressão de que eles conseguiram dizer, de forma muito profunda, que algo foi perdido. Penso que nossa sensibilidade como seres humanos está também relacionada ao fato de que temos uma intuição profunda, de algo em nós que não está presente, que há uma ausência. E a literatura não está aí para preencher essa ausência, mas para que tomemos consciência de forma ainda mais forte dessa ausência. Não é sempre algo triste, mesmo passando pelo riso e o humor ela pode fazer com que nos demos conta disso. Mas a literatura é extremamente corajosa ou perigosa ao nos mostrar a ausência, mostrar a perda, designar um tipo de buraco negro que existe no centro de nossa condição. Em todo caso, ela arrisca. É algo que Bolaño diz muito melhor do que eu. No Discurso de Caracas, ele diz que a literatura é um jogo perigoso. Mas é preciso fazê-lo, sabendo que o paradoxo está em que seu fracasso é precisamente o que nos empurra tão fortemente. A literatura nunca chega a dizer exatamente o que foi perdido, desenha os contornos dessa perda, e já é muito. Evidentemente, não aparece nunca em termos tão metafísicos, toma sempre corpo em intrigas, situações romanescas, personagens. Mas tudo isso, para mim, é uma ilusão para esconder o verdadeiro tema do romance, algo misterioso que foi perdido. Para mim, esse é o objeto de todos os grandes livros. Por isso que é difícil nomeá-los. Por comodidade, nós resumimos os livros, mas tudo isso está abaixo da razão profunda que faz com que um grande livro seja um grande livro. Se perguntarmos de que fala Diadorim, poderíamos responder de várias maneiras, mas penso que estaríamos sempre um pouco aquém do objeto verdadeiro deste grande livro. E por isso ele é grande, está acima da linguagem que usamos para nomear esses objetos. É algo muito próximo da mística sufi e judia. Edmond Jabès, grande escritor e poeta de língua francesa, judeu originário de Egito, escreveu uma grande obra, Le livre des questions, no qual tem reflexões dessa ordem. Do fato que o objeto de um livro, ou a razão de ser de um livro, sempre parte de um certo vazio, e esse vazio se manifesta de uma forma que a linguagem não pode apreender. É algo que me marcou muito, além da religião sufi do Senegal, dos mourides em particular, uma confraria que foi muito importante na minha educação e minha infância. Tudo isso para dizer que os grandes livros falam de algo do qual não podemos falar. Por isso que não podemos reduzi-los a intrigas ou situações romanescas.

Em seu livro, Diégane se interessa pela “paixão do possível”, uma fórmula de filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard. O que é a paixão do possível? Você também é movido por isso?

Sim, tenho a paixão do possível. Ou ao menos procuro tê-la. É o que, simplesmente, me permite escrever romances. O romance é sempre a paixão ou a curiosidade pelo possível, sobre o que poderia ser, e que criamos na ficção. Há uma exaltação particular ligada ao fato de ver o outro lado das coisas. A paixão do possível é a imaginação. A fórmula vem de Kierkegaard, mas foi expressa bem mais forte por um descendente dele, Robert Musil. Em O homem sem qualidades, ele diz que se existe um sentido do real, deve também existir algo como um sentido do possível. O sentido do possível é para mim uma moral do romancista. O romance não é nada mais do que um tentativa de encontrar o sentido do possível. Como romancista, procuro fazer com que as coisas não sejam somente tal como me aparecem, mas também como elas poderiam ser no futuro, e como podem ter sido no passado.

Diégane se pergunta em seu livro: “Qual o peso da questão da escrita comparada à do sofrimento social?”. Eu faço essa mesma indagação para você.

Penso que ao mesmo tempo ela pesa muito e nada. É precisamente esse equilíbrio que permeia todo o romance. Há um tipo de fé muito forte, absoluta, nessa paixão do possível, de uma literatura que possa mudar as coisas, assumir sua parte nos movimentos sociais, na realidade social. Servir àqueles que sofrem e que são pegos nas relações de poder e de dominação. Ao mesmo tempo, me dou conta de que não é sempre o caso, e que a literatura é frequentemente desamparada quando a realidade social chega com urgência e força. Escrever romances leva tempo, sempre em atraso considerável sobre a realidade. A literatura tem sempre uma relação ambígua face à urgência social. Para melhor explicá-la, clarificá-la, se aprofundar nela, é preciso tempo. E a literatura não existe para dar respostas. A mais recôndita memória dos homens está nesse equilíbrio, no fato de dizer que a literatura pode tudo e não pode muita coisa. Diégane é pego entre esses dois polos. Eu mesmo também.

A mistura de gêneros em seu livro não é simplesmente um artifício técnico. A figura geométrica do labirinto está no centro da escrita, e é para você como uma metáfora para sua ideia da arte do romance.
A arte do romance, para mim, é aquela que vem quebrar a linearidade do tempo. Para mim, a grande revolução romanesca ocorreu no final do século 19 e começo do século 20, quando se confundiu a questão do tempo. Todos os escritores que pegaram o tempo como objeto da escrita ou elemento central da narração, como Proust, Joyce, Faulkner ou Virginia Woolf, operaram uma das mais fortes revoluções. Que consistiu em dizer que nossa percepção do mundo não é ordenada. Por que os romances deveriam ser sempre ordenados cronologicamente, lineares, enquanto em nossa própria vida mental e psicológica somos sempre afligidos por diferentes percepções, impressões, ilusões, e de um tipo de caos que é relacionado ao tempo? Nossa percepção do tempo não é linear, é caótica, pois está sempre entre o passado, o futuro e o que chamamos de presente. Nosso corpo, sim, avança para a morte, mas interiormente não vivemos assim. Creio que o romance é isso também, o fato de representar na linguagem o que a nossa percepção psicológica do tempo pode ter de caótica. E penso que as buscas mais belas são aquelas que se desenvolvem numa forma de labirinto, nas quais podemos fracassar, errar, se deslocar por longas horas sem saber exatamente onde se está. O labirinto é uma metáfora existencial, da busca de algo que pode ser perigoso ou um tesouro, um segredo, algo como um sentido último.

Em A mais recôndita memória dos homens, sobram farpas para editoras francesas e uma literatura de produtos comerciais…

Isso não data de hoje, sabemos todos que a literatura é também um produto, que possui seus mercados, e que há toda uma economia do livro. Evidentemente, a partir do momento em que há economia em jogo, a questão do valor literário nem sempre é prioritária. E se o valor comercial que é a bússola, quer dizer que há padronização, uniformização e mercados que são visados, os quais por vezes determinam os gostos. E esses gostos nem sempre são literários. E funciona. Mas é isso o cinismo do neoliberalismo, em um dado momento se diz que funciona, e assim não parece ter nenhuma outra forma de critério possível. Se criticamos, respondem: as pessoas gostam, são muitas e felizes em ler esses livros, e gera dinheiro. O que se pode responder a isso? Não sei. Felizmente, ao lado disso, há sempre a possibilidade de ler escritores como László Krasznahorkai, Ben Okri ou Olga Tokarczuk, autores de obras literárias poderosas, com ambição, complexas, e que conseguem se inscrever no mercado internacional. Esse é o paradoxo desse circuito e da padronização. Encontramos livros que são produtos de marketing, um tipo de emanações literárias do capitalismo. E encontramos também outros livros bem mais substanciais, e que apesar disso conseguem atrair um público internacional. E a mesma editora que lança um livro feel good, que terá enorme sucesso de público, é a mesma que publica obras de grande exigência. Mais complexo ainda: o leitor que por vezes vai ler e gostar do feel good, será o mesmo que gostará de Krasznahorkai e outros. Isso me deixa sempre perplexo.

Você estava no hotel quando recebeu a notícia da premiação do Goncourt, e uma camareira malinesa de pronto lhe abraçou, dizendo: “Estou muito feliz”. Em seu livro, você ironiza os prêmios literários, o que é aparentemente um incômodo para quem recebeu o Goncourt.

Não se pode ter apenas uma leitura divertida e irônica desse prêmio. Possui também um verdadeiro valor simbólico e político importante. Posso estar feliz e também ser irônico em relação a mim mesmo. Mas não esqueço que foi dado em 2021, e vivemos ainda situações políticas em que há dominação, humilhação e racismo, e isso vai além de simples considerações literárias. Tenho minha aparência, minha história, minhas origens. Eu também pertenço a um forma de minoria. E para essa minoria, essa comunidade, o prêmio pode representar algo importante, não posso ignorar isso. O espaço do romance pode ser irônico, gozador, crítico, mordaz e doce ao mesmo tempo, mas os efeitos que isso pode ter no real são diferentes. É preciso ver as duas dimensões juntas.

No romance, você cita o grupo de música Super Diamono, seu preferido no Senegal. A música de Omar Pène, um dos fundadores, o acompanhou durante toda a escrita do romance. Qual a influência para o livro?

Espero que as pessoas que não conheciam Omar Pène e que lerão o livro vão escutá-lo, e não apenas a canção que indico. É alguém que tem uma capacidade poética extrema, que é a faculdade de alguém que escreve de ir muito diretamente, em uma frase, ao centro do que é nossa sensibilidade a mais profunda. Para mim, um poeta é isso, alguém que sabe onde se encontra o lugar da sensibilidade mais profunda, e fala desde esse lugar ou se dirige a ele. Omar Pène faz isso há mais de 40 anos, sendo capaz de se renovar com seu grupo, Super Diamono, nunca perdendo essa faculdade. É ainda mais admirável porque é alguém que não foi muito longe nos estudos, abandonou muito cedo a escola, e não tem um tipo de conhecimento livresco ou acadêmico das coisas. É uma sensibilidade originada de sua experiência e de sua capacidade em ir muito rápido ao fundo do coração humano. O fato de que ele tenha essa voz quente, parece as vezes um tipo de lamentação, dá uma potência suplementar ao que diz. O que mais me impressiona nele é que não importa o momento em que o escuto, o humor em que estou, ele sempre coincide com meu estado de espírito, seja qual for a canção.

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